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O homem integral e as dimensões da ação humana: operari, agere e facere

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO MORAL DO SER HUMANO E A EDUCAÇÃO

1.4 O homem integral e as dimensões da ação humana: operari, agere e facere

educação moral é a que Tomás estabelece entre duas dimensões do operari: agir e fazer (agere, facere)69:

O agir diz respeito à transformação interior do sujeito,

enquanto o fazer aponta para a dimensão externa da operação (In

Eth. 6, 3, 10). A importância dessa diferenciação torna-se evidente, quando seguimos a análise de Tomás. Diz ele: “Quando, porém se trata da moral, a ação humana é vista como afetando não um aspecto particular mas a totalidade do ser do homem. Ela diz respeito ao que se é enquanto homem” (I-II, 21, 2 ad 2). 70

Shakespeare expressa fielmente o pensamento filosófico clássico, detalhando a divisão do operar humano ao explicitar uma terceira dimensão do atuar, subdividindo-o em “agir, fazer e executar”71 (to act, to do e to perform)72. O Agir seria identificado na dimensão interior do ser humano, no plano das intenções, o fazer representa a ação externa e o executar o resultado da ação.

69 Em In Sent. 12, 1, 5, Tomás censura os insensíveis, incapazes desta distinção: “...quia non faciunt differentiam inter operari et facere, cum multum differant”.

70 (LAUAND, 1996, p. 212).

71 No pensamento shakespeariano, sob influência nitidamente aristotélica, na tragédia Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, é sublinhada a subdivisão do operar humano e as respectivas conseqüências morais. Shakespeare analisa a morte de Ofélia segundo a perspectiva da moral cristã, no sentido de ser possível, ou não, conceder-lhe um enterro cristão, posto que, segundo se apresenta a cena, tratar-se-ia de suicídio. O tirar a própria vida seria, à época, um impedimento ao seu sepultamento em “terra santa”. A discussão mantida entre os seus coveiros ilumina a questão: “Primeiro Coveiro: E deve ser sepultada em terra santa aquela que voluntariamente conspira contra a própria salvação? Segundo Coveiro: posso dizer-te que é para ela. Portanto, cava logo a sepultura que vai recebê-la. . O comissário examinou o caso e decidiu que o enterro seria cristão. Primeiro Coveiro: Como pode ser isto, a não ser que ela haja se afogado em defesa própria? Segundo Coveiro: foi assim que acharam. Primeiro Coveiro: Deve ter sido se offendendo, não pode ter sido de outra maneira. Porque aqui está o ponto: se eu me afogar intencionalmente, isto denota um ato e um ato tem três partes que são: agir, fazer e executar. Ergo, ela se afogou intencionalmente. Segundo Coveiro: Mas escuta, compadre coveiro... Primeiro Coveiro: Com licença. Aqui está a água; bom, e aqui está o homem; bom. Se o homem vai em direção desta água e se afoga, queiras ou não, o caso é que vai. Presta bem atenção. Mas se a água vai até ele e o afoga, ele não se afoga a si mesmo; ergo aquele que não é culpado da própria morte não encurta a própria vida. [...]” (SHAKESPEARE, William. Hamlet. In: ____ Obras Completas. Tradução de F. Carlos e Almeida C.

Lauand continua seu raciocínio sobre as implicações do operar humano segundo esta ampla dimensão73:

Pense-se, por exemplo, no agir profissional. O profissional é, antes de tudo, um homem. Daí que a realização profissional deva subordinar-se à ética. Josef Pieper, a propósito, lembra a atual tendência – cada vez mais acentuada em nossa sociedade, organizada com base na divisão do trabalho – de pensarmos que uma “ação”, por trazer o rótulo de trabalho (do “fazer” do trabalho), estaria eo ipso legitimada também moralmente. Esse esquecimento da ética pode

levar a desastrosas conseqüências, como a descrita por Oppenheimer, referindo-se à sensação que experimentaram alguns físicos que trabalhavam na produção da bomba atômica:“From a technical point of view it was a sweet and lovely and beautiful job”, “do ponto de

vista técnico, um trabalho prazeroso, belo e fascinante”... 74.

Para a moral, desde a antiguidade clássica, o aspecto de maior relevância se projeta no campo do agir, na intenção do agente, pois é nesta órbita interior, subjetiva e personalíssima, que operam a reflexão, o julgamento e o comando da ação e que, portanto, sofre o resultado ético propriamente dito, conduzindo ou não à realização do ser humano, segundo as suas finalidades existenciais. O fazer diz respeito aos meios utilizados para a ação, à técnica utilizada. O executar é o resultado da ação. À moral, é essencial o agir. Ao direito, o fazer e o executar (na órbita penal, na perquirição do dolo ou da culpa, a intenção no plano interior do agir será fundamental na imputabilidade e na gradação da punibilidade do réu). Desse modo, por exemplo, um tiro de arma de fogo pode ser bom segundo a técnica e à sua execução se os meios foram lícitos e apropriados e se acertou precisamente o alvo. Na perspectiva do agir, o ato será bom se a intenção, por exemplo, fosse demonstrar a destreza do atirador em um campeonato de tiro; mas mau, se a intenção fosse a de cometer um homicídio. Nessa hipótese, admitindo-se a hipótese de que o atirador pretendesse matar alguém com a finalidade, por exemplo, de receber a sua herança. Se por acaso a pessoa já estivesse morta quando o tiro fosse dado (houvesse sofrido um infarto horas antes, por exemplo), seria um crime

73 (LAUAND, 1994. p. 8).

74 Tal distinção é paralela à classificação do bonum que estabelecem Tomás e Aristóteles: “honestum, utile et delectabile: o bonum honestum, o bem moral, é apetecível por si” (STh, II-I, 5, 6).

impossível (pois não é factível “matar um morto”). Do ponto de vista do direito, poderia ser o caso de que se chegasse a receber a herança pretendida, se fosse um herdeiro legítimo e necessário. É possível que nenhuma punição jurídica viesse a sofrer. No entanto, no plano ético o dano já teria sido consumado, desfigurando interiormente o indivíduo, podendo mesmo incapacitá-lo a alcançar a sua realização existencial, apesar da eventual riqueza recebida em herança etc.

1.5 O sentido e o valor da educação como processo de realização do homem e