• Nenhum resultado encontrado

Subsídios filosóficos ao ensino jurídico: as virtudes da Prudentia e da Iustitia...

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2017

Share "Subsídios filosóficos ao ensino jurídico: as virtudes da Prudentia e da Iustitia..."

Copied!
313
0
0

Texto

(1)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

i. O ideal de justiça e imprescindibilidade da prudência no ensino jurídico e o método do

caso... 13

ii. O valor fundamental da educação moral para a prática das virtudes da prudência e da justiça... 21

iii. A conexão da prudentia com o método do caso ... 25

iv. Resgatar o sentido original de conceitos e linguagem da filosofia clássica: uma tarefa essencial para a educação moral... 27

v. Referenciais teóricos para estudo das virtudes da Prudentia e da Iustitia... 31

vi. Referenciais teóricos para o estudo do ensino jurídico e do método do caso ... 36

vii. Estrutura da presente tese... 38

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO MORAL DO SER HUMANO E A EDUCAÇÃO 1.1 A educação para a ética na atualidade e o vácuo moral ... 41

1.2 A tarefa de se resgatar a Ética e a Moral ... 47

1.3 O sentido da vida e a realização em plenitude: Simpliciter e secundum quid... 52

1.4 O homem integral e as dimensões da ação humana: operari, agere e facere... 54

1.5 O sentido e o valor da educação como processo de realização do homem e potencialização de seus valores essenciais com vistas à realização existencial ... 57

1.6 A desumanização do homem e corrupção da consciência moral: A vontade de poder, a relativização dos valores e seus impactos na ordem social ... 59

(2)

CAPÍTULO 2: A VIRTUDE DA PRUDENTIA

2.1 A virtude da prudência: a prudentia dos antigos e a moderna “prudência” ... 75

2.2 A inteligência do concreto e a razão prática: a prudência é virtude da ação... 86

2.3 Aconselhar, julgar e agir: a certeza do agir versus o peso da incerteza ... 90

2.4 As partes quasi integrais da prudência: Memoria e Docilitas... 100

2.5 Os vícios opostos à prudência: a imprudência no comando da ação... 111

CAPÍTULO 3: A VIRTUDE DA IUSTITIA 3.1 O Sentido da Justiça ... 117

3.2 A virtude da justiça: a vontade do mais forte ou dar ao outro o que lhe é devido? 119 3.3 A justiça como equilíbrio entre pretensão ou prestação. ... 121

3.4 Iustitia est ad alterum... 123

3.5 Iustitia est ad alterum e as implicações na educação moral... 126

3.6 Iustitia et caritas... 131

3.7 As divisões da justiça. ... 135

3.8 O direito como objeto da justiça... 137

3.9 A justiça e a liquidação das obrigações. ... 140

3.10 Da aplicação e da liquidação da justiça corretiva... 149

(3)

CAPÍTULO 4: DA PRUDÊNCIA À JURISPRUDÊNCIA

4.1 A Ética e as Profissões Jurídicas ... 163

4.2 Hermenêutica jurídica e prudência: juízo subjetivo e infactibilidade de controle a posteriori do senso de justiça do intérprete ... 167

4.3 Direito e Moral e o problema hermenêutico: é possível controlar os valores do intérprete?... 170

4.4 O desafio kelseniano... 176

4.5 A Ética e a Resposta ao desafio kelseniano... 181

4.6 A distribuição da justiça pelo magistrado... 189

4.7 Iurisprudentia: a prudentia do ius e o valor pedagógico da verdade prática ... 197

CAPÍTULO 5: UMA PROPOSTA DE ENSINO JURÍDICO PELA PRUDÊNCIA E A EDUCAÇÃO PARA A JUSTIÇA: O MÉTODO DO CASO 5.1 Novas Direções no Ensino Jurídico: Breve Escorço Históricos e Fundamentos Teóricos do Método do Caso... 212

5.1.1 A Tradição Civilista e o Common Law... 212

5.1.2 O Ensino Jurídico nos Estados Unidos da América ... 221

5.1.3 O Ensino Jurídico em Harvard ... 229

5.1.4 A revolução Langdelliana no ensino jurídico... 232

5.1.5 O método do caso ... 239

5.2 A crise do ensino jurídico brasileiro e as conexões entre direito e moral ... 253

(4)

CONCLUSÃO

(i) O desafio de dinamizar o ensino jurídico e de torná-lo moralmente instigante: o método pedagógico e a sua influência no valor social da ética e do direito... 289 (ii) Síntese das Conclusões ... 298

(5)

INTRODUÇÃO

i. O ideal de justiça e imprescindibilidade da prudência no ensino jurídico e o método do caso

O princípio ens et bonum convertuntur (o ser e o bem são equivalentes∗), que Tomás de Aquino formulou1 com base em Aristóteles2, constitui importante fundamento da consciência da civilização ocidental, sobre o qual, nos últimos oito séculos, foram edificadas as principais estruturas da sociedade moderna, considerando a transcendência do ser humano, a limitação do poder político pelo direito e a limitação do direito pela Justiça3. No mundo atual, ante a contínua alteração de paradigmas sociais, políticos, econômicos e culturais derivada do fenômeno da globalização dos mercados – é imperiosa a necessidade de se desenvolver o sentido da tolerância, do

respeito à dignidade da vida e ao direito alheio, a fim de se propiciar a coexistência harmônica entre as várias sociedades que compõem o grande caleidoscópio humano. É indubitável que a partir do plano jurídico – que é instrumento civilizatório por natureza, pois desde os primórdios da humanidade não há sociedade minimamente complexa sem leis e instituições jurídicas – também se podem estabelecer bases consistentes para fruição da justiça: um valor moral por excelência, indispensável ao relacionamento e à

As traduções dos idiomas inglês, espanhol, francês e italiano são de responsabilidade do candidato. Para a tradução das passagens em latim, quando não disponíveis nas versões em português nas obras consultadas, o autor contou com a colaboração do Prof. Dr. Luiz Jean Lauand.

1 Tomás emprega esta formulação (ou equivalente) cerca de vinte vezes, p. ex. em S. Th. I, 16, 3, c. 2 BAUMGARTH, William P.; REAGAN, Richard J. Saint Thomas Aquinas: On Law, Morality and

Politics. Cambridge: Hackett Publish., 1988, p. xviii, destacam relevantes aspectos do pensamento tomista pertinentes à natureza humana, à sua moralidade e ao pensamento aristotélico: “No pensamento de São Tomás [...] é fundamental a existência de uma ordem supranatural além da natural. A ordem natural, para São Tomás, depende de Deus de um modo que o universo de Aristóteles não depende: o Deus de São Tomás criou o mundo e mantém sua existência e atividade. O reino supranatural consiste naquelas coisas acima da natureza, as coisas que os seres humanos não poderiam conhecer, se Deus não os informasse a respeito. Este reino inclui a graça, o dom de Deus que salva a humanidade. A graça, porém, não abole a natureza: acrescenta a ela. Os seres humanos, como todas as criaturas, são direcionadas para um fim natural, e este fim é a felicidade nesta vida. Por virtude da graça, os seres humanos são direcionadas para um fim mais além, para o qual a natureza sozinha não os intitula: a contemplação de Deus na próxima vida. A tarefa que São Tomás impôs a si mesmo foi elucidar o relacionamento entre a ordem natural e a ordem supranatural sem minimizar ou depreciar nenhuma das duas”.

3 FRANCO, Afonso Arinos de Mello. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro:

(6)

convivência humana e que tem o direito por objeto4. Para que se alcancem paradigmas comuns aceitáveis por todos os povos, é imperativa a promoção de valores universais, sob a perspectiva do referencial teórico que se assume para a elaboração desta tese, o da

Ética Clássica – tal como representada de modo integral pelo pensamento do Aquinate – sobretudo no que diz respeito às virtudes como atitudes éticas fundamentais; e no plano da educação moral, pelo método do caso, no ensino jurídico, em especial na seara dos Direitos e Garantias Fundamentais: os modernos Direitos Humanos.

