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Elementos narrativos corporificados em consultas clínicas de pessoas com Alzheimer

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

SIMONE ALENCAR FRONZA

ELEMENTOS NARRATIVOS CORPORIFICADOS EM CONSULTAS CLÍNICAS DE PESSOAS COM ALZHEIMER

GUARULHOS 2020

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SIMONE ALENCAR FRONZA

ELEMENTOS NARRATIVOS CORPORIFICADOS EM CONSULTAS CLÍNICAS DE PESSOAS COM ALZHEIMER

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras Universidade Federal de São Paulo Área de concentração: Estudos Linguísticos

Linha: Linguagem e Cognição Orientação: Profa. Dra. Fernanda Miranda da Cruz

GUARULHOS 2020

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Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais nº 9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a fonte.

Fronza, Simone Alencar.

Elementos narrativos corporificados em consultas clínicas de pessoas com Alzheimer/Simone Alencar Fronza. – Guarulhos, 2020 - 134 f.

Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2020.

Orientadora: Fernanda Miranda da Cruz.

Título em inglês: Embodied narratives elements in clinical consultations of people with Alzheimer’s

1. Alzheimer. 2. Narrativa corporificada . 3. Multimodalidade. 4. Interação social. 5. Memória corporificada. I. CRUZ, Fernanda. II. Elementos narrativos corporificados em consultas clínicas de pessoas com Alzheimer.

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Simone Alencar Fronza

ELEMENTOS NARRATIVOS CORPORIFICADOS EM CONSULTAS CLÍNICAS DE PESSOAS COM ALZHEIMER

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras Universidade Federal de São Paulo Área de concentração: Estudos Linguísticos

Aprovação: 31 / 03 / 2020_

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Fernanda Miranda da Cruz

Universidade Federal de São Paulo

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Hosana dos Santos Silva

Universidade Federal de São Paulo

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Daniela Moreno Feriani

Universidade de São Paulo / Universidade Estadual de Campinas

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Flamínia Manzano Moreira Lodovici

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SUPORTE E FINANCIAMENTO

Esta pesquisa foi financiada por bolsa CAPES do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São Paulo do período de agosto de 2018 a fevereiro de 2019 e bolsa FAPESP, processo nº 2018/09024-3, do período de março de 2019 a março de 2020.

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AGRADECIMENTOS

A Deus.

À minha mãe, pelo apoio, incentivo e cuidado. Ao meu irmão, pelas escutas, leituras e conselhos.

À minha avó Luzia, por ter sido a inspiração deste estudo.

Ao meu pai, por sempre ter estado comigo em vida e em espírito.

À minha orientadora, Profa. Dra. Fernanda Cruz, por todo o aprendizado e pela inspiração no percurso de pesquisa.

Aos membros da banca, Profa. Dra. Hosana dos Santos, Profa. Dra. Daniela Feriani e Profa. Dra. Flamínia Lodovici, pela disposição, leitura e colaborações.

Aos participantes desta pesquisa, por a tornarem possível e por compartilharem suas memórias comigo.

À CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - e à FAPESP - Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro.

Aos membros do LabLinc - Laboratório de Linguagem e Cognição/UNIFESP, pela escuta e contribuições na pesquisa.

À Gisele Garofalo e à Profa. Dra. Claudia Berlim, pela parceria de pesquisa.

À Profa. Dra. Vera Lucia Vieira, pela ajuda com documentação referente ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP/UNIFESP).

Ao Dr. Paulo Bertolucci e sua equipe, pela colaboração na pesquisa.

À Jacqueline Moncayo, por sempre acreditar em mim e pela amizade e incentivo durante todo o percurso.

À Caroline Cots, pela gentileza em ajudar e pelo companheirismo durante esta jornada. Ao Fábio Júnior pela parceria e pelas palavras de incentivo.

Aos meus amigos e colegas, de infância, de escola e da UNIFESP, por estarem comigo cada um à sua maneira.

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“Não se trata de negar o terror e a materialidade da doença, mas de ver, em meio a névoa, a potencialidade da dissolução, do borrão, do lapso, do desmoronamento.” (FERIANI, 2017, p. 557)

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RESUMO

Neste presente trabalho exploraremos a emergência de elementos narrativos durante interações clínicas das quais participam pessoas diagnosticadas com Doença de Alzheimer. Neste estudo, elementos narrativos foram concebidos como elementos corporificados que emergem junto com a fala e carregam histórias, memórias e experiências das pessoas com Alzheimer. As consultas clínicas, do ponto de vista dos estudos etnográficos e interacionais (CLARK e MISHLER, 2001; MOITA LOPES, 2001), representam um lugar institucional de trocas interativas que nos dizem, a partir da linguagem, muitas coisas sobre a organização social da vida cotidiana das pessoas. A linguagem e as práticas com linguagem, dentre as quais as práticas de narrar ou de trazer elementos narrativos em enunciação, são um dos lugares em que manifestamos e construímos, discursivamente, quem somos ou ainda compartilhamos uma certa versão pública de nós. Como metodologia, foi realizado um trabalho de campo no Ambulatório de Neurologia do Comportamento da Universidade Federal de São Paulo, onde foram registradas em vídeo 5 consultas clínicas que deram origem a um corpus de pesquisa denominado CENA – Corpus para o Estudo de Narrativas e Alzheimer. Dessas 5 consultas, foram selecionados 6 momentos de interação que foram então tratados como excertos e que foram transcritos com base na transcrição proposta por Mondada (2016). A análise do corpus é qualitativa, levando em conta os aspectos multimodais, sobretudo corporais, constitutivos dessas interações como uma das formas de investigar a subjetividade nos contextos de perda sociocognitiva através das ações de narrar ou esboçar narrar algo (HYDÉN, 2013a, 2013b). Com esta pesquisa, discutimos as várias formas de narrar em uma conversa, evocando o que podemos pensar sobre subjetividade e linguagem na forma como a pessoa com perda de memória progressiva constrói suas narrativas. Com a análise multimodal e a partir da noção de memória e elementos narrativos corporificados, procuramos contribuir para o estudo do corpo conjuntamente com a fala como central na construção das interações das quais participa uma pessoa diagnosticada com Doença de Alzheimer.

Palavras-chave: Alzheimer. Narrativa corporificada. Subjetividade. Multimodalidade.

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ABSTRACT

In this present work, we will explore the emergence of narrative elements during clinical interactions in which people diagnosed with Alzheimer’s desease participate. In this study, narrative elements were conceived as embodied elements that emerge along with speech and carry stories, memories and experiences of people with Alzheimer's. Clinical consultations, from the point of view of ethnographic and interactional studies (CLARK and MISHLER, 2001; MOITA LOPES, 2001), represent an institutional place for interactive exchanges that tell us, through language, many things about the social organization of people's daily lives. Language and practices with language, among which the practices of narrating or bringing narrative elements into enunciation, are one of the places where we manifest and construct, discursively, who we are or still share a certain public version of us. As a methodology, fieldwork was carried out at the Behavioral Neurology Outpatient Clinic of the Federal University of São Paulo, where 5 clinical consultations were recorded on video, which led to a research corpus called CENA - Corpus for the Study of Narratives and Alzheimer. From these 5 consultations, 6 moments of interaction were selected, which were then treated as excerpts and which were transcribed based on the transcription proposed by Mondada (2016). The analysis of the corpus is qualitative, taking into account the multimodal aspects, especially bodily ones, constituting these interactions as one of the ways to investigate subjectivity in the contexts of socio-cognitive loss through the actions of narrating or sketching narrating something (HYDÉN, 2013a, 2013b). With this research, we discuss the various ways of narrating in a conversation, evoking what we can think about subjectivity and language in the way the person with progressive memory loss constructs his narratives. With multimodal analysis and based on the notion of memory and embodied narrative elements, we seek to contribute to the study of the body together with speech as central to the construction of the interactions in which a person diagnosed with Alzheimer's Disease participates.

