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Os vícios opostos à prudência: a imprudência no comando da ação

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO MORAL DO SER HUMANO E A EDUCAÇÃO

2.5 Os vícios opostos à prudência: a imprudência no comando da ação

A tarefa pedagógica consiste também em proporcionar ao estudante um sadio ambiente acadêmico que permita afastar os vícios opostos à prudentia, que Tomás aprecia no fim do Tratado da Prudência. Faz, assim, uma apreciação dos vícios que entende claramente opostos à prudência e também dos vícios que podem apresentar uma falsa semelhança com a virtude. Por isso, na questão 53 da Secunda secundae analisa a

imprudência, a negligência e os demais vícios opostos à virtude. É importante destacar que, no dizer do Aquinate: “Assim como a prudência é participada, de algum modo, em

todas as virtudes, porque a todas elas dirige, do mesmo modo a imprudência é participada em todos os vícios e pecados.” (II-II, 53, 2). Desse modo, como “o objeto

da prudência é aquilo que se ordena ao fim de toda vida” (II-II, 55, 1), deve-se afastar qualquer astúcia (55, 4 ad 2), o que compreende a fraude e o engano, bem como a

solicitude (inquietação) demasiada com as coisas temporais e com o futuro, devendo portanto ser moderadas (II-II, 55, 5 ad 7). Recorda, enfim, que “a fraude é filha da

avareza” (II-II, 55, 8 sed contra), recomendando para afastar a insídia e a pusilanimidade, o espírito magnânimo (II-II, 55, 8 ad 2).

John Hardon237 bem assinala que “ambos, Aquino e Aristóteles,

reconheceram que a virtude não é a sua própria recompensa e tem um significado pequeno se apartada de sua causa final”. Sem dúvida, como visto ao longo deste capítulo, o aspecto mais relevante da imprudência se manifesta na falta de percepção objetiva da realidade, o que se dá tanto pelos vícios apontados acima, como também pela falta de identificação do próprio bem almejado. Nesse sentido assinala Hardon: “não são todos os hábitos que são virtudes, mas somente um que melhora e aperfeiçoa

a capacidade racional no sentido de incliná-la na direção do bem — bem para a

capacidade [racional], para a vontade e para o homem inteiro em termos de seu destino

final”238. Assim, a gravidade da perda do sentido ético do agir humano é maior quanto mais ainda se verifica, na atualidade, a falta de acordo quanto ao próprio “bem” em sentido último e existencial. Dessa forma, os meios e caminhos a serem implementados pela prudência ficam prejudicados pois não são moralmente discerníveis de forma a

237 (HARDON, 1995) Acrescenta ainda o autor: “Um homem é virtuoso porque suas ações correspondem a uma norma objetiva, que para Aristóteles era inteligível pela razão e para Aquino pela razão e fé.” 238 Ibid.

permitir alcançar o meio da virtude, na visão aristotélica, que se estabelece entre o

excesso e o defeito239. Como salienta Hugh McDonald: “o outro ponto sobre as virtudes

é que em muitos casos não podemos dizer precisamente onde a virtude está”; isto porque, continua o autor240: “a medida certa é muito difícil de encontrar, e ela é muitas

vezes diferente de indivíduo para indivíduo” e “a idéia de ‘O Meio de Ouro’ [The Golden Mean] é que em nossas ações nós devemos buscar a medida certa e proporção.

Excesso e defeito são uma deserção da virtude”241. Não havendo a adequada percepção do fim existencial ou inexistindo fidelidade ao ser que manifesta na correta percepção da realidade, perde-se de qualquer forma a conexão com a correspondente ação concreta que a virtude – como “a disposição estável do espírito e do coração para agir bem”242 – requer. E tais graves desajustes, no campo da prudência, afetam sobremaneira o agir humano que, como visto, se ausente a virtude, ora tendem à ação temerária, ora à inação dolosa, que são absolutamente contraditórias, como excesso e defeito, com a acepção clássica da prudentia. De fato, tanto o agir temerário e voluntarista – que se traduz, como visto, em irresponsáveis e superficiais atitudes do jaez “diga que sim ou que não,

mesmo sem saber o que se diz, mas faça-o com firmeza!” – ou a indecisão que leva a

“ficar em cima do muro” ou a “não tomar partido”, usualmente exprimem cautela interesseira e covarde que muitas vezes a moderna acepção da “prudência”, afastada de seu sentido clássico e original, induz.