Nunca se produziu tanta riqueza, nunca ricos foram tão ricos e a distância com relação aos pobres tão acentuada5. Assim, o último dos fundamentos citados acima – a limitação do direito pela Justiça – é de atualidade imperiosa, não no sentido propriamente dito da realidade presente, mas sim na acepção corretiva daquilo que deveria estar acontecendo: a presente tese, nessa ótica, apresenta algumas condições essenciais de uma proposta nesse sentido, abrindo o diálogo com o marco filosófico que se adotou por base – o pensamento de Tomás de Aquino. A opção por esse referencial teórico, o pensamento de Tomás de Aquino, para além da sym-pathia do autor – para quem o pensamento do Aquinate é algo mais do que um tema histórico – decorre também da extraordinária fecundidade de suas análises sobre a prudência e as demais virtudes, objeto direto desta tese. Em muitos momentos, nossa leitura de Tomás é guiada por mestres contemporâneos como Josef Pieper e, em nosso meio, Jean Lauand, que evidenciam a atualidade de seu pensamento, particularmente no que diz respeito aos temas ligados à prudência. É o que destaca também M. L. Couto-Soares6:

Voltar à filosofia tomista no século XXI pode trazer contribuições surpreendentes e fecundas para uma re-habilitação da filosofia prática, em suas vertentes ética e política; as investigações atuais sobre uma teoria geral da racionalidade e compreensão dos modelos formais de decisão racional, encontram nos escritos de Santo Tomás sobre a vida prática e sobre a prudência uma rica fonte de

4 (STh, II-II, 57, 1 c).

5 AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do. Introdução. O Direito do Comércio Internacional na Era a

(7)

sugestões e orientações bem ilustrativas para compreender o comportamento e a ação humanos.

Aprofundando o enfoque da justiça como virtude social por excelência e imperiosa à vida em sociedade – tema enfrentado na dissertação de mestrado apresentada na FEUSP, intitulada "Iustitia Distributiva e Democracia Participativa (Advocacy e Lobby) – Uma proposta de educação moral para o exercício da cidadania"7, nesta tese de doutorado é estudada como fundamento do qual se irradiará a reflexão acadêmica das demais temáticas tratadas, uma virtude anterior que lhe é imprescindível: a da prudentia. Esta virtude fundamental confere sentido autêntico à justiça por estar no âmago de toda a vida moral e ser “reguladora de todo o comportamento digno do homem”8. No dizer de Lauand9, encarna a principal das virtudes cardeais para Tomás de Aquino, e assim pode-se compreender com facilidade “que um ponto decisivo para a educação moral seja a educação para a prudência”10. A prudência é a própria genitora das virtudes (genitrix virtutum): “desse modo, ninguém poderia – e, por estranho que possa parecer, de fato é assim – praticar a Justiça, a Fortaleza e a Temperança, a não ser que seja, ao mesmo tempo, prudente. Ao mesmo tempo, e até antes”11.

A presente tese de doutorado visa, assim, estabelecer as conexões entre as virtudes clássicas da prudência e da justiça e o aprofundamento da percepção do acadêmico de direito sobre a Ética, utilizando-se do método do caso, lecionado no estilo socrático adotado pela Harvard Law School, de onde se originou, como um eficaz instrumento para a irradiação dos bens e valores jurídicos inalienáveis tutelados pelos já mencionados Direitos e Garantias Fundamentais — modernamente abarcados pela concepção de Direitos Humanos. Estando a questão do método no núcleo da experiência acadêmica em sala de aula, um modelo dinâmico de ensino, como o

7 Cf. AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do. Ética Social e Governamental: Advocacy e Lobby - uma

proposta para o exercício da cidadania na democracia contemporânea. São Paulo: ed. Hottopos. 1997. (Série Acadêmica).

8 RODRIGUEZ, Victorino, O.P. Apresentação. In: SANTIAGO, Ramirez. La Prudencia, 2ª ed. Madri:

Ediciones Palabra, 1981. p. 7.

9 LAUAND, Luiz Jean. Provérbios e Educação Moral: A Filosofia da Educação de Tomás de Aquino e

a Pedagogia do Mathal, São Paulo: Hottopos, 1997. p. 81.

10 Ibid.

(8)

propugnado neste trabalho, deverá contribuir positivamente para a formação da consciência moralmente responsável do jurista, fomentando a discussão da adequação, ou não, de uma decisão judicial ao alcance da justiça no caso concreto, à luz dos alicerces clássicos da iustitia, iluminada pela prudentia.

Este é o cerne da questão pedagógica tratada nesta tese, que propõe a adoção de uma metodologia de ensino que contribua eficazmente para a formação da consciência ética do aluno, além de bem orientá-lo na concepção técnica do direito. Como a realidade demonstra — e esta é uma premissa básica desta tese —, o estabelecimento meramente protocolar de um código de bens e valores, como se dá quando há a simples promulgação de um rol de direitos humanos, conquanto possam exprimir um dever de moralidade formal, não é suficiente para que se alcance a justiça substancial nas políticas públicas, na interpretação e aplicação das leis, no cumprimento das obrigações, ou nas deliberações judiciais no caso concreto. Para que haja justiça real, seja em um plano comutativo, legal, distributivo ou social, é imprescindível que haja justiça, aplicada com prudência — em suas vertentes virtuosas — orientando o processo hermenêutico e decisório do elaborador das políticas públicas, do intérprete e aplicador das leis e do prolator das decisões judiciais.

O método do caso é um instrumento pedagógico dinâmico, por meio do qual o professor propicia e incentiva o debate das questões decididas pelas cortes judiciárias, a fim de que pelos aspectos singulares de cada caso o aluno alcance a compreensão dos princípios gerais subjacentes àquela decisão jurisprudencial. E é a partir dessa metodologia pedagógica que se poderá gerar a discussão dos aspectos éticos mais relevantes com base no caso concreto, ponderando-se o acerto ou o erro de uma decisão segundo pressupostos clássicos da justiça — virtude da vontade —, por um processo exegético comandado pela prudência — virtude da inteligência.

(9)

debatida. Filosoficamente, em uma aproximação zetética e não dogmática, uma vez que não é a priori condicionada por um resultado exato a ser apreendido e acordado por todos os partícipes. Mormente em questões de justiça substancial no plano da realidade, em que os complexos bens e valores em ponderação em um caso concreto podem conduzir a resultados naturalmente abertos à sadia reflexão. Isto para que cada um seja capaz de formar uma visão moralmente responsável e crítica do direito e dos valores fundamentais abraçados pela ordem jurídica, sob o prisma da justiça à luz dos direitos e garantias inalienáveis do cidadão, objeto tanto dos Bills of Rights da tradição ocidental, derivados do direito natural, quanto da contemporânea concepção de direitos humanos. Isto também considerando a abrangência do texto constitucional pátrio de 1988, que sem dúvida oferece ampla possibilidade a demandas individuais e sociais complexas, exigindo da atividade docente uma abrangência muito maior dos horizontes jurídicos do que à luz das constituições pretéritas.

