• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1: A DIMENSÃO MORAL DO SER HUMANO E A EDUCAÇÃO

1.2 A tarefa de se resgatar a Ética e a Moral

O afastamento do homem das questões mais essenciais sobre o porquê de sua existência denota ser fundamental e urgente uma adequada compreensão da moral. O diálogo com os clássicos do Ocidente é também, nessa perspectiva, imprescindível, pois o próprio conceito de moral tornou-se, para o homem de hoje, problemático. Nesse sentido, diz Lauand58:

O homem de hoje tem dificuldades para compreender o verdadeiro sentido da moral porque, ao pensar em moral, costuma imaginar alguma coisa ligada a regras e proibições, imposições mais ou menos incômodas e arbitrárias, procedentes de pais, professores, ministros religiosos; enfim, associa o tema a limitações da liberdade individual feitas pela sociedade. Totalmente outra é a concepção de nosso interlocutor antigo preferencial, Tomás de Aquino, que nem sequer poderia conceber a moral com algo imposto, “nem como assunto reservado a religiosos” e, menos ainda, como algo constrangedor ou repressivo à natureza humana! O que, sim, ele afirma é que a “moral é o ser do homem”, doutrina sobre o que o homem “é e está chamado a ser”. Sim, porque para Tomás a moral é entendida como um processo de auto-realização do homem; um processo levado a cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível mais fundamental: o do ser homem. [...]

O desacerto moral, o pecado, o vício, é, nesse contexto, precisamente uma voluntária recusa a seguir leis que estão impressas no próprio ser do homem. Agir contra a moral adquire, desse modo, um caráter de auto-agressão: assim como golpear uma parede com a cabeça viola leis físico-biológicas, assim também pode haver uma violação de leis morais, referentes à realização do ser do homem em sua totalidade. Por exemplo, alguém que pautasse sua vida pela máxima: “amar a mim mesmo sobre todas as coisas!” estaria violando também uma lei natural, referente à natureza humana: pois

ligada com o próprio sentido da existência do homem no mundo e é mesmo inquietude quanto ao futuro do homem e de toda a humanidade; ela exige resoluções decisivas que hoje parecem impor-se ao gênero humano.

o homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, é – como diz Kierkgaard – uma porta que abre para fora: quem a força para dentro, emperra-a.59

O tema é ainda evidenciado quando se coloca a questão da condicionalidade do homem às suas circunstâncias. Já Ortega y Gasset recordava que o homem, em certo sentido, é ele mesmo e “suas circunstâncias”. Mas será que as condições em que foi colocado na vida prática o impedem definitivamente de libertar-se das condicionantes da realidade que por vezes parecerem sobrepujar suas forças? Seria assim possível, ao homem, dizer-se livre? É o psiquiatra Viktor Frankl quem responde, ao criticar um certo absolutismo que por vezes se apresenta ao se tratar dos fatores determinantes da vida humana60:

Contra um sadio determinismo, é claro não haveria nada a dizer; mas o que nós temos que contraminar é aquilo que eu tentei definir como “pandeterminismo”. (De braço dado com o pandeterminismo, portanto com um determinismo exorbitante, andam, em geral, certo subjetivismo e certo relativismo não menos exorbitantes. O primeiro traduz-se especialmente nas teorias da motivação, e tanto assim é que segue a orientação da homeostase, em termos unilaterais e exclusivistas). Evidentemente, o homem está determinado, isto é, sujeito a condições, quer se trate de condições biológicas e psicológicas, quer de condições sociológicas; e, neste