É imperativo não se perder de vista que a educação moral para as virtudes está lastreada na interconexão essencial entre as quatro virtudes cardeais (prudência, justiça, temperança e fortaleza), implicando que quando não se possui uma delas, na verdade não há virtude nenhuma243. Por exemplo, como assinala McDonald244: “um homem poderia saber o que é bom, saber o ele deve fazer para ter bons resultados,

mas se ele não tem temperança suas decisões serão afetadas por seu apego ao prazer”,

239 (HARDON, 1995), salienta que: “Uma bem conhecida característica da ética de Aristóteles que profundamente influenciou Aquino é a teoria que cada virtude moral é um meio entre excesso e defeito: assim coragem é um meio entre covardia e impulsividade.”

240 (McDONALD, s.d.). 241 Ibid.

e continua o autor: “ou um homem poderia estar disposto a arriscar sua vida, e ainda

assim suas ações não serem guiadas por propósitos corretos. Um ladrão de banco que arrisca sua vida não é um homem prudente, e assim ele não é verdadeiramente um homem corajoso”245.

Por isso que a dimensão ética do ato humano se volta sempre às

finalidades existenciais, sob pena de empobrecerem-se as atitudes morais ao nível de uma mera instrumentalidade, quase que somente atávica, da razão e da vontade. Luz Garcia Alonso246 bem situa o exaurimento valorativo do agir humano, tanto na perspectiva psicológica quanto moral, quando desconectado da sua finalidade, ao tratar “Da dimensão eficaz do ato humano”247:

Nos atos humanos, é preciso distinguir entre seu ser psicológico, seu ser moral e seu ser eficaz.

O ser psicológico do ato humano é a operação mesma da vontade. Na medida em que a vontade opere naturalmente como potência, suas operações são boas, já que constituem seu objeto próprio. Só quando a qualidade da vontade tenha sinal negativo (impotência volitiva) suas operações se classificarão entre os males físicos, sempre procedentes de uma causalidade segunda deficiente. Assim, o ser psicológico do ato humano é a mesma faculdade volitiva no ato segundo, é dizer um acidente da qualidade potência.

O ser moral do ato humano é uma relação que este guarda de modo necessário com o fim último do homem, trata-se da operação de um apetite racional. Se se trata de uma relação de ordenação a dito fim, qualifica ao ato humano de moral, se, pelo contrário, essa relação é de desordem com respeito ao fim último, qualifica o ato humano de imoral. A moralidade não é senão a relação mesma do ato humano com respeito ao fim último do homem. A relação necessária

245 (McDONALD, s.d.).

246 ALONSO, Luz Garcia. Saber Especulativo-Práctico Del Orden Técnico. Roma: Società Internazionale Tommaso d’Aquino - Instituto Universitario Virtual Santo Tomás. Disponível em: < http://www.e-aquinas.net/pdf/garcia_alonso.pdf >. Acesso em; 3 jul. 2007. p. 4.

do ato voluntário com o fim último do homem, é seu constitutivo formal. O ser moral do ato humano é um acidente de relação inerente no homem através de outro acidente consistente na operação voluntária livre. [...]

O ser eficaz do ato humano é uma relação que este guarda, de modo contingente com os distintos objetivos não finais do homem, objetivos obviamente muito numerosos. Se dita relação se ordena a determinado objetivo temporal ou não final, qualifica ao ato de eficaz, do contrário, o qualifica de ineficaz. O ser eficaz do ato humano é um acidente de relação – contingente – que é inerente ao homem e especialmente no operado através de outro acidente que consiste na operação voluntária transcendente ou ação externa.

Ademais, considerados os vícios da imprudência apontados pelo Aquinate com as corrosivas distorções na prática das virtudes cardeais assinaladas por Hugh McDonald e adicionadas as possíveis imperfeições dos atos humanos segundo as perspectivas psicológica, moral e de eficácia, como destacados por Garcia Alonso, e tudo isto somado à moderna e equivocada concepção negativa da “prudência”, consumam-se dois vícios atuais extremamente danosos para o seu agente e para a coletividade: De um lado, a falta de objetividade no falar e no agir, a ambigüidade preconceituosa e interesseira tão comum na política e na sociedade, muitas vezes camuflada sob o manto de um malicioso e dissimulado agir “politicamente correto”; e de outro, pela corrupção disseminada e sua filha bastarda que é a mentira rasteira e cotidiana que é uma verdadeira pandemia em todos os quadrantes: Da fraude e do engano nas relações políticas e sociais à mentira nos tribunais, passando também pelo plágio acadêmico e no labor profissional facilitado pelo “copiar e colar” tão acessível e facilitado pelas ferramentas de busca de informações prontas para consumo disponibilizadas pela Internet. Certamente, o imprudente se movimenta, mas não