A própria formação de pensamentos divergentes em sala de aula deverá impedir de per si a adoção, para fins do debate acadêmico, de uma legalidade formal – que apenas instrumentaliza um legalismo oficial – à margem da justiça real. Quando está ausente o debate de valores e fins – o que se dá quando há tão-somente uma exposição de temática aos alunos segundo ela é oficialmente interpretada, no plano estático do ser e não do contingente dever ser –, privilegia-se o pensamento único que se traduz pela mera reprodução da rígida exegese dos tribunais, o que é ultra afastado da virtude da prudência, que justamente se manifesta, em parte crucial, na ponderação de bens e valores em vista dos resultados últimos perseguidos — ou que deveriam ser realmente objetivados — pela sociedade12. O que vale dizer, a formação da consciência moral passa pelo despertar para a ética à luz das circunstâncias do caso concreto, por via do desenvolvimento da visão crítica do estudante perante as circunstâncias reais dos eventos objeto das decisões judiciais discutidas em sala de aula.

Trata-se, pois, de propiciar meios eficientes para tirar o acadêmico de direito de uma certa apatia — que tende à prostração — em sala de aula e da conseqüente tendência reducionista de compreensão da justiça e do direito como simples subsunção da conduta à norma legal, interpretada, assim, como mera

12 Na sua outra parte, a virtude da prudência se projeta no comando da vontade, como ação decidida da

(10)

vassalagem à legalidade formal, o que promove um inequívoco empobrecimento da justiça substancial.

Conforme se propugna na presente tese, a formação dos valores do intérprete, sejam eles quais forem, se dá sempre a priori, razão maior pela qual é imperativo que o acadêmico de direito seja provocado a discutir em classe os fundamentos de direito formal à luz da justiça substancial, no plano dos valores éticos subjacentes à ordem jurídica e necessários para a realização plena do indivíduo e do todo social. Embora o referencial teórico adotado pelo candidato seja, como sublinhado acima, de concepção socrática, aristotélica e tomista — certamente sugestivas para a discussão da justiça e da prudência no plano ético da realização existencial do indivíduo e da sociedade — de qualquer forma não se defende de antemão a exclusão de outras correntes éticas materiais ou formais, uma vez que, como bem elucida Lopez Quintás, os valores não podem propriamente ser ensinados, mas sim devem serdescobertos pelo aluno, sendo função primordial do educador justamente a de provocar a reflexão para que cada um os descubra por si mesmo. Diz o filósofo espanhol13:

(11)

suscetíveis de ser “ensinados”; deve “descobri-los” cada um por si mesmo. A tarefa do educador consiste em aproximar os alunos da área de irradiação dos valores, para que se deixem atrair por eles e os assumam ativamente em sua vida. Trata-se de um ensinamento socrático, consistente em “descobrir” as distintas fases do processo humano de desenvolvimento. A fase decisiva se centra em torno à experiência básica do encontro.

Que é o encontro, quais são suas exigências e seus frutos, e como, ao experimentar-lhe, descobre-se o ideal da unidade, e com ele se ganha uma visão esplêndida do que somos e ao que estamos chamados a ser é um tema apaixonante de investigação sobre o qual todo educador deve refletir incessantemente.

Sem dúvida, os valores – que dão conteúdo e sentido aos atos humanos – se apresentam e se solidificam por si a partir deste descobrir e descobrir-se do aluno perante a totalidade do real que o cerca, o que se dará, com maior discernimento e profundidade, a partir do exercício prudente da razão, aplicada ao caso concreto. E o paralelismo da prudentia e do método do caso, como se discutirá neste trabalho, é que propiciará a utilização pedagógica de um potente instrumento para provocar a reflexão do acadêmico de direito, aproximando-o de uma área de rica “irradiação dos valores”, no caso o ideal de justiça abarcado no plano dos inalienáveis direitos e garantias fundamentais.

O alcance dos fins propostos nesta tese, de aproximar os direitos e garantias fundamentais, através do método do caso, do plano ético das virtudes da prudência e da justiça – que deveriam sempre subordinar as conclusões de uma decisão judicial – deverá gerar frutos sociais em sentido amplo. Isto porque – o que também é uma premissa fundamental desta tese – é de certo modo intuitivo que como se ensina é o quê se ensina!14, sendo a questão do método um problema central da educação. Isto já havia apontado Charles Eliot, em seu discurso inaugural ao assumir a presidência da Universidade de Harvard, em 1869: "o problema verdadeiro a ser solucionado não é o

14 Cf REIMERS, Fernando. The Public Purposes of School in an age of globalization. Prospects. Vol.

(12)

quê ensinar, mas como ensinar"15. No século XXI, Fernando Reimers, no seu estudo "Citizenship Education, Globalization and Democratization"16 – ao tratar do desenvolvimento econômico e social, pela promoção da educação – a respeito da implementação de métodos pedagógicos voltados a desenvolver a capacidade e uma nova mentalidade de professores e alunos, lastreado no pedagogo John Dewey destaca que: “Como nós ensinamos é o quê nós ensinamos”. No ensino jurídico brasileiro, Wander Bastos assevera: “A questão do método, modernamente, é uma das mais importantes do ensino jurídico”17, e que “[o] aspecto central do ensino de Direito não se restringe ao o ‘quê’ ensinar, de certa forma acomodável nos currículos e programas, mas estende-se ao ‘como’ ensinar, expressão verbal que traduz uma verdadeira revolução na obtenção de objetivos”18.

Dessa forma, é corolário lógico concluir que, se o estudo do direito for árido, formalista e afastado de conteúdo ético, os alunos assim educados terão forte tendência a reagir perante a ordem jurídica com aridez, formalismo e aeticamente. Isto sem dúvida contaminará a sociedade como um todo, pois é natural que esta identifique no profissional de direito justamente aquele que, com maior razão, reflete o sentido e o conteúdo do ordenamento jurídico. Assim, se o despertar para os temas éticos, na reflexão acadêmica, pelo método do caso, levar à formação de uma consciência moral naturalmente crítica e mais amadurecida do acadêmico de direito, a busca do ideal de justiça na formulação das políticas públicas, na configuração das normas legais e na prolação das decisões judiciais certamente irradiará inolvidáveis benefícios para o todo social.

15Cf. STEVENS, Robert. Law School: Legal Education in America from the 1850s to the 1980s. Chapel

Hill: The University of North Carolina Press, 1983. p. 54.

(13)

ii. O valor fundamental da educação moral para a prática das virtudes da prudência e da justiça

Como os clássicos ensinam, o homem não adequadamente educado – cultivado, diriam os antigos, no sentido de bem lhe serem desenvolvidas as faculdades em potência inscritas na natureza humana – fica de certo modo limitado a ações e reações perante a realidade que o cerca: como escravo e não como senhor das circunstâncias. Assim, a partir desta visão centrada na formação ética do cidadão, o enfoque das virtudes da prudência e da justiça encontra capital importância ao se analisarem as suas implicações na vida em sociedade. Assim, como foi discutido na dissertação de mestrado do candidato, recordando-se Pieper e MacIntyre19: não haverá meios de se obter justiça sem que haja senso de justiça – e justiça enquanto virtude –

por parte daquele que detém o poder: de fato ou de direito; e trilhando-se pela tradição aristotélica, foram estudadas as suas dimensões comutativa, legal e distributiva, tal como cada uma implica na vida do cidadão nas suas relações com o próximo, com o governante e deste com os indivíduos. Verificou-se, igualmente, que, tal seja o alcance e o conteúdo aplicável à idéia de justiça – subjacente às concepções liberais ou totalitárias – ora será ela vista como reflexo da máxima "dar a cada um o que lhe é devido", iluminando as doutrinas centradas no homem na sua dimensão de pessoa, em que a atuação estatal estará balizada pelo reconhecimento de direitos e garantias fundamentais do cidadão; ou estará ela vinculada à “vontade do mais forte”, o que sustentará as ideologias transpersonalistas em que a autoridade do Estado é ilimitada (“O Estado tudo pode”!), na medida em que o homem somente é identificado a partir de sua inserção no todo coletivo.

