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2 REVISÃO DA LITERATURA

2.3 Transtornos Invasivos do Desenvolvimento

2.3.2 Histórico do Autismo Infantil e Síndrome de Asperger

A primeira descrição dessa síndrome foi realizada em 1943 por Léo Kanner sob o nome de "Distúrbios do Contato Afetivo". Ele identificou uma síndrome caracterizada pela dificuldade da criança em se relacionar afetivamente com as pessoas e o meio, isolamento extremo, inabilidade no uso da linguagem para a comunicação, ausência de alteração cognitiva, aspecto físico aparentemente normal, comportamentos estereotipados, ecolalia e comportamentos obsessivos. Esses comportamentos foram relacionados com fenômenos da linha esquizofrênica e provável etiologia em uma distorção do modelo familiar que ocasionaria profundas alterações no desenvolvimento psicoafetivo dessa criança (Kanner, 1943).

Ao mesmo tempo, o austríaco Asperger, em 1944, descreveu uma desordem que nomeou de "Psicopatia Autística", ou seja, uma anormalidade da personalidade com manifestação em um distúrbio severo da interação social, uso pedante de fala, desajeitamento motor e incidência apenas no sexo masculino.

Todos os pacientes descritos por Kanner e Asperger apresentavam dificuldades na comunicação, interação e afeto, manifestando interesses idiossincráticos. Essas características passaram a ser consideradas centrais no Autismo Infantil (Wing, 1976). As principais diferenças entre os quadros de Kanner e Asperger consistiam em um atraso de aquisição da linguagem menor nos pacientes de Asperger, com idade de manifestação mais tardia e presença de déficit motor bastante comum. Já as crianças descritas por Kanner tendiam a apresentar um atraso maior e mais global no desenvolvimento (Wing, 1976; Gillberg, 1990; Wing, 1996).

Ainda hoje é discutido na literatura se os quadros descritos por Kanner e Asperger são apenas quantitativamente diferentes ou se são dois quadros completamente diversos (Gillberg, 1990; Wing, 1996; American Psychiatric Association, 2002).

Em 1949, Kanner passou a utilizar o termo “Autismo Infantil Precoce” e o considerou como um quadro bem definido, descrevendo-o a partir de uma dificuldade profunda no contato com as pessoas, um desejo obsessivo de preservar as coisas e as situações, um afeto especial aos objetos, a presença de uma fisionomia inteligente e alterações de linguagem, que se estendiam do mutismo a uma linguagem sem função comunicativa, refletindo as dificuldades no contato e na relação interpessoal com manifestação precoce. O quadro poderia ser observado durante os dois primeiros anos de vida da criança e estaria relacionado com a esquizofrenia infantil (Wing, 1996; Klin, 2006).

A concepção de psicose infantil para o Autismo Infantil concretizou-se com o Grupo para Avanço da Psiquiatria – GAP (Rutter, Schopler, 1987) e, durante muitos anos, estudiosos do assunto utilizaram somente a observação clínica e o conjunto de sinais para caracterizar o quadro (Bettelheim, 1967; Mahler, 1968; Van Krevelen, 1971; Tustin, 1972; Bleuler, 1983; Mahler, 1983).

Explicavam o Autismo Infantil como uma fixação ou regressão à primeira fase da vida extra-uterina − a fase autística normal −, na qual as crianças teriam dificuldades em integrar sensações vindas do mundo externo e interno, e não podiam perceber a mãe na qualidade de representante externo.

Dando continuidade aos estudos de Autismo Infantil, Ajuriaguerra (1973) enquadrou o Autismo Infantil dentro das psicoses infantis e o definiu por uma conduta inapropriada diante da realidade, com retração de tipo autístico ou fragmentação do campo da realidade; restrição no campo de interesses; categorias cognitivas, afetivas e de atividades insuficientes ou parcialmente exageradas, demasiado focadas ou esparsas, produzindo condutas rígidas ou inconsistentes; vida imaginativa pobre ou do tipo não-alucinatório; atitude demasiado abstrata ou demasiado concreta, restrita, limitando a mobilidade do campo do pensamento e da ação; e relação inadequada com as pessoas. Buscando distinguir os quadros descritos por Kanner e Asperger, Van Krevelen (1971) mostrou que, se o primeiro vive em um mundo próprio, diferente do nosso, o autista tipo Asperger vive no nosso mundo à sua maneira. Além disso, identificou o termo "Autismo Infantil precoce" como oligofrenia.