progride, pois quando se age amoral ou imoralmente cede-se passagem a um utilitarismo ou pragmatismo inapropriados e incompatíveis com o agir ético coerente e responsável. Isto porque a qualidade “moral” da ação humana passa – sob uma ótica errônea e deformada – a mensurar-se apenas por critérios quantitativos e imediatistas,

voluntário e eticamente responsável da consciência – exige e requer para a realização existencial do ser humano e para a saudável fruição da vida em sociedade. Couto-Soares bem salienta que, ao se deslocar o ser humano do centro de gravidade dos interesses sociais, políticos, econômicos e culturais, a conseqüência é a desorientação ética, com todos os seus perniciosos consectários, pois agir em um ambiente de clara incerteza moral pode “bem protelar indefinida e imprudentemente qualquer decisão e terminar-se

em uma atitude de ambígua neutralidade”248. E afirma a professora portuguesa:

Um dos fatores que pode contribuir para essa desorientação é a perda do sentido de comunidade, de pertencer a um mundo de coexistência com o outro. Nossa inserção no mundo humano se dá através da palavra e da ação – como observa H. Arendt – e esta inserção é como um segundo nascimento. A palavra, o discurso é já uma forma de ação, e esta representa a via de construção de nosso mundo comum, da sociedade como uma comunidade de pessoas que se unem em função do bem comum, e não apenas por um interesse

geral de caráter instrumental. A substituição da noção ética de bem comum, pela de um interesse geral assimilado à soma quantitativa de

interesses individuais, esvaziou de sentido a noção de comunidade política, reduzindo-a a massa anônima, irracional, ilógica, com comportamentos imprevisíveis, incapaz de tomar decisões ou de assumir compromissos. A massificação dissolve a personalidade política, inibe sua espontaneidade, sua capacidade de juízo, de deliberação e de decisão, sufocando sua criatividade e sua participação na res publica. As conjunturas sociais e políticas exigem

decisões rápidas e prontas, mas o peso da informação, a variedade e a instabilidade de fatores e circunstâncias, a proliferação de mediações burocráticas, entorpecem a agilidade de deliberação, de juízo e de decisão.

Nesse sentido, também não se pode deixar de recordar a tendência da atualidade, altamente imprudente em variada gama de circunstâncias, de deixar para os “técnicos” e “experts” o juízo moral de um ato, perdendo-se a essência do que a

prudentia propugna: o decidir individual certo no aqui e agora concretos, com vistas à

realização existencial em plenitude. Ora, a qualidade moral de uma ação não é uma

questão “técnica”, mas depende essencialmente dos valores éticos abraçados por seu agente249 e também, no plano das políticas públicas e do direito, da observância aos direitos e garantias fundamentais – os inalienáveis direitos humanos – abraçados pela ordem constitucional e legal do País e segundo os parâmetros derivados do direito natural.

Esta recusa à decisão consciente e moralmente responsável que a

prudentia requer e pressupõe de cada um de nós, desumaniza a sociedade e leva inexoravelmente à destruição, à intolerância, à imposição do forte sobre o fraco. A experiência do século XX com o nazismo e o comunismo, as constantes e recorrentes lutas étnicas e conflitos religiosos tragicamente mais comuns, atualmente, no Oriente Médio, na África e em partes da Ásia, que consumam verdadeiros genocídios, a forte concentração de riquezas que leva a uma imensa distância entre ricos e pobres, o hedonismo e o consumismo desenfreados, a corrupção generalizada e a lascívia e violência disseminadas pela mídia popular dão uma pequena mostra do que a

imprudentia representa no mundo contemporâneo.

O agir negativo que a imprudência tem por conseqüência, com todas as suas conhecidas e disseminadas externalidades negativas, exige, assim, uma vigorosa resposta pedagógica, no sentido positivo da elevação dos níveis éticos nos planos individual e coletivo. É isto o que se objetiva ofertar nesta tese, ao se pretender levar adiante um projeto pedagógico no âmbito do ensino jurídico que desperte para a educação moral subjacente e imprescindível ao alcance do ideal de justiça. A presente tese, portanto, ao iluminar alguns dos riscos e graves danos causados pela imprudência e seus vícios, pretende retomar, como altamente indicativos para a modernidade, os fundamentos éticos clássicos das virtudes da prudentia e da iustitia, apresentando subsídios pedagógicos necessários à irradiação dos elevados valores da prudentia do próprio ius em sala de aula, no ensino do direito, por meio do método do caso.

CAPÍTULO 3: A VIRTUDE DA IUSTITIA