59 Em sentido semelhante, Albert Einstein, Ideas and Opinions (Nova York: Crown Trade Publish., 1982. p. 12), ao tratar do que acreditava ser o verdadeiro valor do ser humano, destacou: '“O verdadeiro valor de um ser humano é primeiramente determinado pela medida e o sentido pelo qual ele atingiu a liberação de si mesmo”. Essa aparente contradição – presente sempre que se trata de amor ou felicidade – é assim exposta por Pieper: “Continuamos, pois, a sustentar firmemente que o amor não procura ‘o seu’. No entanto, uma vez satisfeito esse pressuposto não-calculista do desprendimento, aquele que assim ama acaba recebendo de fato ‘o seu’. E quem é que poderia, em são consciência, desprezar esta recompensa pelo amor empenhado: os grandes mestres do cristianismo afirmaram-no muitas vezes: Deixar de querer a felicidade é algo inteiramente contrário à natureza do homem. Um amor tão absolutamente desprendido, sem razão alguma de ser – como é o amor defendido por determinados teólogos que afirmam ser ele o único amor verdadeiramente cristão -, encontra-se além de nossas possibilidades. Ou seja, o paradoxo de um amor-próprio desprendido continua de pé. Não é muito difícil adivinhar quem é o autor das seguintes sentenças: ‘Se amas a tua alma, estás correndo grave risco de fazê-la naufragar. Portanto, não podes amá-la, na medida em que não querias que ela naufrague. Por outro lado, ao não desejar o seu naufrágio, já a estás amando’. O autor é, mais uma vez, o ‘Doutor do amor’: Agostinho. E eu posso perfeitamente imaginar com quanto prazer ele aplicou a dialética a esse pensamento bíblico, ao

sentido, de modo algum é livre: o homem não está livre de condições e, em geral, não está livre de algo, mas livre para algo, quer dizer, livre para uma tomada de posição perante todas as condições; e é precisamente esta possibilidade propriamente humana que o pandeterminismo de todo em todo esquece e desconhece.

Não preciso que ninguém me chame a atenção para a condicionalidade do homem: afinal de contas, eu sou especialista em duas matérias, neurologia e psiquiatria, e nessa qualidade sei muito bem da condicionalidade biopsicológica do homem; acontece, porém, que eu não sou apenas especialista em duas matérias, sou também sobrevivente de quatro campos de concentração, e por isso também sei perfeitamente até onde vai da liberdade do homem, que é capaz de se elevar acima de toda condicionalidade e de resistir às mais rigorosas e duras condições e circunstâncias, escorando-se naquela força que costumo denominar o poder de resistência do espírito.

Frankl vai adiante na sua análise e, em raciocínio semelhante ao logo acima explorado por Lauand, afirma61:

[...] Pertence à essência do homem o ser ele, em todo caso,

aberto, o ser ‘aberto ao mundo’ (Scheler, Gehln e Portmann) – ser homem significa, já de si, ser para além de si mesmo. A essência da existência humana, diria eu, radica na sua autotranscendência. Ser homem significa, de per si e sempre, dirigir-se e ordenar-se a algo ou alguém: entregar-se o homem a uma obra a que se dedica, a um alguém que ama, ou a Deus, a quem serve. 62

E é nessa perspectiva que exsurge a educação como instrumento essencial à realização do ser humano, tanto na perspectiva técnica quanto na moral. A educação representa um fundamental e indispensável processo de desenvolvimento das

61 (FRANKL, 1986, p. 44 e 45, grifos nossos).

62 E Frankl (ibid.) continua: “Esta autotranscendência quebra os quadros de todas as imagens do homem que, no sentido de algum monadologismo (Frankl, Der Nervenarzt, 31, 385, 1960), representam o homem como um ser que não atinge o sentido e os valores, para além de si mesmo, orientando-se, assim, para um mundo, interessando-se exclusivamente por si mesmo, como se lhe importasse a conservação ou o restabelecimento da homeostase”. (Grifos nossos).

faculdades corporais e espirituais da pessoa, de forma a capacitá-la, através de sua própria responsabilidade, a cumprir com suas tarefas vitais, à luz de suas finalidades existenciais63. Isto é, porque o homem é um ser que transcende os seus próprios limites, alguém que deve “abrir-se para fora” e para “além de si mesmo”, é que a educação é o meio hábil, por excelência, à ampliação de seus horizontes pessoais e sociais.