Keywords: Alzheimer's. Embodied narrative. Subjectivity. Multimodality. Interaction.

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LISTA DE EXCERTOS

Excerto 1 - história da nona ... 51

Excerto 2 - história do tomate ... 56

Excerto 3 - história das duas datas de nascimento ... 61

Excerto 4 - história de Mato Grosso ... 67

Excerto 5 - história dos conhecimentos de matemática ... 71

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Funções do ELAN ... 39

Figura 2 - Posição dos participantes ... 50

Figura 3 - Direcionamento do olhar no excerto 01 ... 114

Figura 4 - Direcionamento do olhar no excerto 02 ... 114

Figura 5 - Direcionamento do olhar no excerto 03 ... 114

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Dados sociolinguísticos do participante 01 ... 30

Tabela 2 - Dados sociolinguísticos do participante 02 ... 30

Tabela 3 - Dados sociolinguísticos do participante 03 ... 31

Tabela 4 -Dados sociolinguísticos do participante 04 ... 31

Tabela 5 - Dados sociolinguísticos do participante 05 ... 32

Tabela 6 - Trilhas do ELAN para interação 01... 40

Tabela 7 - Trilhas do ELAN para interação 02... 41

Tabela 8 - Trilhas do ELAN para interação 03... 41

Tabela 9 - Trilhas do ELAN para interação 04... 42

Tabela 10 - Trilhas do ELAN para interação 05... 42

Tabela 11 - Identificação dos participantes na transcrição ... 43

Tabela 12 - Símbolos gráficos de cada participante utilizados na transcrição ... 44

Tabela 13 - Notação de transcrição ... 45

Tabela 14 - Sistematização das informações dos participantes da pesquisa ... 50

Tabela 15 - Performance narrativa no excerto 01 ... 83

Tabela 16 - Performance narrativa no excerto 02 ... 83

Tabela 17 - Performance narrativa no excerto 03 ... 84

Tabela 18 - Performance narrativa no excerto 04 ... 84

Tabela 19 - Performance narrativa no excerto 05 ... 84

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAAE Certificado de Apresentação para Apreciação Ética

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CENA Corpus para o Estudo de Narrativas e Alzheimer

CEP Comitê de Ética em Pesquisa

CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde

CPN Centro Paulista de Neuropsicologia DA Doença de Alzheimer

DALI Doença de Alzheimer, Linguagem e Interação

DSM-V Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Fifth Edition EFLCH Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

ELAN Eudico Linguistic Annotator EPM Escola Paulista de Medicina

FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo IC Iniciação Científica

LabLinc Laboratório de Investigação em Linguagem e Cognição MMS Mini Mental State

SARI Serviços de Atendimento e Reabilitação de Idosos TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UNIFESP Universidade Federal de São Paulo

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I: UM ESTUDO SOBRE ELEMENTOS NARRATIVOS

CORPORIFICADOS EMERGENTES EM CONSULTAS CLÍNICAS COM

SUJEITOS COM ALZHEIMER ... 15

1.1 A pesquisa inicial e seus desdobramentos ... 15

1.2 Do cérebro ao corpo de quem demencia em interações cotidianas ... 18

1.3 Da linguagem às interações corporificadas: uma forma de conceber o corpo nas interações linguísticas ... 24

CAPÍTULO II – UM CORPUS DEDICADO AO ESTUDO DE ELEMENTOS NARRATIVOS NO ALZHEIMER ... 27

2.1 A trajetória de construção de CENA – Corpus para o Estudo de Narrativas e Alzheimer . 27 2.2 O Mini Mental State: para além de um teste ... 34

2.3 O tratamento de CENA ... 39

2.4 Convenção de transcrição ... 43

2.4.1 Informações gerais ... 43

CAPÍTULO III – A INVESTIGAÇÃO DO CORPUS: RECURSOS MOBILIZADOS EM CONSULTAS CLÍNICAS POR SUJEITOS COM ALZHEIMER ... 50

3.1 Apresentação e descrição dos excertos ... 51

3.1.1 A performance narrativa nos relatos emergentes nas consultas clínicas ... 75

3.1.2 O narrar junto: elementos de memória compartilhada em testes ... 90

3.1.3 A presença ausente: o falar sobre o outro na 3ª pessoa ... 97

3.1.4 Entre testes, histórias e risos ... 106

3.1.5 A tríade médico-paciente-pesquisador ... 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 116

REFERÊNCIAS ... 118

ANEXO 1 – TCLE e autorização de exploração de imagem ... 127

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CAPÍTULO I: UM ESTUDO SOBRE ELEMENTOS NARRATIVOS CORPORIFICADOS EMERGENTES EM CONSULTAS CLÍNICAS COM SUJEITOS COM ALZHEIMER

1.1 A pesquisa inicial e seus desdobramentos

Esta pesquisa é um desdobramento e aprofundamento de um trabalho de pesquisa prévio realizado durante minha pesquisa de Iniciação Científica – IC, no período de novembro de 2016 a outubro de 2017, intitulada “A narrativa emergente em contextos de consulta clínica de pacientes com Doença de Alzheimer: uma investigação da construção intersubjetiva das interações envolvendo patologias de linguagem”. As perguntas lançadas ao longo dessa pesquisa inicial consolidaram a questão central presente nesta Dissertação. Por isso, apresentar um breve histórico desse percurso é importante.

A pesquisa de IC foi realizada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, sob orientação da Profa. Dra. Fernanda Miranda da Cruz (EFLCH/UNIFESP)1. Os resultados da pesquisa de IC foram descritos em formato de relatório entregue para a FAPESP e foram publicados no caderno de resumos do evento 20º Intercâmbio de Pesquisas em Linguística Aplicada de 2015 que ocorreu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)2.

Durante a pesquisa de IC, o meu interesse era analisar o que haveria, do ponto de vista discursivo-interacional, de elementos que nos permitissem explorar analiticamente as relações entre subjetividade e perda cognitiva em interações envolvendo pessoas com diagnóstico de Alzheimer. Para isto, o trabalho de pesquisa foi baseado na análise de um corpus já existente, o Corpus DALI – Doença de Alzheimer, Linguagem e Interação. Esse corpus foi gerado por Cruz (2008) e consistia na coleta de registros de pacientes com Doença de Alzheimer em distintos lugares sociais: foram realizados registros em família, em reuniões de amigos, em instituições, como hospitais ou casas de repouso; com uma

1FRONZA, S. A. A narrativa emergente em contextos de consulta clínica de pacientes com Doença de Alzheimer: uma investigação da construção intersubjetiva das interações envolvendo patologias de linguagem. Processo nº 2016/ 09064-0. FAPESP: São Paulo, 2016.

2 FRONZA, S. A. Operações epilinguísticas como via de investigação da subjetividade em contextos de

Doença de Alzheimer. In: 20º Intercâmbio de Pesquisas em Linguística Aplicada: As múltiplas faces da linguagem. Anais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2015, p. 351.

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variedade de interlocutores: as situações interativas contemplam interações entre pessoas com Alzheimer e seus familiares, amigos, pessoas próximas, em geral, bem como com médicos, e em uma variedade de situações interativas, como conversações ordinárias; atividades de leitura de jornal; situações de almoço em família; jogo de cartas; encontro de amigos; reuniões com o grupo de igrejas; rituais como assistir à missa; orações realizadas antes das refeições; assistir televisão com os familiares; brincadeiras e interações com as crianças do entorno familiar; situações de consulta clínica livre; situações de aplicação de testes diagnósticos e de avaliação neuropsicológica.