Assim sendo, da importância da justiça – e do próprio ideal de justiça – como elemento intrínseco às relações entre os indivíduos, entre estes e a sociedade e do governo com o cidadão, deverá ela representar o núcleo do próprio ensino do direito, pois, vista como a virtude segundo a qual se impõe dar a cada um o que lhe é devido, não poderá ser desconsiderada quando do estudo dos temas mais fundamentais ao ensino jurídico, seja na órbita das relações de natureza pública ou privada, especialmente no plano dos direitos e garantias fundamentais.

19 MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Notre Dame: University of Notre

(14)

Se afastada a justiça como elemento indissociavelmente ligado ao ensino jurídico, a atuação do bacharel em direito se resumirá à de mero instrumento inserido nas engrenagens sociais e por elas rigidamente condicionado20. Assim, sua atividade estará obstaculizada pelos parâmetros do direito positivo que, se não fundamentado na justiça, acabará por depender apenas da vontade do poderoso ou poderosos do momento: seja esta a vontade expressada por um tirano, por um grupo ou classe social, ou mesmo por uma maioria à qual, dogmaticamente, se outorgará poderes quase que divinos para ditar o certo e o errado. Nesse diapasão, a própria democracia poderá se corromper em odiosa ditadura da maioria. Assim, são inexoráveis as implicações da virtude da justiça — orientada pela prudência — na formulação das políticas públicas, como contraponto à democracia representativa, na medida em que se busca torná-la verdadeiramente participativa, através dos legítimos mecanismos da advocacy e do

lobby (em seu sentido original e positivo), e também na questão da aplicação da justiça pelo magistrado. Sem a virtude da justiça nada distinguirá o juiz, o advogado, o jurista – ou qualquer um que detenha um poder de fato ou de direito – de um mero executor de uma rotina prática, com o que, não como senhores, mas sim como escravos de seu ofício, constantemente correrão o risco de subverterem a ordem jurídica e social, deixando de reconhecer justos direitos e garantias fundamentais do cidadão (os direitos individuais e sociais, de primeira e segunda gerações) e da própria sociedade (os direitos difusos e coletivos de terceira geração)21 rendendo culto ao poder político, econômico ou ideológico vigente.

Mas, como já sublinhado acima, a aplicação da justiça, em sua vertente virtuosa, não é possível sem uma virtude que lhe é não apenas irmã, mas também sua genitora: a prudentia! Assim, uma vez que a prudentia é como um tecido que sustenta todas as outras virtudes, somente o jurista prudente — o magistrado em especial — poderá ser autenticamente justo, o que será temática nuclear desta tese. Tal consideração ganha especial relevância no mundo ocidental, seja pela tradição do common law, dos países anglo-saxões, ou romano-germânica, de natureza codificada, pois que é dos

20 É o que alertou Jarbas Marchioni, presidente da Comissão de Assuntos Institucionais da OAB/SP, sobre

(15)

tribunais que nascerá o direito vivo: aplicado contenciosamente ante uma pretensão resistida, quando alguém, sem obter voluntariamente a fruição do direito que lhe corresponde, busca a sua aplicação coercitiva pelo Estado, que detém o monopólio da força. E é esta positivação da lei pelos tribunais, nos regimes democráticos e republicanos, que formalmente legitima a imperatividade desse próprio direito que se persegue contenciosamente. E este direito vivo criado pelos tribunais dará vazão ao seu fim – o ideal de justiça – legitimando-se substancialmente, portanto, na medida em que a deliberação judicial seja adequada aos elementos concretos do caso julgado, sob o prisma do “suum cuique tribuere”, pelo exercício prudente da razão.

A descoberta de que as decisões dos tribunais seriam um potente instrumento para o ensino do Direito produziu uma verdadeira revolução nos Estados Unidos, ao final do século XIX. O desenvolvimento do método do caso, ensinando o direito a partir de cases judiciais, deu-se pela mente brilhante de Christopher Columbus Langdell, então diretor da Harvard Law School22. Langdell com o seu “método do caso” projetou a Faculdade de Direito de Harvard23 como uma das mais prestigiadas escolas de direito do mundo e moldou o ensino jurídico norte-americano há mais de um século. Já no início do séc. XX, virtualmente todas as universidades dos Estados Unidos adotaram tal sistemática como metodologia pedagógica para o ensino jurídico24. Posteriormente, tal pedagogia espraiou-se para as escolas de medicina, de administração de empresas, é utilizada na prática de educação continuada para adultos e nas mais variadas áreas do conhecimento humano.

Quanto à ênfase do tema da Ética no ensino jurídico, sua importância é evidente. Para além de reformas estruturais do sistema judiciário e do por vezes arcaico, injusto, complexo e confuso ordenamento positivo pátrio – que necessariamente se impõem à redução das graves desigualdades sociais e à ampliação dos meios de acesso aos tribunais – é imperioso propiciar uma educação jurídica moralmente responsável ao

22 Cf. BOORSTIN, Daniel J. The Americans: The Democratic Experience. Nova York: Vintage Books,

1974. p. 63.

23 Na qual o candidato obteve o seu grau de Master of Laws (LL.M.) e a pós-graduação em tributação

comparada e internacional pelo Harvard University International Tax Program.

24 Cf. (BOORSTIN, 1974, loc. cit). Importante sublinhar que Langdell também foi responsável pela

(16)

acadêmico de direito, aproximando-lhe dos elevados valores da justiça, iluminada pela

prudentia, em suas vertentes virtuosas. Dada a sua especial vocação para provocar a atenção e o interesse do aluno subjacente à problemática jurídica envolvida, o método do caso bem se apresenta como apropriado para dar plena efetividade às perspectivas possibilitadas pela prudência para a justiça em sala de aula, mediante uma prática de ensino verdadeiramente interativa. E também considerando os efeitos positivos de sua aplicação ao ensino da disciplina dos direitos e garantias fundamentais. Esta matéria, na qual estão sedimentados os aspectos essenciais da cidadania, infelizmente é objeto de relativamente pouca reflexão pelos acadêmicos de direito e, por conseqüência, insuficientemente conhecida pela grande massa da população, que pouco pode fazer para que sejam, de fato, respeitados e enaltecidos. Assim, o enaltecimento da prudentia

em paralelo à alteração da metodologia de ensino de uma disciplina essencial à vivência da cidadania em toda a sua expressividade, que é o que se visa propugnar nesta tese, deve secundar a melhoria das condições de vida da população pelo acesso e fruição dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente consagrados. Isto é imprescindível caso realmente se pretenda alcançar uma autêntica democracia, no plano da justiça social.

Naturalmente, e isto já se realça dos prévios estudos sobre a virtude da

(17)

iii. A conexão da prudentia com o método do caso

O objetivo principal desta tese de doutorado é o de estabelecer, à luz do pensamento clássico, a conexão entre a virtude da prudentia – como essencial para o ensino jurídico e a elaboração, interpretação e aplicação justas das leis – e uma proposta de Filosofia da Educação segundo o método do caso, para a disciplina de direitos e garantias fundamentais. Trata-se precisamente de trazer ao processo educativo – voltado à formação integral do ser humano – a proposta de conceitos (e da linguagem...) clássicos fundamentais. Isto tudo visando a permitir ao acadêmico de direito a percepção – que é a base da vivência individual e social – das realidades éticas essenciais subjacentes à vida humana em plenitude, principalmente diante do cenário de amplo vácuo moral e conseqüente crise existencial por que passa o homem contemporâneo. É necessário, pois, permitir uma melhor compreensão – e é o que permite a prudência, em sua acepção clássica – do alcance e do sentido antropológico das relações sociais, sob o prisma da cidadania e do valor do direito e da justiça no Estado Democrático de Direito.