O homem não educado – cultivado, diriam os antigos, no sentido de lhe serem desenvolvidas as faculdades em potência inscritas na própria natureza humana –, fica de certa forma limitado a ações e reações perante as circunstâncias que o cercam, restrito na sua capacidade de abrir-se para o todo da realidade. Isto é, limita-se a sua capacidade de absorver e processar intelectualmente, e segundo os critérios de uma consciência amadurecida, o real valor das circunstâncias em que, em grande parte alheias à sua vontade, a sua rotina diária se desenvolve. Ignorante, tenderá a ficar premido por elas, amputado naquilo que lhe seria de maior valia: a capacidade de

reagir perante a totalidade do real; de transcender às próprias limitações pessoais e

materiais, independentemente da conjuntura em que se encontre. Em suma, sem aprimoramento de suas faculdades intelectuais e morais, é presa indefesa num vácuo existencial do qual decorrerá a ausência de sentido na vida, na conotação mais profunda e dramática do termo. O pensamento aristotélico já afirmava o caráter físico e espiritual do ser humano, composto, assim, de corpo e alma. Na alma está sediada a faculdade intelectiva que, aprimorada pela educação, permite à pessoa valorar o conteúdo de seus atos e ordená-los à consecução de seus fins naturais. Isto é, a consciência individual, potencializada pela aquisição e o desenvolvimento das virtudes e adequadamente formada por critérios éticos ordenadores do agir humano, encaminha o ser humano à sua realização plena, existencial. E aqui se apresenta o sentido próprio das virtudes, voltadas à realização humana em plenitude.

Baumgarth e Reagan sublinham que64:

A concepção de virtude de Tomás é a chave para sua teoria da política e reflete não apenas sua elucidação deste relacionamento,

como também a influência de Aristóteles sobre seu raciocínio filosófico. Diferentemente dos pensadores políticos modernos, como Hobbes (1588-1679), São Tomás vê o cultivo da virtude como o fim político. Virtude, em grego, é sinônimo de excelência. A excelência está ligada a um modo de vida que tanto para o indivíduo quanto para comunidade, tem por meta a felicidade. O estudo da ética nos ensina como ser felizes. A melhor comunidade é aquela que colocou em prática a excelência (virtude).

A busca da virtude, notadamente pelo aprofundamento do estudo da moral, diante do amplo contexto social, político e econômico em que a vida humana se desenvolve, encaminha o homem à felicidade, que desde a clássica concepção aristotélica é traduzida pelo “sumo bem”. Por aquele bem que se busca por si mesmo, e não como um bem intermediário (como as satisfações físicas ou emocionais advindas de êxitos parciais e temporários, tais como o sucesso ou o prazer decorrentes de um ou mais dos vários matizes em que se projeta a vida humana: por exemplo, na perspectiva profissional, financeira, familiar, esportiva etc.).

Baumgarth e Reagan continuam 65:

A felicidade, para Aristóteles e São Tomás, não é uma euforia impensada e momentânea, mas antes a consciência que temos da atividade humana de longo prazo, bem sucedida e inteligente. Se, por exemplo, o olho humano tivesse consciência de estar desempenhando bem sua atividade – de enxergar bem – aquela consciência seria, para o olho, a felicidade. O prazer e a dor são pistas fornecidas pela natureza sobre o que devemos fazer para ser felizes. No entanto, estas pistas não são guias infalíveis; elas precisam passar pelo crivo da razão. A razão, como vimos, pode ser interpretada de duas maneiras: ela pode ser entendida como contemplação, como a busca de conhecimento pelo prazer de conhecer, ou pode ser entendida como o sentido de saber como nos conduzir na prática de nossas vidas. A perfeição da razão como conhecimento de como devemos nos portar na prática produz a virtude intelectual da prudência (ou saberia prática).

1.3 O sentido da vida e a realização em plenitude: Simpliciter e secundum quid