• Nenhum resultado encontrado

Este excerto é um outro momento da consulta do Antônio, portanto, estão presentes na consulta os mesmos participantes. Este trecho é parte do início da consulta, momento em que a médica pergunta sobre a rotina do paciente e seus hábitos alimentares.

Data do registro: 04/10/2019

Local: Ambulatório de Neurologia do Comportamento da Unifesp Data da transcrição: 03/12/2019

Transcritor: Simone Fronza Símbolos: ant_g * / ant_o @

01 JUL @tá (.) e essa parte da alimentação que

ant_o @olha p/ médica--->

você falou (.) ele tem comido muito//

02 IRI assim ele come porcaria (.) ele adora (.)

tem a comida lá (.) tá tudo pronto (.) bem// (.) não (.) agora eu não quero\ não estou com fome@ (.) daí ele vai lá e @ pega (.) tem muita

ant_o --->@olha p/ pesquisadora->@olha p/ médica-->

fruta (.) a gente usa@ comer muita fruta (.)

ant_o -->@olha p/ baixo-->

então ele fala não quero comida@ (.) tá bom

ant_o -->@olha p/ alice-->

(.) o que eu vou fazer// tem hora que eu também não quero@ comida\

ant_o -->@olha p/ médica-->

03 JUL hum//

(0.9)

04 IRI @mas aí ele vai\ quando ele quer/ se eu ponho

ant_o @olha p/ pesquisadora--->

mesmo\ eu insisto (.) é@ quatro ho::ras\ (.)

ant_o -->@olha p/ médica-->

ele fala não agora eu não quero\ (.) às vezes @eu vou por comida para ele é quatro horas da

ant_o @olha p/ pesquisadora-->

tarde\ (.) aí depois quando meu filho chega (.) oito e meia assim\@ aí a gente janta\

ant_o -->@olha p/ médica-->

(0.8)

05 JUL uhum

06 IRI @aí ele come\

ant_o @olha p/ alice-->

(.)

07 JUL comida//

08 IRI comida\ (.) uma salada\

10 JUL @[mas assim\ @durante o dia (.) ele fica

ant_o @olha p/ médica@olha p/ alice-->

@comendo o tempo inteiro//

ant_o @olha p/ médica-->linha 17

11 IRI a: sim\ ele dá uma:

12 ANT uma beliscadinha

13 IRI beliscadinha (.) bolacha

14 ANT que nem (.) graças a Deus tem *muita fruta né (.) *

ant_g *mov de demonstrar um espaço*

*já fui acostumado desde * pequeno *ter fruta em

ant_g *cruza as duas mãos no ar* *cruza os braços no ar→

casa de tonelada*

ant_g --->*

15 JUL hum//

16 ANT *então você vai na cozinha*

ant_g *aponta p/ a esquerda --->*

(.) *toma uma água (.) vê uma maçã (.) *pega uma

ant_g *movimenta as mãos em círculos --->*simula pegar maçã->

maçã (.) *lava (.) *

ant_g --->*simula lavar uma maçã*

vou lá sento (.) vendo televisão e *como a maçã *

ant_g *simula comer uma maçã*

17 IRI @ele come também\ sabe o que//

ant_o @olha p/ alice-->

18 JUL hum//

19 IRI @é:: tomate\ ele corta em quatro assim (.)

ant_o @olha p/ médica-->

põe sal e leva para a sala@ para a gente(.)

ant_o -->@olha p/ alice-->

toma, bem (.) vamos comer(.) aí eu vou tomando

20 JUL @mas a senhora acha que é uma coisa

ant_o @olha p/ médica-->

meio descontrolada// (1.0)