O contato com um corpus audiovisual de interações envolvendo pessoas com Alzheimer permitiu-me perceber que durante as consultas clínicas neurológicas com paciente com Alzheimer, mesmo diante de interações estruturadas por meio da atividade de aplicação de testes neuropsicológicos os pacientes narravam e contavam episódios autobiográficos. O corpus DALI expresso em vídeos que capturam tais momentos me levou a querer estar na cena da emergência desses momentos e a construir um corpus de pesquisa, com o intuito de explorar e tomar nota de eventos como as narrativas emergentes durante consultas clínicas.

Esta Dissertação de Mestrado, dedica-se assim a mostrar os movimentos metodológicos e analíticos realizados durante o trabalho de: 1) acompanhar e registrar momentos de consulta clínica de pessoas com Alzheimer; 2) de construir um corpus audiovisual com os momentos de emergência de narrativas ou de elementos narrativos durante tais consultas e, 3) de organizar uma fundamentação teórica para analisar tais momentos.

O corpus gerado nesta pesquisa foi chamado de CENA - Corpus para o Estudo de Narrativas e Alzheimer. Ele possui 5 interações médico-paciente que foram registradas no Ambulatório de Neurologia do Comportamento da Universidade Federal de São Paulo. O corpus será melhor descrito no Capítulo II de Metodologia.

Uma pergunta que me acompanhou durante o trabalho de pesquisa foi: por que acompanhar e registrar situações de consulta clínica em que testes dos estados mentais são aplicados?

Ao olharmos para os momentos de emergências de elementos narrativos em meio à aplicação de teste do estado cognitivo, temos um momento particularmente interessante, pois ele abriga, ao mesmo tempo, de forma contrastante e coexistente, o que se gostaria que fosse uma objetividade isenta da participação das pessoas (tanto do médico quanto do paciente), como é o caso do teste neuropsicológico em sua concepção (MARLAIRE e

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MAYNARD, 1990; MAYNARD e MARLAIRE, 1992), e o que parece ser um lugar central da subjetividade pela linguagem, como é o caso da ação de narrar que emerge.

A narrativa de experiências pessoais que emerge durante situações de consulta clínica ou situações de interação em contexto institucional (CLARK e MISHLER, 2001; MISHLER, 1984; FISHER, 1984; FISHER e TODD, 1983; FRANKEL, 1984; TODD, 1984; MOITA LOPES, 2001), pareceu um campo de observação e estudo importante.

Nesta pesquisa, vimos que mesmo durante os momentos que seriam, do ponto de vista dos objetivos mais específicos daquela situação interativa, que eram aplicar um teste padronizado e impessoal e tomar nota da performance do paciente para aferir sobre sua condição mental e cognitiva, as pessoas traziam elementos narrativos e subjetivos. Esse tipo de situação chama a atenção para o fato de que apesar do teste convidar (ou direcionar necessariamente) o paciente a responder às perguntas de um protocolo neuropsicológico cujo par perguntas/respostas supostamente seria um padrão para qualquer paciente, eles inserem ou permeiam a interação com relatos autobiográficos. Isso faz cada teste aplicado ser único e ter uma configuração emergente e situada ao contexto interacional, ainda que, do ponto de vista clínico, ele seja considerado um teste padrão capaz de deferir um score para o estado mental.

Narrativas ou os elementos narrativos que ali emergem e se intercruzam às perguntas protocolares, insistem em trazer, para a interação estruturada em papéis enunciativos muito fixos (médico pergunta, paciente responde), tanto uma dimensão subjetiva que remete à forma como as pessoas com Alzheimer lidam com sua condição sociocognitiva, tais como as instabilidades da memória e da atenção, quanto uma dimensão intersubjetiva, que diz respeito à própria interação médico, paciente e acompanhante ali presentes. Essas interações parecem indicar que tais interferências subjetivas dentro de uma lógica pretendida mais objetiva convida ou convoca também o médico a desempenhar outros lugares enunciativos para além do papel de aplicar as perguntas de um protocolo padrão. Da mesma forma, os acompanhantes parecem desempenhar papéis enunciativos muito variados.

Com isso, estamos diante não apenas de um protocolo padrão aplicado em uma rotina médica de consulta à pessoas com Alzheimer, mas sim diante de uma questão de linguagem e de interação com o outro. Esses elementos narrativos, ou ainda essas formas narrativas, que poderiam parecer, num primeiro momento ou do ponto de vista clínico-diagnóstico, digressões ou desvios fora dos objetivos específicos da avaliação neuropsicológica e psicométrica das consultas médicas carregam mais significados,

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significaçōes, relaçōes e efeitos durante uma consulta clínica do que simplesmente desvios das perguntas dos testes. Se para as anotações clínicas de desempenho dos testes tais emergências não têm estatuto ou direito a notas, para quem quer pesquisar aspectos da linguagem na Doença de Alzheimer, elas são um tesouro. Tais formas narrativas abre-nos a possibilidade de fazermos uma discussão mais ampla envolvendo a Doença de Alzheimer e as práticas subjetivas e intersubjetivas de pessoas diagnosticadas com Alzheimer diante de uma perda progressiva dos processos e recursos sociocognitivos, tais como a memória, a atenção, as referências temporais e espaciais e a linguagem.

Observei, que os pacientes, algumas vezes, produzem tais elementos narrativos em situações muito recorrentes, como por exemplo, diante de dificuldades enfrentadas durante a realização do próprio teste neuropsicológico. Podemos interpretar que, nesses momentos, os elementos narrativos emergem com funções sociais variadas, dentre as quais, um convite à troca de papéis enunciativos. A troca desses papéis acaba tendo um efeito de quebra da dinâmica interacional do teste, estruturada em perguntas e respostas, as quais eram impessoais e protocolares e passam a abrigar uma estrutura mais próxima de uma conversa cotidiana. Verifiquei ainda que muitos elementos narrativos emergem com ou sem um pedido mais explícito do médico. E ainda, que eles não emergem apenas em momentos que pareciam desconfortáveis para os pacientes, mas podiam emergir alinhados ou não ao que acontecia na dinâmica interacional.

Nesta pesquisa, também percebi que, nos momentos de emergência de elementos narrativos durante as consultas clínicas, o corpo e os gestos dos participantes são tão centrais quanto à fala e mereceram destaque na abordagem sobre interação social e Alzheimer e nas análises, nos convidando a realizar uma chamada análise da ecologia interacional (GOFFMAN, 2011 [1967]) que envolve a fala, o corpo, os gestos e o próprio ambiente físico interacional em que as trocas intersubjetivas com linguagem acontecem e em que os elementos narrativos, que nos interessa explorar, emergem.

Em termos analíticos, me dediquei então a descrever como se apresentam os elementos narrativos que emergem durante contextos específicos de produção dos dados desta Dissertação.