Nesta tese de doutorado serão apresentadas dimensões inéditas à pedagogia do ensino jurídico na perspectiva ética, analisando, selecionando e rediscutindo tanto conceitos clássicos para a educação moral contemporânea quanto a metodologia voltada ao desenvolvimento do raciocínio analítico do estudante de direito e da sua percepção da realidade ética, no plano jurídico dos direitos e garantias fundamentais. Isto tudo objetivando propiciar condições para a formação de uma consciência eticamente madura do estudante, a fim de permitir a fruição de juízos personalíssimos, em boa medida de caráter intuitivo, como se dá no âmbito da

prudentia, voltados ao atingimento do ideal de justiça. Assim, embora na perspectiva

filosófica pretenda-se expor a problemática e provocar a reflexão da temática proposta, iluminando algumas de suas facetas sob o prisma da ponderação intelectual e, como já adiantado, de certa forma zetética, sabe-se, todavia, que tal abordagem se abre em todas as direções e dá oportunidade à apresentação de questões infinitas25. Portanto, embora o exercício da razão prudencial, como se verá nesta tese, se desenvolva a partir da intuição e da sabedoria de seu agente – insight and wisdom é a fórmula com que T. S.

(18)
(19)

iv. Resgatar o sentido original de conceitos e linguagem da filosofia clássica: uma tarefa essencial para a educação moral

Educar para a ética transcende o mero âmbito escolar-disciplinar e insere-se naquilo que o pedagogo espanhol Victor Garcia Hoz denomina “Educação Invisível”.26 Ora, a educação moral – sempre auto-educação em interação com o todo do ambiente escolar, familiar e social – permeia todas as instâncias e circunstâncias da vida, transcende o plano da mera instrução técnica ou utilitária e não se deixa operacionalizar. Daí o caráter problemático de se pretender encerrá-la em compartimento estanque de uma única disciplina (como a famigerada “Educação Moral e Cívica”), o que não apenas a torna inócua, mormente quando a serviço de interesses e ideologias da ocasião, mas inclusive pode levar ao efeito inverso27: indiferença, apatia e cinismo no exercício da cidadania – com base em uma pseudo-prudência28, o que tende em algumas instâncias extremas ao exercício de uma liberdade cega, ao instinto passional e à delinqüência desenfreada, em síntese, “à abdicação da vontade inteligente e verdadeiramente responsável”29 – e ao abandono da vivência da justiça como virtude social por excelência.

Diante desse cenário, se apresenta a urgente necessidade de uma autêntica educação moral, visando formar não apenas bons cidadãos (o que já não seria pouco!), mas propiciar condições para a realização humana em plenitude. A mentalidade atual encontra – para a implantação de uma autêntica educação moral, em seu sentido mais próprio e profundo – alguns obstáculos específicos, relevando destacar, desde já, dois aspectos de particular importância na análise do tema a ser enfrentado nesta tese de doutorado: dois aspectos que decorrem da entrópica tendência ao esquecimento que é característica do ser humano30. O primeiro diz respeito à conhecida propensão do homem contemporâneo de lastrear suas esperanças de construção de uma sociedade ideal em uma utópica (os antigos diriam ingênua...) e, portanto, infactível

26 HOZ, Victor Garcia. Pedagogia Invisível, Educação Invisível. São Paulo: Nerman, 1988. 27 (QUINTÁS, 2005).

28 (STh, II-II 47,13 c) o que o Aquinate denominava de “prudência da carne”.

29 Paulo VI, apud (RODRIGUEZ, Victorino, O.P. Apresentação. In: SANTIAGO, Ramirez. La Prudência, 2ªed. Madri: Ediciones Palabra, 1981. p. 9).

30 “O homem é, fundamentalmente, um ser que esquece! Nesta aguda caracterização antropológica

(20)

mobilização do aparato técnico-organizacional-normativo, e correspondentes mecanismos de controle legais e jurisdicionais que tornassem dispensável a prudência, que dará sentido legítimo à justiça, como virtudes: como atitudes humanas originárias e absolutamente necessárias ao relacionamento autêntico do homem em sociedade. Em tal equivocado contexto, evidentemente, também seria supérflua a educação moral... Um segundo ponto, de extrema atualidade (“atualidade” corretiva, daquilo que deveria estar ocorrendo...), diz respeito à percepção da realidade moral, possibilitada pela linguagem. Daí também a extraordinária importância dos antigos: eles estabeleceram um repertório conceitual que propicia visualizar adequadamente essa realidade.

É o que sublinha Lauand31:

O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que em geral supomos. A força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos. Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Valem para toda a realidade humana (e, muito especialmente, para a moral), as considerações sobre a “latência”, que Abraham Moles tece em seu estudo O Kitsch. Valendo-se de uma metáfora fotográfica, ele fala de uma revelação

das impressões confusas, pelo surgimento de um vocábulo: “O surgimento nas línguas germânicas de um termo preciso para designá-lo (a própria palavra Kitsch) levou-as a uma primeira

(21)

esvazia (ou deforma) as palavras... Faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-faltam-nos o acesso à realidade.32

E especificamente sobre a Prudentia e a Prudência na perspectiva da filosofia clássica, notadamente considerando o Tratado da Prudência de Tomás de Aquino, alerta Lauand que se trata justamente de “uma daquelas tantas palavras fundamentais que sofreram desastrosas transformações semânticas com o passar do tempo”33. Os professores Rodhe e Luban34, ao discutirem acerca do resgate das concepções de uma ética das virtudes, de origem aristotélica, igualmente discorrem sobre a complexa questão da perda do sentido lingüístico original das expressões de caráter moral, destacando a importância de MacIntyre (1981) neste debate:

A obra de Alaisdair MacIntyre After Virtue de 1981 tem exercido um papel central neste resgate. De acordo com MacIntyre, nós discutimos infindavelmente sobre temas morais porque nós não mais partilhamos uma linguagem moral. O desenvolvimento do Iluminismo e pós-Iluminismo erodiu as lições gregas e cristãs sobre virtudes das quais nosso vocabulário moral evoluiu. Nós agora nos defrontamos com o problema da “ética após Babel”*: A linguagem de nossas controvérsias – direitos e obrigações, atos e regras, responsabilidades e conseqüências – tem estado destacada das tradições que lhes deram força. Indivíduos que focam nos direitos são ultrapassados pelos que focam nas conseqüências, e as possibilidades de consenso têm ficado crescentemente remotas. Em uma sociedade onde “não existe qualquer conceito compartilhado do bem da comunidade... não pode haver um conceito substancial do que é contribuir mais ou menos para o alcance deste bem”. (MacIntyre,

32 É oportuno recolher, neste passo, o pensamento de Ortega y Gasset (A Rebelião das Massas. São

Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 4), demonstrando o paradoxo apresentado pela linguagem, sublinhando que: “Quando o homem fala ele o faz porque acha que vai poder dizer tudo o que pensa. Pois bem, isso é um engano. A linguagem não consegue tanto. Diz, aproximadamente, uma parte do que pensamos e abre um fosso intransponível para a transmissão do restante. Serve bastante bem para enunciados e provas matemáticas; já para falar sobre física começa a se tornar equívoca e insuficiente. Mas na medida em que a conversação trata de temas mais importantes que esses, mais humanos, mais ‘reais’, aumentam a sua imprecisão, sua inabilidade e confusionismo. Acreditando no arraigado preconceito de que falando nos entendemos, dizemos e escutamos de tão boa fé, que muitas vezes acabamos por nos desentender muito mais do que se procurássemos nos adivinhar, mudos.”

33 LAUAND, Luiz Jean. Introdução e Tradução. In: AQUINO, Tomás. A Prudência: A Virtude da

Decisão Certa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. VII e VIII.

(22)

1981, p. 217). *Jeffrey Stout, Ethics After Babel: The Language of Morals and Their Discontents (1988).