21 IRI não\ porque sempre ele foi assim/

22 JUL tem as coisas lá (.) ele vai ficar comendo\

23 IRI não (.) não é@ descontrolado (.) às vezes\

ant_o -->@olha p/ alice-->

24 ALI não (.) mas não é fome também\ eu acho

que é mais mania\@ sabe//

ant_o -->@olha p/ médica-->linha 30

25 IRI mania\

26 JUL mas ele sempre foi assim// ela era assim já antes//

27 ANT a:: desde pequeno\

28 IRI sempre foi assim de de ficar [beliscando (.)

não tanto como agora (.) porque também fica\ (.) fica mais ansioso né// sei lá/

29 ANT [sabe quando você\ lembra quando você morava lá no interior

assim// você *passava por um pé de tomate *

ant_g *desenha um caminho c/ as mãos*

*@na no meio do cafezal// plantava o tomate

ant_o @olha p/ alice-->

@no meio do cafezal//*

ant_g -->*

ant_o @olha p/ médica-->

@passava estava @aquele tomatão

ant_o @olha p/ alice->@olha p/ médica-->

bonito você *pá (.) *

ant_g *simula a colheita do tomate*

*virava@ (.) @

ant_g *vira a barra da camisa --->

ant_o -->@olha p/ pesquisadora@olha p/ médica-->

para a mãe não brigar* (.) virava assim@ a camisa @

ant_g -->*simula limpar o tomate na camisa--> ant_o -->@olha p/ pesquisadora@

@(.) limpava o @tomate*

ant_o @olha p/ médica@olha p/ pesquisadora-->

ant_g -->*simula comer o tomate--> @(.)

ant_o @olha p/ médica→

@dava uma mordidinha*@

ant_o @olha p/ pesquisadora@olha p/ médica-->

ant_g -->*

(.) *enfiava a mão no bolso e * tirava uma *

ant_g *simula pegar o sal no bolso*mostra o tamanho da pedra*

pedra de sal né// (.) antigamente@ sal vendia

ant_o -->@olha p/ pesquisadora->

em *saco@ grande *

ant_g *simula o tamanho do saco de sal*

ant_o -->@olha p/ médica-->

(.) *tinha aquelas pedra de sal (.) *

ant_g *mostra o tamanho da pedra de sal*

*@aí passava

ant_g *simula passar o sal no tomate

ant_o @olha p/ pesquisadora-->

*dava aquela mordidinha@ *passava o

ant_g *simula morder o tomate*simula passar sal no tomate---> ant_o -->@olha p/ médica-->

sal* (.)@ chupava a semente primeiro* (.)

ant_g -->*simula chupar a semente--->* ant_o -->@olha p/ pesquisadora-->

*depois ia comendo o tomate@ * ((risos))

ant_g *simula colocar sal no tomate*

ant_o -->@olha p/ médica-->

@(1.0) @

ant_o @olha p/ pesquisadora@olha p/ acompanhantes-->

30 IRI @mas ele gosta\ se alimenta bem\

ant_o @olha p/ médica-->

(0.8)

31 ANT e até hoje eu gosto de um tomate (.) tomate faz bem\

Neste segundo excerto, Julia retoma um comentário feito por Iris para entender melhor os hábitos de alimentação de Antônio. A médica se dirige à esposa para perguntar algo sobre a vida de Antônio, perguntando em terceira pessoa sobre alguém presente na mesma sala. Mesmo este sendo um tópico que trataremos mais adiante no item 4 (a presença ausente), isto se torna relevante aqui, pois é possível compreender que esta seja uma das motivações para que o elemento narrativo seja desencadeado mais para frente neste excerto.

A partir do questionamento de Julia, Iris inicia, na linha 02, um relato sobre a rotina pessoal do casal, sendo acompanhada por marcadores conversacionais (“hum?” e “uhum”) que indicam que o interlocutor, nesse caso a médica, está ouvindo a narrativa.

Na linha 09, Antônio faz uma tentativa de participação no diálogo formado pela médica e a esposa, inserindo sua primeira fala deste excerto para acrescentar informações do que vem sendo dito sobre ele (“eu não estando cheio, cheio a gente come”). Ainda assim, Julia faz novamente uma pergunta sobre Antônio, como é possível notar pelo pronome “ele”, para a esposa. Mais uma vez a rotina de uma pessoa está sendo requisitada para outro.

Iris começa a responder à pergunta da médica, na linha 11, no entanto, ela não termina seu turno e Antônio, que parece estar fora da dinâmica médica-acompanhante, sugere uma palavra, na linha 12, que é aceita por Iris na linha 13. Com isso, Antônio tem a abertura para um turno de fala mais longo. Aqui, Antônio começa a assumir um papel interacional de protagonismo. Ele narra um costume de infância de comer muitas frutas e de tê-las em casa. Ao fazer isso, Antônio faz uma simulação, com gestos de mão, de pegar uma maçã, lavá-la e comê-la.