Dentre os autores psicanalíticos, Klein (1981) acreditava que o quadro de Autismo Infantil estava relacionado com a esquizofrenia. Para ela as principais características do Autismo Infantil eram: inibição do desenvolvimento; prejuízo na habilidade de simbolizar; desenvolvimento da vida de fantasia determinando uma estrutura mental alterada desde o início da vida.

Caracterizando o Autismo Infantil como um quadro típico, sem relação com outras patologias específicas, Meltzer et al. (1975), com base no pensamento kleiniano, descreveram o funcionamento psíquico, mas não assumiram nem inferiram uma origem psicogênica para o Autismo Infantil. Afirmaram que os estados de angústia não seriam derivados do mecanismo de defesa contra a angústia, mas tendiam a ser determinados pelo bombardeamento das sensações diante de um equipamento inadequado e do fracasso da relação de dependência com o cuidador primário.

A origem psicogênica do quadro foi defendida por Tustin em 1975. Ela propôs uma classificação para o Autismo Infantil em quatro tipos: Autismo

Infantil primário normal, fase presente no desenvolvimento infantil; Autismo Infantil primário anormal, fase que marca a permanência da criança na etapa anterior; Autismo Infantil secundário encapsulado, na qual a forma de defesa é a inibição; e Autismo Infantil secundário de regressão, na qual a defesa é a regressão. Após vários estudos que questionavam a existência de um estado autístico absoluto, Tustin (1994) corrigiu os conceitos por ela estabelecidos, de modo que deixou de considerar um estado autístico normal na primeira infância, não aceitando a explicação psicogênica como única etiologia para o Autismo Infantil. Para ela, as características descritivas externas da criança autística seriam a falta de relações sociais; o isolamento; a aversão ao contato humano, “encapsulamento duro, tipo concha”, rígido e estático; a não- percepção de sentimentos e interesses dos outros; a aproximação de estranhos como se fossem conhecidos; concentração excessiva em detalhes; e a não-cooperação. Segundo a autora, a concentração excessiva em detalhes e a ausência de sensações impediriam a estimulação do desenvolvimento mental da criança, já que a atenção é desviada de sinais e sons, para ficar retida nas sensações táteis. Sugeriu que o Autismo Infantil deve ser compreendido apenas como uma condição patológica. Além disso, questionou a presença de possíveis alterações orgânicas na criança, não-detectáveis em exames atuais (Tustin, 1984; 1991).

O Autismo Infantil foi também referido como um estado desordenado de integração, que surgiria antes do nascimento ou por ocasião deste evento, determinado por uma falha no processamento de integração do self − unidade primordial e constitucional responsável pela diferenciação das estruturas psíquicas −, sendo uma desordem na constituição psíquica da criança, com fragmentos do eu se desenvolvendo de forma não integrada, impedindo a resolução de conflitos individuais (Hobson, 1990; Bosa, 2000).

Os conceitos de Autismo Infantil e a distinção terminológica entre o quadro, a esquizofrenia e a psicose infantil sempre foram discutidos e revisados por vários autores, que diferenciavam a abordagem psicogênica da orgânica. Discorreram sobre as causas do Autismo Infantil e sugeriram que muitas das manifestações poderiam ser explicadas pelas falhas cognitivas,

alterações de linguagem e anormalidades perceptuais (Rutter, 1968; Rutter, 1978; Ritvo, Ornitz, 1976; Volkmar et al., 1985; Rutter, Schopler, 1987; Frith, 1989; Wing, 1991; Tustin, 1991; Lebovici, Duché, 1991; Szatamari, 1992; Klin, 1994; Assumpção, 1995).

Em 1976, Ritvo e Ornitz fizeram uma revisão sobre o Autismo Infantil e referiram que vários autores postulavam uma espécie de “continuum” que se estenderia das formas infantis às formas encontradas nos adultos. As manifestações clínicas estariam relacionadas aos distúrbios de percepção, distúrbios de desenvolvimento, principalmente nas sequências motoras, de linguagem e social; distúrbios do relacionamento social, caracterizados por um pobre contato pelo olhar; ausência do sorriso social; ausência do movimento antecipatório (no bebê); aparente aversão ao contato físico; tendência a relacionar-se com partes da pessoa; desinteresse em jovens; ansiedade estranha e exagerada; distúrbio da fala e da linguagem, que se estende desde um mutismo até a ecolalia e a inversão pronominal, e distúrbio de mobilidade.