1.2 Do cérebroao corpo de quem demencia em interações cotidianas

“a memória tanto contém quanto transborda, é excesso e falta, constitui a doença de Alzheimer

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ao mesmo tempo em que é insuficiente”

(FERIANI, 2017, p. 536)

Segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), Doença de Alzheimer é definida como

a forma mais comum de demência. O início é insidioso, com comprometimento da memória tipicamente relatado como a queixa inicial. O curso característico é um declínio lento, mas constante, de um nível anterior de funcionamento cognitivo com comprometimento em domínios cognitivos adicionais (como funções executivas, atenção, linguagem, cognição social e julgamento, velocidade psicomotora, habilidades viso-perceptuais ou viso-espaciais) emergindo com a progressão da doença. A demência associada à doença de Alzheimer é frequentemente acompanhada por sintomas mentais e comportamentais, como humor deprimido e apatia nos estágios iniciais da doença, e pode ser acompanhada por sintomas psicóticos, irritabilidade, agressão, confusão, anormalidades da marcha e mobilidade e convulsões em estágios posteriores. Testes genéticos positivos, histórico familiar e declínio cognitivo gradual são altamente sugestivos de demência devido à doença de Alzheimer. (ICD, 2019)

Assim, um provável diagnóstico da doença é feito, segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Fifth Edition (DSM-V), se um dos seguintes critérios estiverem presentes:

1. Evidência de uma mutação genética causadora da doença de Alzheimer na história da família ou teste genético.

2. Todos os três itens a seguir estiverem presentes:

a. Evidência clara de declínio na memória e na aprendizagem e pelo menos um outro domínio cognitivo (com base na história detalhada ou nos testes neuropsicológicos em série).

b. Declínio permanente, gradual e progressivo da cognição, sem planaltos estendidos.

c. Nenhuma evidência de etiologia mista (ou seja, ausência de outra doença neurodegenerativa ou cerebrovascular ou outra doença ou condição neurológica, mental ou sistêmica que provavelmente esteja contribuindo para o declínio cognitivo). (DSM-V, 2013, p. 611)

A história da descoberta clínica da Doença de Alzheimer (doravante, DA), normalmente, é datada a partir de 1907, quando Alois Alzheimer, neurologista alemão, a descreveu pela primeira vez (HAMILTON, 1994, p. 6).

Segundo a antropóloga Leibing (1998), Alois Alzheimer descobriu a demência pré-senil diferenciando-a da demência pré-senil. A demência pré-senil era vista como parte do processo de envelhecimento e condizia com sintomas cognitivos. Já a demência pré-senil descrita pelo neurologista afetava também indivíduos de meia-idade e, portanto, não estava ligada somente à velhice.

Na publicação intitulada “Sobre um adoecimento estranho do córtex cerebral” de 1907, o neurologia descreveu que o processo pré-senil foi observado em uma mulher de 51

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anos. Essa paciente apresentava-se com sintomas primários de ciúme exagerado do marido e, durante os mais 5 anos que viveu, sintomas de alucinações, amnésia, afasia, apraxia e agnosia. Após a morte da mulher, aos 56 anos, Alois Alzheimer encontrou placas neuríticas e emaranhados fibrilares típicos no cérebro da mulher. Todavia, até aqui, Alois Alzheimer não sabia que tinha descoberto algo novo, pois tanto as placas neuríticas como os emaranhados fibrilares típicos já haviam sido descritos antes por Redlich (1898) e Bianchi e Fuller, respectivamente (BERRIOS, 1995 apud LEIBING, 1998). Assim, Alzheimer concluiu que as placas não seriam a causa da demência senil, mas um fenômeno que acompanhava a evolução do sistema nervoso central. Essa fase de investigação da Doença de Alzheimer gerou muitas dúvidas, não sugeriu nenhuma resolução e acabou por deixar os estudos sobre a demência de Alzheimer em uma fase de “latência”, segundo Bauer (1994 apud LEIBING, 1998).

Foi em 1910, 5 anos antes da morte do neurologista alemão, Alzheimer, que seu amigo e colega, Kraepelin, cunhou o termo “Doença de Alzheimer” para nomear o estado pré-senil estudado pelo amigo. Ainda assim, Kraepelin registrou com algumas dúvidas a descrição clínica da doença como uma patologia relacionada à senilidade ou ao envelhecimento, e já preconizava que ela poderia ser mais ou menos independente da idade.

“A interpretação clínica desta doença de Alzheimer ainda é confusa. Enquanto os achados anatômicos estão sugerindo de que se trata de uma forma especialmente grave da demência senil, o fato de que a doença, às vezes, começa por volta dos 40 anos não permite esta suposição. Neste caso, deveríamos assumir um “senium praecox” ou um processo patológico único, mais ou menos independente da idade.” (cit. em Pollen, 1996: 27). (LEIBING, 1998, p. 5. Ênfase original)

Portanto, o achado de Alzheimer estava em perceber que os problemas cognitivos, as placas neuríticas e os emaranhados fibrilares também podiam ser encontrados em pessoas que ainda não estavam na velhice e, assim, não podiam se enquadrar como possuidoras de demência senil, já que esta estava relacionada a um processo de envelhecimento. Com isso, o que o neurologista encontrou não podia ser enquadrado como uma demência precoce, por exemplo, mas sim uma doença nova com um processo patológico diferente do processo da demência senil.

Entre 1920 e 1960, ocorreu uma espécie de abandono das descobertas de Alois Alzheimer, que só foram retomada em 1960 como parte dos estudos do neurologista. Nesta época, os estudos sobre a Doença de Alzheimer receberam influência da psicanálise (ROTHSCHILD, 1937) e assim passou a incluir a pessoa que lida com a doença e não mais

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apenas um processo patológico no cérebro. Com essa influência da psicanálise passou-se a se considerar um discurso sobre a pessoa com Alzheimer: “a pessoa inteira com sua história de vida e suas experiências do dia-a-dia e suas reações frente a essas experiências, especialmente na idade avançada” (ROTHSCHILD, 1937 apud LEIBING, 1998, p. 7. Ênfase original).

Mesmo com o interesse que a Doença de Alzheimer veio a despertar nos anos 1960, a velhice como objeto de estudo, ainda não despertava entusiasmo. Somente entre 1973 e 1975 esse cenário teve uma mudança. Freedman, Kaplan e Sadock compararam a Doença de Alzheimer com a demência senil e a consideraram como a “doença do século” ou “a maior ameaça para a saúde pública” (LEIBING, 1998, p. 8). Ainda entre 1973 e 1975, para que a Doença de Alzheimer fosse considerada uma doença grave e assim surgissem financiamentos de pesquisa sobre medicamentos, optou-se por estabelecer a demência senil e a pré-senil com o nome de “Doença de Alzheimer”.

Hoje em dia, apesar da causa da Doença de Alzheimer ser ainda desconhecida, possíveis candidatos a serem diagnosticados com a doença são aqueles que apresentam fatores genéticos, anormalidades cromossômicas, vírus de ação lenta ou dominante, acumulação de toxinas ambientais, como alumínio, ou até mesmo uma combinação desses fatores (HAMILTON, 1994, p. 7).

Como mostrou Cruz (2008), tradicionalmente, a DA tem sido um objeto de investigação do campo das pesquisas biomédicas, particularmente, do campo das pesquisas neurológicas e neuropsicológicas. A história da investigação da Doença de Alzheimer (BALLENGER, 2006; BEACH, 1987, BERRIOS, 1990; HOLSTEIN, 1997) mostra como, desde sua descoberta oficial, em 1907, até os dias de hoje, grande atenção tem sido dada aos fatores biológicos e neurológicos característicos dos quadros demenciais. Esse tipo de abordagem confirma a primazia do cérebro e de suas estruturas neurológicas sobre a mente na investigação e na compreensão de patologias como a DA.

Ainda em Cruz (2008), essa primazia do cérebro aparecia como crítica desde os primeiros estudos sobre a DA. Rothschild (1937) e seus colaboradores, por exemplo, que estudavam a demência senil nos moldes e procedimentos dos estudos da sua época, consideravam que seu estudo corria o risco de ser reducionista se não fossem considerados os fatores que estivessem para além de, ou associados à, fatores biológicos como as placas e as alterações neurofibrilares. Lock (2006), em seu artigo Seduced by Plaques and Tangles: Alzheimer’s Disease and the Cerebral Subject, destaca as passagens de Rothschild sobre a “grande preocupação com a patologia cerebral”, ao passo que as mudanças na

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verdade ocorreriam na vida, ‘as pessoas funcionando mentalmente em reação a uma dada situação, incluindo a orgânica, de diversas formas’.” (Rothschild, 1937, apud Lock, op.cit. p.7).