É necessário, pois, efetivamente resgatar o sentido da prudência dos porões da consciência humana onde os últimos séculos a confinaram. Daí que ora se proponha o diálogo constante com os antigos, cuja atualidade de pensamento, de conceitos e linguagem são imprescindíveis para elevar a dignidade humana, recolocando-a no alto patamar de onde nunca deveria ter sido deslocada. Ao se reduzir a vida humana a um mero aglomerado de matéria orgânica evoluída – como induzido pelo pensamento autoritário-hobbeseniano e propugnado pela ideologia totalitário-marxista – negando-lhe a alma e o espírito como posse da centelha divina35, fez-se do século passado o “século do homem”, conforme melancolicamente lhe atribuiu Churchill: “because never the man suffered the most”.

35 Diante do fenômeno da criação e com relação à elevação das potências pessoais pelo amor, na

(23)

v. Referenciais teóricos para estudo das virtudes da Prudentia e da Iustitia

Trata-se nesta tese de reavaliar o método de ensino do direito propugnando-se por uma educação moral para a prudentia e a iustitia, tema de extrema atualidade, à luz dos princípios éticos da filosofia clássica do Ocidente, para permitir a formação completa do jurista: tanto no plano técnico quanto ético, portanto. Se toda concepção de educação remete à antropologia filosófica (indagar pelo educar pressupõe – consciente ou inconscientemente – uma filosofia do homem), no caso da educação moral, tal dependência é ainda mais acentuada. Sobretudo em uma concepção, como a que ora se abraça, em que a moral é entendida como o próprio ser do homem.

O referencial teórico que se adotará para os fundamentos da ética, para a doutrina da prudência e da justiça e para a educação moral remete – mais ou menos imediatamente – à filosofia clássica do Ocidente, representada primeiramente por Tomás de Aquino (mas, também, por autores como Aristóteles e Platão). Nesta tarefa, não há interesse temático na perquirição histórica das idéias ou em sistematização teórica dos antigos, mas somente o de buscar inspiração para uma educação moral de hoje no diálogo com os grandes clássicos, baseado na convicção da perene atualidade de seu pensamento. Daí que se recorra freqüentemente também a intérpretes contemporâneos dessa tradição como os filósofos alemães Josef Pieper e Viktor Frankl, o austríaco Johaness Messner, os espanhóis López Quintás, Moix Martinez, Gómez Robledo, Santiago Ramírez e Victor Garcia Hoz, o francês Pierre Aubenque ou os norte-americanos Mortimer Adler, Robert Hutchins, Hugh McDonald e John Hardon36. Particularmente, esse enquadramento clássico – que une fortemente o ser do homem à ética – impõe – na medida em que se pretenda superar o direito como mero ajuste formal de regras, a política como simples articulação de interesses pragmáticos, as decisões judiciais como apenas burocrático expediente de solução de conflitos e o ensino jurídico tão-somente como ressonância do formalismo e da legalidade oficial – que, uma e outra vez, se recorra à Antropologia Filosófica. Nessa perspectiva, uma

36 Nessa mesma linha e como já visto anteriormente, recorrer-se-á também – sobretudo no que diz

(24)

oportuna introdução ao problema moral contemporâneo e à necessidade do diálogo com os antigos, é encontrada em Lauand:37

O homem, diziam os antigos, é fundamentalmente um ser que esquece. Nesta tese, também ela hoje esquecida, convergem as grandes tradições do pensamento oriental e ocidental. Para os antigos, neste ponto dotados de maior sensibilidade do que nós, era evidente a existência de uma entrópica tendência humana ao esquecimento. Naturalmente, não se trata aqui do periférico [obrigações profissionais, financeiras etc.], mas do essencial: ao sabor da rotina do cotidiano, são as questões decisivas que se vão embotando – O que é ser homem?; Quem sou eu, afinal de contas?; O que é a felicidade? etc.

O abandono de tais questões, entre outras fundamentais para o ser humano, levou a uma profunda crise do homem contemporâneo. Uma crise que, prossegue Lauand38:

[...] é tanto mais grave quanto muitos de seus protagonistas mal suspeitam (pelo menos de modo consciente) de que essa carência existe e que realmente é uma carência. Buscam-se as soluções definitivas para o profundo mal-estar do homem moderno em campos onde elas não podem estar: na economia, na tecnologia, nas ciências, nos movimentos ecológicos ou revolucionários, mas deixam-se sem resposta as questões mais decisivas.

No mesmo sentido, Messner, analisando a ampla dimensão do tema “Deveres Fundamentais do Homem de Hoje”, inicia suas observações na perspectiva do ser humano e “A reflexão sobre si mesmo”, nos moldes seguintes39:

Entre as questões fundamentais do homem atual ocupa o primeiro lugar a reflexão sobre o sentido de sua existência. Aos grandes

37 LAUAND, Luiz Jean. Os Fundamentos da Ética. In _____(org.) et al. Ética: Questões Fundamentais.

São Paulo: EDIX edições, CEAr-DLO, FFLCH-USP, 1994. p. 6.

(25)

arquitetos medievais de sistemas éticos sequer se lhes apresentaria tal indagação. É que estavam todos de acordo na resposta à questão “que é o homem?”; o ambiente espiritual e social estava então todo ele impregnado por certas convicções fundamentais, tidas por evidentes, sobre o modo de ser e o sentido da vida do homem. Hoje sucede o contrário. Hoje, os homens dispostos a aceitar a resposta cristã à pergunta “que é o homem?” são uma fração em cada povo; os demais vivem a dúvida consciente sobre o sentido da existência humana ou em uma fuga da inquietude metafísica, a saber, das questões que se colocam ao homem, em definitivo por sua própria consciência, sobre a origem, sentido e finalidade de sua vida.

Daí que, resgatando os estudos que foram objeto da dissertação de mestrado apresentada à FEUSP, a temática da educação moral será retomada e aprofundada nesta tese de doutorado, cujo núcleo acadêmico e educacional inédito está centrado no enorme valor pedagógico do método do caso e como por meio dele se dará fruição à educação para atitudes éticas decisivas à realização humana em plenitude, em especial da prudentia no ensino jurídico e na perquirição do ideal de justiça, com todo o seu potencial de alteridade, na disciplina de direitos e garantias fundamentais.

Tal quadro se afigura particularmente relevante no que se refere à falta de prudência – em sua acepção clássica – e à problemática da educação para a justiça nos dias de hoje. Por detrás de todos os grandes problemas sociais e políticos enfrentados pelo País encontra-se uma dimensão ética nem sempre devidamente valorizada pela educação. No entanto, há um clamor recorrente por ética na política, no âmbito das relações governamentais, na sociedade, nas relações diárias do homem com a comunidade que o cerca, e nas relações desta mesma sociedade, representada pelos mais diversos grupos e setores do todo social, com o governo, na órbita da formulação das políticas públicas e na criação, interpretação e aplicação do direito. Ética e moral são assim objeto dos mais variados discursos e temperadas com colorido ideológico de diversos matizes40.

40 No mercado norte-americano são inúmeros os títulos colocados à disposição do leitor sobre as questões

(26)

Prossegue Lauand:

Mas, se todo mundo clama por moral, nem todos têm uma idéia clara do que entendem por moral ou do porquê da ética, dos fundamentos da moral. Nesse sentido, nós, que não temos a aprender com os antigos [aqui se referindo principalmente aos quatro grandes pensadores da tradição ocidental: primeiramente Tomás de Aquino, e também Aristóteles, Platão e Agostinho] em matéria de ciência ou tecnologia, nada perdemos ao abrir um diálogo com eles nesse outro campo, em que estamos tão despreparados e eles detêm uma sabedoria “de ponta”, de extrema atualidade.41

É importante destacar, desde logo, o que é a moral, ou melhor, o que é a moral para o homem de hoje? A moral, diante dos ensinamentos da grande tradição filosófica clássica, sempre foi entendida como “o próprio ser do homem”, sobre aquilo que ele realmente é e está chamado a ser. Para se ter o contraponto e a real dimensão da questão ética para o homem, pode se ter em vista que o direito (objeto da justiça, no plano da moral), e toda a regulação normativa da sociedade, visa um mínimo: possibilitar a convivência social pacífica, de tal forma que se imponha a força do direito (mediante a aplicação coercitiva do direito positivado pelo Estado) e não o “direito” da força. Assim, em determinadas perspectivas realmente é o direito, como sustentou o utilitarista inglês Jeremy Bentham, “um mínimo ético”: um mínimo de regras eficazes à manutenção da boa ordem social. A ética e a moral, por sua vez, visam um máximo: a realização plena, existencial. Em suma, a felicidade do homem, como o bem que se quer por si mesmo, na feliz concepção aristotélica abraçada na Ética a Nicômaco.