Wing (1981) propôs critérios diagnósticos para incluir a Síndrome de Asperger dentro do “continuum autista”, levando em consideração as manifestações comuns dessa síndrome com o Autismo Infantil. Para isso, a autora forneceu características comportamentais observadas em cada patologia, nas áreas de comunicação não-verbal, interação social, interesses, fala e coordenação motora. Verificou que, embora as manifestações atingissem as mesmas áreas do desenvolvimento infantil, era possível observar características peculiares e distintas em cada um desses quadros. Salientou ainda que, ao contrário do que Asperger havia notado, diferenças sutis nas características comportamentais dos dois quadros poderiam ser observadas desde o primeiro ano de vida como, por exemplo, perda do interesse do bebê por pessoas e alteração no balbucio e nas atividades cognitivas.

Retomando a discussão nesta perspectiva, Eisenmajer et al. (1998) analisaram o critério utilizado pelo DSM-IV (APA, 1994) para distinção entre os quadros de Autismo Infantil e Síndrome de Asperger. Segundo essa classificação, a diferença estaria no atraso precoce de linguagem no AI. Assim, as autoras discutiram a possibilidade da presença ou ausência do atraso de

linguagem predizer a sintomatologia autística em crianças diagnosticadas com Transtorno Invasivo do Desenvolvimento. Verificaram que o atraso de linguagem prediz a sintomatologia autística apenas em crianças jovens, ou seja, menores de 6 anos de idade. Esse atraso precoce de linguagem também está relacionado à alteração motora e à alteração de compreensão verbal.

Em 1987, Baron-Cohen e Wing propuseram a análise do Autismo Infantil a partir das abordagens afetiva − responsável pela compreensão das falhas emocionais − e cognitiva. Deram ênfase aos desvios sociais bem como às alterações pragmáticas observadas em indivíduos autistas, nos quais o Autismo Infantil seria definido como um impedimento severo e crônico nas relações sociais e prejuízos perseverativos na pragmática, uma vez que esta deve ser considerada parte integrante da competência social do indivíduo.

O Autismo Infantil foi considerado uma síndrome comportamental com etiologias múltiplas, podendo haver disfunções neurobiológicas, genéticas e psicológicas como base para os prejuízos cognitivos encontrados nessa patologia (Gillberg, 1990; Alvarez, 1992; Baron-Cohen, Schwartzman, 1995; Maratos, 1996; Batley et al., 1996; Towbin, 1997).

O Autismo Infantil precoce era considerado a forma mais inicial da esquizofrenia infantil e, portanto, não houve distinção diagnóstica entre esses dois quadros em nenhuma das duas primeiras edições do Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais DSM-I (American Psychiatric Association, 1952) e DSM-II (American Psychiatric Association, 1968). Para a escola francesa, fiel à concepção do termo “psicose”, o Autismo Infantil continuou sendo um defeito de organização ou uma desorganização da personalidade (Happé, 1994), do mesmo modo que para a nona revisão da Classificação Internacional das Doenças Mentais − CID-9 (Misès, 1990).

A partir do DSM-III (American Psychiatric Association, 1980), concretizou-se a tendência sindrômica do Autismo Infantil, incluindo-o em uma nova classe de transtornos − Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID) Este termo separou o Autismo Infantil da esquizofrenia, do retardo mental e dos transtornos do desenvolvimento da fala. Além disso, foi usado para descrever condições caracterizadas por comprometimento simultâneo em muitas áreas

básicas do desenvolvimento psicológico (Rutter, Schopler, 1987). O Autismo Infantil foi definido de acordo com os seguintes critérios: linguagem ausente ou alterada, ausência de características esquizofrênicas, perda da responsividade para com os outros, resistência às mudanças ambientais e diagnóstico antes dos 30 meses.

A partir da terceira edição revisada do DSM-III-R (American Psychiatric Association, 1987) e da décima revisão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas de Saúde Relacionados CID-10 (Organização Mundial de Saúde, 1993), houve pouca ou nenhuma alteração nos critérios diagnósticos para o Autismo Infantil: os prejuízos qualitativos na interação social recíproca, na comunicação e a restrição do campo de interesses e atividades com identificação mais fácil do quadro a partir de 2 anos. Pelas características e gravidade nas alterações de desenvolvimento em qualquer idade, é possível fazer esse diagnóstico. Parece que o que ocorreu entre os DSMs foi apenas uma ampliação e descrição de outros quadros dentro dos transtornos, ao lado do Autismo Infantil. O DSM-IV-TR (American Psychiatric Association, 2002) acrescentou o acompanhamento de condições médicas gerais, como anormalidades cromossômicas, infecções congênitas e anormalidades estruturais do sistema nervoso central.

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