Embora a história da investigação da Doença de Alzheimer e a própria Doença de Alzheimer, em sua natureza neurodegereativa, nos remetam quase imediatamente a dimensões mentais, neurológicas e psíquicas, também podemos encontrar perspectivas menos mentais, internalistas e mais corporificadas sobre a Doença de Alzheimer. Esse deslocamento parece central para compreender uma dimensão sociocognitiva de práticas cotidianas envolvendo pessoas com Alzheimer, seu entorno próximo e o mundo (com todas as injunções sobre normal x patológico; demência; perda memória; corpo x mente).

Kontos e Martin (2013) sugerem que a entrada para os estudos que buscam explorar o corpo na demência pode se dar por um fato proeminente sobre os seres humanos que é “eles têm corpos e eles são corpos.3” (KONTOS e MARTIN, 2015, p. 288. Tradução minha). A partir disso, elas constroem a ideia de que “O corpo é central para nossa vida cotidiana e para a ordem social mais ampla. A ordenação temporal e espacial da vida cotidiana e das rotinas são estruturadas em torno do cuidado do corpo4” (ibidem, p. 289). A corporificação apresenta múltiplos significados e, dentre eles, estão as experiências, as percepções e interações sociais que este corpo constrói.

No entanto, as autoras reconhecem que o foco no corpo e na performance desse corpo em interações já foi, por muito tempo, deixado de lado, a não ser que houvesse algum aspecto bioquímico relacionado a ele, como por exemplo, comprometimento físico funcional, quedas, comportamentos perturbadores ou errantes, tratando, assim, mente e corpo como entidades distintas e independentes e, portanto, deveriam ser tratadas separadamente na demência (KONTOS, 2004, 2005).

A partir disso, Kontos e Martin (2013) procuram demonstrar o que se tem feito em trabalhos que reconhecem a importância da inclusão ou consideração do corpo no estudo das demências. Um dos tópicos relevantes para o estudo do corpo em casos de demência, e que se relaciona muito com esta pesquisa, é o conceito de personalidade (selfhood) e as dimensões que podem ser atribuídas a ele em relação ao corpo. O conceito de personalidade expresso em uma perspectiva corporificada amplia-se para o conceito de “embodied selfhood” ou “personalidade corporificada” desenvolvido por Kontos (2004, 2005, 2006,

3 “they have bodies and they are bodies”.

4 “The body is central to our everyday life and the wider social order. The temporal and spatial ordering of daily life and routines are structured around the care of the body.”

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2012 apud KONTOS e MARTIN, 2013), que reflete as formas de estar-no-mundo ao se examinar a personalidade.

Essa é uma perspectiva que procura enfatizar a natureza ativa e a ação do corpo, ambas as quais são de suma importância para a compreensão das formas incorporadas de estar-no-mundo. Assim, a personalidade refletida ou investigada a partir do corpo pode representar algo mais natural ou algo voluntário, isto é, impulsos ou movimentos corporais controlados, como gestos. Os gestos enfatizam mais do que a expressão natural do corpo e o ambiente sócio-cultural que o indivíduo está inserido. (KONTOS e MARTIN, 2013, p. 291).

Matthews (2006) [no capítulo “Dementia and the identity of the person”, que compõe o livro Dementia: Mind, meaning and the person (Hughes; Louw; Sabat, 2006)] baseia-se na noção de "corpo-sujeito" de Merleau-Ponty para argumentar que os aspectos da pessoalidade (personhood) são sedimentados nos hábitos do corpo e, portanto, persistem mesmo com grave comprometimento cognitivo.”5

(KONTOS e MARTIN, 2013, p. 290. Tradução minha).

Reconhece-se aqui a base do pensamento de que o corpo constitui um lugar significativo de construção e de expressão de marcas subjetivas, uma vez que o corpo expressa, de diversas formas, as experiências e as percepções pessoais de um indivíduo. Admitindo isso, como o corpo poderia então ser uma das formas de se investigar a pessoalidade, as relações intersubjetivas e as relações sociocognitivas das perdas nas demências?

Um exemplo para a pergunta feita está em abordagens sobre o narrar na demência. McLean (2006) argumenta que “longe da falta de sentido e da irrelevância do discurso na demência, a coerência pode ser produzida no processo da performance de narrar uma história de vida.”6 (MCLEAN, 2006 apud KONTOS e MARTIN, 2013, p. 290. Tradução minha). Essa perspectiva se alinha a de Hydén (2013a, 2013b) quando o autor analisa a coerência discursiva na performance narrativa de pessoas com demência. Ainda na perspectiva do corpo como central no estudo da personalidade/pessoalidade, Twigg (2010, em seu estudo “Clothing and dementia: A neglected dimension?”), ressalta a importância do vestuário como uma forma de sinalizar para o mundo algo de nossa identidade ou personalidade, “as roupas estão localizadas nas relações sociais e no ambiente do vestuário

5 Matthews (2006) draws upon Merleau-Ponty’s notion of ‘body-subject’ to argue that aspects of personhood are sedimented in habits of the body, and they thus persist despite severe cognitive impairment.

6 far from the assumed meaninglessness and irrelevance of speech in dementia, coherence can be produced in the process of performing a life story.

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pessoal em que a memória, a identidade e as relações sociais estão interconectadas7” (TWIGG, 2010 apud KONTOS e MARTIN, 2013, p. 291. Tradução minha).

Estes estudos evidenciam como direcionar um olhar para o corpo de uma pessoa que demencia pode nos levar a atribuir diferentes significados para seu comportamento e como o foco dado ao corpo pode refutar a ideia de que o discurso de um demente seja incoerente ou inexistente.

Para Downs (2013), do ponto de vista dos cuidados com pessoas com demência, uma perpectiva corporificada também tem implicaçōes importantes para a forma como pensamos que as pessoas com Alzheimer experimentam os processos de perdas cogntivas e mentais com seus corpos.

quando adotamos uma perspectiva corporificada da individualidade, isso significa que reconhecemos que cada pessoa de quem cuidamos é um indivíduo com perspectivas únicas e desejos únicos que são experimentados e comunicados através do corpo, mesmo quando a comunicação verbal é prejudicada8. (DOWNS,

2013, p. 369. Tradução minha)

O corpo também é peça chave nas interações, pois delas participam pessoas e, como disse Kontos e Martin (2013): os seres humanos, todos, têm corpos e são corpos.

1.3 Da linguagem às interações corporificadas: uma forma de conceber o corpo nas interações linguísticas

Recentemente tem-se identificado um movimento chamado de virada corporificada (embodied turn - NEVILE, 2015; MONDADA, 2016). Segundo Mondada (2016), esse movimento propõe a inclusão da corporificação nos estudos interacionais, isto é, como as pessoas se comunicam, constroem e organizam suas interaçōes. Uma perspectiva corporificada se volta para toda ecologia das atividades em que se engajam as pessoas, incluindo o ambiente material e espacial, o corpo e a linguagem. Estes estudos constituem uma tentativa de integrar estudos prévios sobre linguagem e novos estudos sobre o corpo e

7 clothes are located in social relations and in the environment of the clothed self in which memory, identity and social relationships are interconnected.

8 When we adopt an embodied perspective on selfhood, it means we recognise that each person we care for is an individual with unique perspectives, wishes and desires that are experienced and communicated through the body, even when verbal communication is impaired.