(27)

houver a imposição de uma multa pela autoridade pública). No caso da moral, a sua violação sempre traz implicações para o agente causador. E tamanha seja a gravidade do fato, maior será a possibilidade de ser erigido internamente no ser humano – no âmago do próprio ser do homem – um obstáculo de difícil superação no caminho de sua realização. Há assim um caráter de auto-agressão que a violação da moral implica, o que não poderá ser ignorado pelo processo educativo, especialmente ao se considerar que a prudência deverá iluminar a adoção de decisões que podem afetar em profundidade a vida de seu protagonista, bem como comandará a ação da justiça em todo o seu potencial de alteridade. Ou seja, não apenas a ação humana em sociedade provoca inafastáveis reflexos na órbita prática, como também no interior de seu agente e daqueles que sofrerão os seus efeitos morais, conforme o caso.

Assim, diante dessa ampla perspectiva, é oportuno ainda sublinhar que, dentre os ensinamentos de Aristóteles e Tomás de Aquino, à luz da realidade moral do homem, há o reconhecimento de que a inteligência e a liberdade permitem ao ser humano as possibilidades de amizade e convivência social e o descobrimento do amor, nas suas mais variadas dimensões (familiar, marital, fraternal, social etc., que traduzem as realidades anunciadas pelas expressões gregas eros, philia (amor de amizade) e

agape; como a chave mestra a possibilitar tal convivência, a aprendizagem e a atualização das potencialidades pessoais42. Mas para que tudo isso se dê de forma

autêntica, é imprescindível que o agir seja iluminado pela prudência e temperado pela justiça, virtudes essenciais à realização humana em plenitude, como será sublinhado ao longo desta tese.

42 Bento XVI (2006, p. 36) afirma sobre o amor, na dimensão da caridade (caritas) o seguinte: “O amor –

(28)

vi. Referenciais teóricos para o estudo do ensino jurídico e do método do caso

Anota Javier Hervada et al43: “Saber direito [...] é uma ciência prática”. Nesta mesma linha, Wander Bastos assevera: “O saber jurídico é um saber de experiência feita, e uma experiência de saber crítico é um saber técnico, mas também prático: o saber jurídico é uma práxis”44. E é sob esta perspectiva que os referenciais teóricos para a discussão do ensino jurídico foram estabelecidos.

No verão norte-americano de 2006, o candidato pesquisou para seu doutorado na biblioteca da Universidade de Harvard, em especial da Harvard Law School e também da Graduate School of Education. Em diversas entrevistas com professores, em especial com a Professora Betsy Baker – vice-diretora para desenvolvimento internacional da escola de Direito – e com Fernando Reimers – professor de educação internacional da escola de Educação, foram obtidas importantes indicações de fontes bibliográficas tanto para o estudo do método do caso quanto para as suas repercussões pedagógicas no ensino do Direito e de outras áreas do saber. O candidato teve acesso a textos históricos do século XIX, bem como aos modernos intérpretes da experiência educacional norte-americana, no campo jurídico especialmente, mas também pertinente a propostas voltadas à educação para a cidadania, na era da globalização, com fundamento nos valores da democracia, no plano dos direitos e garantias fundamentais. Depois de detida pesquisa, adotou-se como referencial teórico para o método do caso aquele apresentado por Charles W. Eliot e Christopher Columbus Langdell, que tiveram a iniciativa de discutir a fundo a questão pedagógica da universidade e permitir que a Harvard Law School, poucas décadas após implementar tal metodologia pedagógica, se transformasse em uma das mais prestigiadas escolas de direito do mundo, bem como que as outras escolas de direito norte-americanas – e ao redor do mundo – passassem a emular o seu exemplo45.

43 HERVADA, Javier; CUNHA, Paulo Ferreira da; MUÑOZ, Juan Andrés. Porque existe a arte do

direito. In: ______ Direito: Guia Universitário. Porto: Universidade do Porto, Capítulo II, s.d. (Coleção RESJURIDICA). p. 14.

44 (BASTOS, 2000, p. xiii).

(29)

Sob a perspectiva educacional norte-americana, no campo do ensino jurídico, a bibliografia indica uma séria de autores relevantes para esta tese, entre eles Willian Braithwaite, Willian P. LaPiana, Steve Sheppard, Richard Posner, George Chase, Joseph Story, G. A. Matile, Gerald F. Hess, Steven Friedland, Morris L. Cohen, Oliver Holmes, além dos próprios Langdell e Eliot. Do ponto de vista das discussões sobre a ética no ensino jurídico norte-americano, apoiou-se em autores como Deborah L. Rode, David Luban, Mortimer D. Schwartz, Richard C. Wydick, Maynard E. Pirsig, Daniel Coquillette, Jeffrey Ollen e Vicent Barry. Referência também é feita aos estudos de Fernando Reimers, professor de Educação Internacional da Escola de Educação da Universidade de Harvard, pela sua relevância para a discussão pedagógica do método do caso, em especial no que se aplica ao ensino de temas de direitos e garantias fundamentais. Com relação à experiência brasileira no campo do ensino jurídico, recorreu-se a juristas e pedagogos de elevada influência no modelo educacional vigente no País, tais como: San Tiago Dantas, Aurélio Wander Bastos, Caio Tácito, Alberto Venâncio Filho, Joaquim Falcão, Álvaro Melo Filho, Ada Pellegrini Grinover, José Eduardo Faria, Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Luís Warat, bem como a vários estudos reunidos pela Comissão de Ensino Jurídico do Conselho Federal da OAB, especialmente nas últimas duas décadas.

Enfim, é de se destacar que é precisamente a afinidade estrutural que o estudo de caso tem com a virtude da prudência (ambos se voltam para o concreto, para o contingente; pressupondo princípios gerais etc.) que faz do método do caso um instrumento privilegiado para despertar o acadêmico de direito para os fundamentos morais e a aplicação da própria prudência na persecução do ideal de justiça.

(30)

vii. Estrutura da presente tese

O presente trabalho estrutura-se em seis partes:

Na Introdução são lançadas algumas premissas basilares do corpo da tese, bem como discutidos os referenciais teóricos adotados, seja para o estudo dos temas centrais em análise, da virtude da prudência e de sua relação fundamental com a

jurisprudência – que é a base empírica para a metodologia preconizada nesta tese –, seja para os fundamentos pedagógicos necessários à compreensão de seu objeto, que se manifesta na utilização do método do caso como instrumento hábil à irradiação de valores éticos na perspectiva dos direitos e garantias inalienáveis abraçados pela moderna concepção de direitos humanos, propiciando condições para despertar a consciência moral do acadêmico de direito para a interpretação do ordenamento jurídico na perquirição do ideal de justiça.

(31)

moral pelo método do caso. Como se verá, uma característica importante de tal educação – como toda proposta moral dos antigos – é o cultivo da dimensão intelectual, o que é campo próprio da prudência, como virtude da inteligência. Naturalmente, trata-se aqui não da raison raisonnante, mas da inteligência que se abre para a verdade do ser e para o comando da ação da vontade, objetivando a concretização da justiça!