Essa narrativa parece despertar uma memória da esposa referente a outro alimento também muito querido por Antônio: o tomate. Na linha 19, Iris é quem começa a narrar mais um costume do marido, neste momento ela explica com detalhes uma atividade que parece ser rotina na casa deles. Ela narra ação por ação desde os movimentos de Antônio até o que ele diz para ela nesses momentos. Na linha 20, Julia tenta especular se essa rotina de alimentação seria algo para a preocupação médica e mais uma vez faz isso se direcionando para a acompanhante. A esposa responde que é um hábito antigo. A médica procura aprofundar mais sobre o assunto, e a esposa mais uma vez nega que os hábitos alimentares de Antônio são fora do considerado normal. Na linha 24, pela primeira vez, a nora intervém para acrescentar a informação de que este hábito seria uma mania de Antônio e a esposa concorda.

A médica tenta mais um esclarecimento sendo este direcionado novamente à esposa, mas quem esclarece primeiro é o próprio Antônio, dizendo, na linha 27, “ah desde pequeno”. E em seguida, Iris também expressa sua impressão, na linha 28: “sempre foi assim de de ficar beliscando. Não tanto como agora, porque também fica fica mais ansioso, né? Sei lá”.

Esta interação, desde o início, vem se desenvolvendo sequencialmente até a narrativa que Antônio inicia na linha 29. Aqui, Antônio assume novamente o papel de protagonista da interação. O relato que ele conta é um esclarecimento para seus hábitos alimentares atuais, mas que foram desenvolvidos desde sua infância. Desde a pergunta inicial da médica, na linha 01, a lembrança da esposa acerca do tomate como alimento recorrente da rotina, até a pergunta da médica, na linha 26, “mas ele sempre foi assim? Ele era assim já antes?”, foram sequenciais e motivadores para a narrativa que se seguiu.

Nos turnos 29 e 30, Antônio narra uma história de infância com detalhes e com uma performance corporal que se destaca. Ele constrói um cenário, indicando com as mãos a posição do pé de tomate e também uma sequência de cenas, simulando passo a passo da ação da colheita ao sal que ele colocava no tomate antes de comê-lo. Sua narrativa é presente e parece não deixar de lado nenhum detalhe do que parece ter sido uma rotina nos seus dias de criança. Antônio não conta a história apenas em palavras, ele parece dar vida a uma cena. Ele dá significado ao tomate que leva cortado atualmente para comer junto com a esposa para assistir TV, ele faz mais do que justificar um hábito, ele ressignifica algo que parecia muito simples, um hábito. O hábito em si, de comer tomate assistindo TV, foi trazido por Iris, aqui, o hábito representa o presente que acontece na rotina da família, ela não introduz uma memória neste hábito. No entanto, a partir da narrativa de Antônio, um hábito do presente é ressignificado pelo passado e as memórias que Antônio traz para a interação abrem uma nova relação presente-passado. Essa dinâmica de trazer o passado para a interação só foi possível porque a consulta clínica possibilita esse tipo de abertura para que uma memória seja trazida. Questionar sobre hábitos alimentares faz parte da rotina clínica e esse tipo de pergunta envolve uma relação de passado-presente, já que hábitos são construídos, alterados ou mantidos através do tempo.

Ainda, Antônio, ao contar sua narrativa, na linha 29, transfere seu olhar de um interlocutor ao outro para checar se a atenção de todos está voltada para ele.

Após a narrativa de Antônio, Iris e Julia fazem comentários que indicam o encerramento do tópico, nenhuma delas se alinha ao que foi dito por ele, isto é, Antônio propôs, com sua narrativa, uma mudança de enquadre interacional, de consulta clínica para

uma interação mais próxima de uma conversa e as respostas de suas interlocutoras não se relacionaram com a história contada por Antônio. Iris retoma o enquadre da consulta clínica que vinha acontecendo antes da narrativa do marido, dizendo: “mas ele gosta, se alimenta bem” e Julia responde “entendi” para encerrar o tópico.