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promover abordagens multimodais da interação. Além disso, como acrescenta Cruz (2018a) a partir do conceito de virada corporificada descrita por Mondada (2016):

Uma perspectiva multimodal oferece assim a possibilidade de fazermos uma descrição desses vários tipos de recursos multimodais mobilizados na interação dentro de um enquadre analítico (o sociointeracional) que reconhece a diversidade e a especifi[ci]dade sistêmica desses recursos semióticos usados pelos participantes na interação, ao mesmo tempo em que se preocupa em compreender e descrever como tais recursos interagem uns com os outros para construirmos localmente nossas ações, dentre elas, a fala-em-interação. Esses recursos seriam de naturezas semióticas distintas: linguísticos (aspectos gramaticais, prosódicos, sintáticos, entonacionais e léxicais, por exemplo); corporais (posturas corporais, gestos, direcionamentos do olhar, mímica facial, movimentos da testa, postura do corpo, etc) e materiais (relações múltiplas que temos de manuseio, referência, percepção de objetos, sensorialidade com elementos do espaço físico). (CRUZ, 2018a)

Adotar uma perspectiva multimodal das interações verbais significa levar em conta o corpo inteiro, já que os movimentos corporais são de suma relevância para a própria organização da fala-em-interação. Os estudos nessa direção (Mondada, 2016) têm mostrado que os movimentos do corpo são coordenados temporalmente na estrutura da conversa e as respostas interacionais podem ocorrer por meio da fala ou corporalmente, ou seja, por distintas modalidades. Para essa perspectiva, não haveria uma hierarquia entre as modalidades, ou seja, em uma interação, a modalidade verbal não seria mais importante ou mais significante do que a modalidade corporal.

Ao olhar as interações envolvendo pessoas com Alzheimer a partir de uma perspectiva corporificada, suspeita-se que é possível contribuir para dar visibilidade ao corpo de quem demencia, deslocando-se de uma visão logocêntrica, que aposta muitas fichas nas relações entre mente e linguagem, para uma visão corporificada, que busca formas de integrar (pelo menos metodologicamente) corpo e mente, apartados no discurso científico-filosófico ocidental. Uma perspectiva corporificada das interações pode nos ajudar a pensar a pessoa com Alzheimer em suas práticas cotidianas, com seu corpo presente, com suas memórias que escapam, com sua experiência de narrar nas ruínas da narração (GAGNEBIN 2004 apud FERIANI, 2017). Com isso, é possível pensar para além de uma realidade nosológica, isto é, uma patologia sem corpo e sem sujeito.

Do ponto de vista linguístico-interacional, o corpo, os gestos, os movimentos corporais são recursos interacionais não menos importantes do que a fala. Esses recursos podem desempenhar um papel comunicativo que resulta em uma visão holística do discurso de uma pessoa com Alzheimer, que pode apresentar, talvez, alguma fala fragmentada em decorrência dos déficits cognitivos ocasionados pela doença.

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O que se propõe com essa discussão de uma abordagem mais corporificada e que considera uma dimensão intersubjetiva das práticas de pessoas com Alzheimer pode ser uma visão menos logocêntrica das atividades em que se engajam essas pessoas e que possibilita ver como a interação se organiza entre a pessoa com DA e os demais participantes. Além disso, podemos compreender a construção intersubjetiva da linguagem em contextos de consulta clínica. Pensar em uma performance narrativa ajuda a englobar esses elementos do corpo, do narrar e do construir uma dimensão subjetiva junto com o outro. A performance do narrar é justamente isso, é pensar numa narrativa, seja em rastros, fragmentos ou ruínas, que emerge em uma interação e é construída junto com os interlocutores e que acontece não só por meio da fala, mas também com gestos, movimentos corporais, expressões faciais, pelo espaço físico e também com risos. Este último, me pareceu central para investigar uma performance narrativa, na medida, ao analisar o corpus desta pesquisa, muitos elementos narrativos estavam acompanhados pelo riso.

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CAPÍTULO II – UM CORPUS DEDICADO AO ESTUDO DE ELEMENTOS NARRATIVOS NO ALZHEIMER

2.1 A trajetória de construção de CENA – Corpus para o Estudo de Narrativas e Alzheimer

A trajetória metodológica desta pesquisa se iniciou em 19 de abril de 2018 com uma reunião a quem eu e minha orientadora participamos junto à Profa. Dra. Claudia Berlim, docente do Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNIFESP), e sua futura orientanda (na época) Gisele Garofalo. Gisele estava prestando o processo seletivo para ingresso no programa de pós-graduação de nível mestrado em Psicobiologia com a orientação da Profa. Claudia. Gisele e eu apresentávamos um interesse em comum de registrar consultas e testes realizados por pessoas diagnosticadas com Doença de Alzheimer e, portanto, nesta reunião estabelecemos uma parceria de trabalho nas etapas de registro. Os registros seriam realizados no SARI – Serviço de Atendimento e Reabilitação de Idosos – do Centro Paulista de Neuropsicologia (CPN) da Universidade Federal de São Paulo.

No entanto, é importante situar os momentos em que nos encontrávamos, cada uma em sua pesquisa. Eu havia iniciado o mestrado em março de 2018 e estava à procura de iniciar um campo de trabalho e Gisele tinha seu início de campo programado para fevereiro de 2019. Apesar das diferenças em nossos cronogramas de trabalho, estabelecemos contato, marcarmos reuniões e buscamos datas em comum para os registros que pretendíamos fazer. Para esta pesquisa, o diagnóstico de Doença de Alzheimer era o único critério de inclusão, não importando o grau (leve, moderado, avançado) da doença, principalmente para que pudéssemos ver as produções narrativas nas diferenças que a DA proporciona. Para a pesquisa em parceria, o interesse estava nos efeitos da música na memória de pessoas com Alzheimer em estado moderado, assim, os participantes não poderiam ter conhecimento musical prévio, audição baixa e alguns outros problemas de saúde, como epilepsia, doenças crônicas, doenças hormonais, problemas psiquiátricos, entre outros.

Com os critérios de exclusão da pesquisa em parceria, o tempo de recrutamento dos participantes acaba sendo maior e, se pensarmos nas questões de cronograma, minha pesquisa tinha um período de tempo mais curto para realizar-se em relação à pesquisa de Gisele.

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Com o passar dos meses, tendo esse cenário em vista, procurei, durante algum tempo, outras instituições que atendessem pessoas com diagnóstico de DA e pudessem me receber. Dentre os locais consultados estavam casas de repouso, centros de referência de idosos e ambulatórios. Ao final de algumas investidas, o local que me recebeu foi o Ambulatório de Neurologia do Comportamento da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/UNIFESP).

Após contato via e-mail com o coordenador do Ambulatório, marcamos uma reunião para o dia 28 de agosto de 2019. Abaixo, trago minhas notas que fiz em meu caderno de campo sobre esse primeiro dia:

Notas do caderno de campo de 28.08.19

Primeiro dia de campo. Às 7h30, pego câmera e tripé e saio de casa cheia de ansiedade.

Uma hora e meia depois, eu chego no hospital, desconcertada e sem saber o que fazer, pergunto na recepção pelo coordenador, aquele com que combinei de me reunir na manhã desta quarta-feira. O recepcionista diz ser novo e não o conhecer. Pede que eu espere em uma fila para falar no balcão. A fila é de pacientes impacientes e cheios de questões. Me junto a eles e também me torno impaciente. Em poucos minutos já nos unimos a reclamar da fila e da falta de informação

Por volta das 9h30, finalmente chego ao balcão. Pergunto pelo coordenador e me apresento como mestranda. O moço da recepção me indica onde ir e eu sigo desordenada e meio tímida pelos corredores. Vejo alguns médicos no corredor e pergunto novamente pelo coordenador. Me informam que ele ainda não havia chegado. Mas que ele virá para a sala de reuniões, que se encontra atrás de mim, quando ele chegar. Assim, aguardo no corredor, ao lado da tal sala de reuniões.

Às 10h00, chega o coordenador. O reconheço apenas porque verifiquei sua aparência no Google Imagens, eu não podia deixá-lo escapar depois de tantos obstáculos para encontrá-lo. O cumprimento e pergunto se posso lhe falar depois. Ele diz que sim e entra na sala de reuniões, seguido pela porta que se fecha atrás dele.