Tendo em vista a perspectiva descortinada acima, dar-se-á abertura para tratar especificamente dos aspectos fundamentais das virtudes da prudentia (capítulo 2) e da iustitia (capítulo 3). Nesse passo, retornar-se-á à base da discussão lingüística dos conceitos éticos clássicos, que perderam conteúdo e alcance na atualidade, sendo um dos grandes obstáculos ao despertar para a ética. Em diálogo com os antigos, que são os grandes mestres nessas matérias, serão analisados os aspectos estruturais das virtudes da prudência e da justiça e os vícios derivados de sua corrupção.

Desse modo, estas quatro primeiras partes (a Introdução e os três capítulos que a seguem) lançam as bases preparatórias para os capítulos 4 e 5, que consubstanciam o núcleo desta tese de doutorado, que culminam com a Conclusão, onde está lançada a síntese das propostas preconizadas neste estudo:

O capítulo 4 abrirá a discussão da prudência em direção à jurisprudência – como a prudentia do ius –, com a análise da atividade hermenêutica e da impossibilidade de controle a posteriori dos valores do intérprete. Neste marco radica, em toda a dimensão mais elevada para a atividade jurídica, a importância da educação moral voltada à prudência do exegeta.

O capítulo 5 trata do advento e dos fundamentos pedagógicos do método do caso, que propiciou uma revolução no ensino jurídico nos Estados Unidos a partir do segundo quartel do séc. XIX, e como poderá ser adotado na educação jurídica pela

(32)

A conclusão apresentará a síntese dos estudos objeto dos capítulos 1 a 5, apontando a imperiosa necessidade de que a educação moral pela prudência para a justiça – como virtudes decisivas para a plena realização individual e social – seja propiciada, relativamente à temática dos direitos humanos, pelo vigoroso instrumento pedagógico do método do caso que, sem dúvida, possui notáveis afinidades com o agir prudencial voltado à decisão certa no hic et nunc da vida concreta em sociedade.

(33)

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO MORAL DO SER HUMANO E A EDUCAÇÃO

1.1 A educação para a ética na atualidade e o vácuo moral

O último século representou na história humana uma época de avanços tecnológicos e científicos, sem dúvida invejáveis às gerações passadas. No que concerne, todavia, à educação, encarada como processo dinâmico de aprimoramento do ser humano, é fato que, não obstante a obrigatoriedade de sua promoção gratuita (ao menos a educação básica) até mesmo em países em fase de desenvolvimento, como o Brasil (cfr. Art. 206, IV da Constituição Federal de 1988), proporcionalmente não se avançou muito, em termos mundiais, comparativamente a dois ou três séculos atrás46.

Na realidade, em vez de melhor capacitar o ser humano para reação perante a realidade que o cerca, as ideologias fortemente concentradas no final do século XIX entraram em ebulição, potenciaram o sentido contrário e colheram, em cheio, uma sociedade desprovida de aparato ético que pudesse resistir às fórmulas de engenharia social típicas do século XX47. Os fenômenos totalitários e autoritários de direita e de esquerda, aliados a um racionalismo pragmático nitidamente relativista, foram a tônica dominante, confinando em suas cadeias e labirintos ideológicos parcela substancial da população mundial, mormente as suas camadas mais pobres e subdesenvolvidas48. A ignorância foi o suporte e o lastro que permitiram a ascensão de

46 WORLD CONFERENCE ON EDUCATION FOR ALL, UNICEF, Tailândia, 1990 (textos e anais

arquivados na biblioteca da Organização das Nações Unidas – ONU, em Nova York). Sobre a terrível situação atual do ensino pátrio, cf. SANT’ANNA, Lourival. As crianças já estão na escola: agora só falta elas aprenderem. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9 de jul. 2006, Sessão Vida. CAFARDO, Renata. Qualidade de Ensino Continua Ruim na América Latina. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 26 jun. 2006. Sessão Educação. p. A 16. Mais Um Triste Retrato do Ensino. Editorial. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 6 out. 2006. Notas & Informações. p. A3. Sobre a conferência da Tailândia, Fernando Reimers, professor de Educação da Universidade de Harvard, teceu as seguintes considerações: “A Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, Tailândia, foi largamente sobre alcançar oportunidade educacional no nível básico. As duas estruturas políticas educacionais produzidas pela UNESCO nos últimos vinte anos, o relatório Faure e o relatório Delors, são fundamentalmente também sobre igualdade de oportunidade educacional. O encontro presidencial hemisférico que teve lugar em Santiago em março de 1998 acordou que educação era a mais relevante área para iniciativa hemisférica e explicitamente associou sua prioridade para reduzir a pobreza no hemisfério.” (REIMERS, Fernando. What Can We Learn from Studying Educational Opportunity in the Américas and Why Should We Care?. In: ______ (org.) Unequal Schools, Unequal Chances: The Challenges to Equal Opportunity in the Américas. Cambridge, MA: Harvard University Press. 2000. p. 11).

47 Cf. AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do. A Grande Mentira. Diário do Comércio, São Paulo, 5

mai. 1993. p. 6.

48 Cf. JOHNSON, Paul. Modern Times: The World from the Twenties to the Nineties, Nova York:

(34)

elites financeiras e intelectuais, em geral as menos afeitas à identificação das necessidades materiais e espirituais mais fundamentais das populações que lhes serviam de esteio. Aprofundaram-se, assim, os já então dramáticos problemas sociais verificados em todo o mundo. J. R. Nalini, presidente da Academia Paulista de Letras, bem resume a questão ao discutir se “Ainda há lugar para a Ética?”49:

Quando o futuro se debruçar sobre o século XX, aquele será considerado o século de todas as desconstruções dos valores tradicionais. Desconstruiu-se a tonalidade na música, a figuração na pintura, a psicologia dos personagens na literatura. Mas, principalmente, ocorreu a desconstrução dos valores religiosos, morais e políticos clássicos.

Haveria necessidade de constatação do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento – Bird de que a corrupção endêmica foi a maior já registrada no Brasil nos últimos dez anos? As pessoas de bem já não haviam pressentido a corrosão da ética e da moral nesses tempos de desalento?

A crise moral possibilitou um crescimento sem precedentes da injustiça – fruto da imprudência disseminada – em todas as dimensões. É fato perceptível a alusão aristotélica de que o homem privado de conhecimento e da consciência moral está mais próximo de ser um escravo de seus instintos do que seu senhor. E é de certa forma seriamente relacionada a falta de formação intelectual e ética e o rebaixamento do ser humano ao nível do instintivo. A ausência de hierarquização entre os diversos valores componentes da realidade social leva-o a perder-se nas confusas massas inominadas, sob o domínio de instrumental ideológico de diversos matizes políticos, servindo apenas de escabelo para os poderosos da ocasião.

Referências

Documentos relacionados

(XIX EXAME DE ORDEM) O Governador do Distrito Federal, ao tomar conhecimento de que existe jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal a respeito da competência do

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Quando conheci o museu, em 2003, momento em foi reaberto, ele já se encontrava em condições precárias quanto à conservação de documentos, administração e organização do acervo,

O estágio profissionalizante encontrou-se organizado em sete estágios parcelares: Medicina Geral e Familiar, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, com quatro semanas

However, we found two questionnaires that seemed interesting from the point of view of gathering information about students' perspective on the use of

Como parte de uma composição musi- cal integral, o recorte pode ser feito de modo a ser reconheci- do como parte da composição (por exemplo, quando a trilha apresenta um intérprete

No presente texto buscamos discutir esses processos de construção e ressignificação da memória a partir de um lugar bastante específico, qual seja de uma região de