Aguardo. Dois minutos depois ele sai da sala e se dirige a mim. Eu me apresento. Refresco sua memória quantos aos meus e-mails. Ele diz se lembrar e me convida a segui-lo; eu vou. Chegamos até outra sala. Ele me convida a sentar

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em frente a ele, em uma mesa circular que lembra uma Lan house (ou talvez algo mais atual), por conta dos computadores que estão em cima.

Ele pede que eu explique meu trabalho novamente e começa a me explicar acerca da aparência do Alzheimer nos hipocampos e me explica um pouco a dinâmica do lugar.

Depois de alguns minutos, me convida a segui-lo novamente. Voltamos a sala de reuniões. Ele entra, eu espero na porta meio receosa. Ele me convida a entrar. Eu procuro um lugar para sentar em meio a tantas cadeiras ocupadas por médicos. Me sento e aguardo. Ele pega seu computador, conversa, escreve, fala comigo, volta a escrever. Essa dinâmica ocorre durante um bom tempo.

Passado esse tempo, ele me apresenta e pede que eu me apresente para os médicos. Eu falo, eles escutam e nada comentam. Passo a esperar novamente. Ele sai, eu fico. Os médicos conversam entre si e eu apenas observo, mais uma vez, deslocada.

Ele volta, conversa mais com os médicos e eu observo. Ele pede que outro médico me apresente aos "Fellows" (nome que apenas compreendi depois de algum tempo). Este demora minutos e até mesmo horas para fazer a tão esperada apresentação. O coordenador já está em sua dinâmica habitual de ir e vir. E eu aguardo a tal apresentação.

Perto do meio dia, enfim, quando o coordenador relembra o outro médico da apresentação, ele me apresenta a uma das Fellows. Eu converso com ela. Explico a pesquisa e ela se mostra super aberta a fazermos juntas. Combino com ela de voltar na próxima terça e ela concorda.

Após essa conversa, me parece estranho permanecer no local e ao mesmo tempo me parece inconveniente sair. Espero mais. Até que o coordenador retorna com um possível orientando de mestrado. O coordenador apresenta todos da sala a ele e o possível orientando também se apresenta. O coordenador e o possível mestrando conversam e eu aguardo mais.

Às 13h00, encerram-se os trabalhos. Me sinto aliviada e saímos todos juntos da sala.

Cada um segue seu rumo

No dia 28 de agosto de 2019, iniciei, portanto, meu trabalho de campo que se estendeu até o dia 19 de novembro de 2019. Durante este período, construí um corpus a que dei o nome de CENA – Corpus para o Estudo de Narrativas e Alzheimer. Para o CENA, foram registradas, em vídeo, 5 interações em contexto de consulta clínica, onde estavam

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presentes médica, paciente com DA, um ou dois acompanhantes e, por vezes, algum médico residente. As 5 interações aconteceram com famílias diferentes. Os registros somam aproximadamente 5 horas e 32 minutos.

Abaixo, seguem as tabelas com as informações de cada uma das pessoas que participaram da pesquisa. Esses dados estavam descritos nos prontuários de cada paciente. Dados como idade, score no MMS e grau da doença se aplicam à data em que o registro foi realizado. Os nomes fornecidos na tabela são todos pseudônimos para preservação da identidade dos participantes da pesquisa

Tabela 1 - Dados sociolinguísticos do participante 01

Participante 01

Nome Antônio

Idade 75 anos

Escolaridade 11 anos

Profissão Feirante, gerente

Sexo Masculino

Grau da doença Leve

Score no MMS 24/30

Acompanhante Iris (esposa) e Alice (nora)

Data de registro 04/10/2019

Médica responsável pelo atendimento

Dra. Julia

Duração da consulta 01h07m22s

Tabela 2 - Dados sociolinguísticos do participante 02

Participante 02

Nome Geraldo

Idade 79 anos

Escolaridade 12 anos

Profissão Contador, Representante comercial, Gerente, Corretor de imóveis

Sexo Masculino

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Score no MMS 18/30

Acompanhante Ivana (esposa) e Adriane (ex-nora)

Data de registro 22/10/2019

Médica responsável pelo atendimento

Dra. Julia

Duração da consulta 46m57s

Tabela 3 - Dados sociolinguísticos do participante 03

Participante 03

Nome Marina

Idade 85 anos

Escolaridade 9 anos

Profissão Dona de casa

Sexo Feminino

Grau da doença Moderado

Score no MMS 28/30

Acompanhante Ana (filha) e Anita (cuidadora)

Data de registro 29/10/2019

Médica responsável pelo atendimento

Dra. Bianca

Duração da consulta 01h10m02s

Tabela 4 -Dados sociolinguísticos do participante 04

Participante 04

Nome Eliane

Idade 75 anos

Escolaridade 2 anos

Profissão Dona de casa

Sexo Feminino

Grau da doença Moderado

Score no MMS 14/30

Acompanhante Amanda (filha)

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Médica responsável pelo atendimento

Dra. Bianca

Duração da consulta 54m31s

Tabela 5 - Dados sociolinguísticos do participante 05

Participante 05 Nome Yara Idade 75 anos Escolaridade 2 anos Profissão Costureira Sexo Feminino

Grau da doença Moderado

Score no MMS 23/30

Acompanhante Felipe (filho) e Daniele (nora)

Data de registro 19/11/2019

Médica responsável pelo atendimento

Dra. Patrícia

Duração da consulta 01h12m45s

O atendimento no Ambulatório acontecia às terças, quartas e sextas-feiras das 08h00 às 13h00. Já os registros se deram às terças e sextas, que vieram a ser dias mais viáveis para gravação. Às quartas, o local era superlotado com poucos consultórios disponíveis e muitos médicos, que acabavam impossibilitados de atender. Por isso, optei por comparecer apenas às terças e sextas.

O Ambulatório de Neurologia do Comportamento atende casos neurológicos variados em todos os seus dias de funcionamento, assim, não havia um dia específico de atendimento de pacientes com Doença de Alzheimer, era necessário meu comparecimento ao local para saber quais pacientes seriam atendidos no dia. Dessa forma, muitas das minhas idas até lá não coincidiram com agendamento de pacientes com DA, prolongando o período de registro do corpus.

A rotina de um dia de Ambulatório consistia na chegada dos Fellows, médicos responsáveis pelos atendimentos do Ambulatório, entre 08h30 e 09h00. Eram aproximadamente 5 Fellows, variava de semana para semana. Em seguida, os mesmos

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pegavam o prontuário de um paciente e o chamavam para iniciar a consulta. Os prontuários iam sendo escolhidos pela ordem de marcação das consultas na agenda. De minha parte, conforme a escolha dos prontuários, era necessário que eu verificasse, com cada Fellow, se o caso do dia seria uma pessoa que apresentasse diagnóstico de DA.

Quando nenhum dos pacientes agendados apresentava DA, minha atividade consistia em observar as discussões dos demais casos, como Demência Vascular e Doença de Lewy. As discussões eram feitas após a apresentação do caso pelo Fellow responsável por ele. Os professores que estavam presentes escutavam e questionavam o caso para que fosse feito um diagnóstico, se ainda não houvesse um, e o tratamento fosse mantido ou alterado dependendo das queixas apresentadas pelo paciente e seu(s) familiar(es).

Já nos dias em que havia um paciente com DA, primeiramente, eu pedia autorização da médica responsável pela consulta e da(o) residente que iria acompanhá-lo, quando era o caso, para que eu pudesse registrar e permanecer no consultório. Em segundo lugar, eu me identificava e apresentava a minha pesquisa para o paciente e seu(s) acompanhante(s). Informava sobre as filmagens e pedia que assinassem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e Autorização para registro e exploração de dados de vídeo do projeto (ver Anexo 1), documento que foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo (CAAE nº 15748719.0.0000.5505)

.

Após a autorização de todos os presentes na sala para as filmagens e para a minha permanência na sala, a câmera com tripé era posicionada em um dos cantos da sala que não perturbasse a atividade de consulta. A consulta acontecia normalmente seguindo o protocolo médico e sem interferências maiores da minha parte, além de minha presença, que talvez não fosse tão pequena assim como supunha no início, como será discutido no item 5 dedicado às análises.

As consultas seguiam mais ou menos uma sequência fixa que podia se alterar dependendo se era a primeira consulta do paciente no Ambulatório ou se era um retorno. Eu acompanhei uma primeira consulta para observar se haveria alguma diferença. No entanto, para esta pesquisa, apenas retornos de consultas eram possíveis de serem incluídos, já que somente com mais de uma consulta um diagnóstico pode ser feito.

Nessa primeira consulta que acompanhei, foi possível observar que este primeiro contato com o Ambulatório é mais longo, chegando a quase 3 horas de atendimento. O médico precisa preencher todos os dados do paciente, anotar as queixas, medicamentos que toma atualmente, precisa registrar histórias que convenceram a família de que seria digno

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de observação médica, situação familiar de moradia e relacionamentos, alimentação, rotinas etc. Em seguida, é feita a aplicação do teste MMS (Mini Mental State – FOLSTEIN et al., 1975), que será apresentado com mais detalhes mais adiante, e uma combinação de outros testes neuropsicológicos, para que tenham um score a ser discutido mais tarde com os professores na tentativa de um diagnóstico. Além disso, também é feito um exame físico das habilidades motoras, que consiste em uma série de testes. Ao fim dessas 3 etapas, que por si só já são mais longas que uma consulta de retorno, quando o caso é discutido pelo Fellow responsável e pelos professores, a discussão também se torna mais demorada tendo em vista que é necessário um diagnóstico preliminar e a atribuição de novos medicamentos.

As consultas de retorno apresentam uma estrutura similar (informações pessoais + testes neuropsicológicos + exame físico), porém, as informações pessoais são apenas confirmadas e não precisam ser preenchidas no prontuário, apenas se tiver alguma alteração. Na maioria dos casos, o exame físico também não é repetido, apenas o MMS e os outros testes neuropsicológicos. Dessa forma, a consulta dura entorno de 1 hora a 1 hora e meia.

Os registros que constituíram o Corpus CENA foram, portanto, as consultas de retorno. Como dito acima, as consultas de retorno consistiam na aplicação do teste MMS, dentre outras coisas, para verificação da evolução do quadro da doença e, por isso, se faz necessário uma breve explicação do que consiste o teste e de sua estrutura para que se tornem mais claras as análises que foram feitas a partir dos registros das interações que apresentam esse contexto com aplicação de teste.

2.2 O Mini Mental State: para além de um teste

Para que um diagnóstico de demência seja atribuído é necessário uma série de exames: físicos, de imagem e testes cognitivos, de memória, linguagem, orientação etc. Para Myrberg, Hydén e Samuelsson (2019), os testes cognitivos desempenham um papel importante e são essenciais para o diagnóstico e observação da progressão da doença.

O Mini Mental State ou MMS (Folstein et al., 1975) é um desses testes aplicados em suspeitas e casos de DA. Ele é uma avaliação de triagem psicométrica utilizado para mapear funções cognitivas. Ele foi projetado para uso clínico no processo de diagnóstico nas avaliações de demência e é reivindicado para facilitar a avaliação da progressão e

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gravidade. O MMS avalia várias funções cognitivas, incluindo memória, atenção e linguagem. Na avaliação da demência, o MMS é apenas uma parte do exame, que também inclui outros testes, um exame físico, a história e os sintomas do paciente (MYRBERG, HYDÉN e SAMUELSSON, 2019).

O MMS é considerado, na literatura clínica (MYRBERG, HYDÉN e SAMUELSSON, 2019) um exame rápido e fácil de ser manipulado, pois tem uma escala padronizada e já foi traduzido para diversas línguas, incluindo o português. Ele inclui 6 categorias, que são:

a) Orientação (10 pontos)

b) Registro de palavras (3 pontos) c) Atenção e cálculo (5 pontos) d) Recordação de palavras (3 pontos) e) Linguagem (8 pontos)

f) Cópia (1 ponto)

A pontuação ou score varia, portanto, de 0 a 30 pontos.

O teste completo pode ser verificado no Anexo 2 deste trabalho.

De acordo com Folstein et al. (1975), há ainda uma pontuação de corte para indicar prejuízo cognitivo:

a) 27-30 pontos: indica funcionamento cognitivo normal. b) 23-26 pontos: indica prejuízo cognitivo moderado. c) 0-22 pontos: indica prejuízo cognitivo severo.

Contudo, autores como Bertolucci et al. (1994), Caramelli e Nitrini (2000) e Brucki et al. (2003) sugerem modificações na pontuação de corte dependendo do grau de escolaridade. Para Brucki et al (2003), por exemplo, as notas seriam:

a) 20 pontos para analfabetos

b) 25 pontos para escolaridade de 1 a 4 anos c) 26,5 para escolaridade de 5 a 8 anos d) 28 para escolaridade de 9 a 11 anos e) 29 para escolaridade maior que 11 anos

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Se do ponto de vista clínico-diagnóstico o MMS é um teste de aferição do estado cognitvo, para o presente este ele recebe um lugar distinto. A aplicação do MMS, e de qualquer outro teste do estado cognitivo, acontece em uma interação médico-paciente. Assim, entre as perguntas protocolares muitas coisas podem acontecer. O momento do teste abriga ao mesmo tempo, de forma contrastante e coexistente, o que se gostaria que fosse uma objetividade isenta da participação das pessoas (tanto do médico quanto do paciente), como é o caso do teste neuropsicológico em sua concepção, e o que parece ser um lugar central da subjetividade pela linguagem, como é o caso dos possíveis elementos narrativos que podem emergir.

Um exemplo pode ser observado no filme espanhol de Maria Ripoll, Viver duas vezes (2019). Este filme conta a história de um professor universitário de matemática, já aposentado, chamado Emilio. Emilio, ao se deparar com problemas de memória em sua rotina habitual, vai ao médico e recebe um diagnóstico de Alzheimer. O que quero ressaltar com este filme são os momentos em que Emilio faz os testes neuropsicológicos. O personagem realiza os testes três vezes no decorrer da história: 1) teste em estágio inicial da doença, 2) teste em estágio moderado e 3) teste em estágio avançado. Na primeira situação de teste, Emilio fica irritado com as perguntas e parece considerar um absurdo as contas de subtrair pedidas no teste, já que ele foi, durante sua vida toda, professor de matemática. O próprio Emilio introduz esses elementos autobiográficos em forma de narrativos para o momento de aplicação do teste. Na segunda situacão de teste, há uma mudança significante em relação ao primeiro. Emilio já não vai sozinho ao médico, sua filha Julia o acompanha. Essa mudança é bastante importante, pois é Julia que, quando vê a dificuldade do pai ao responder as perguntas sobre operações matemáticas, leva ao teste aqueles elementos narrativos. É a filha que conta à examinadora que seu pai foi professor de matemática por muito tempo e, enquanto ela conta isso à examinadora, seu pai vai se lembrando das respostas. Já na terceira situação de teste, Emilio parece mirar um vazio e não responde mais às perguntas e, por último, diz algo sem relação apreensível com a interação.

Neste filme e também nas interações que pude presenciar durante a pesquisa, foi possível observar uma infinidade de possibilidades que podem surgir entre uma pergunta do médico e uma resposta do paciente. De alguma forma durante a interação com a aplicação de um teste, algum dos participantes pode trazer elementos narrativos para esclarecer, ajudar ou justificar algo que aconteceu na dinâmica pergunta-resposta.

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