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O investimento nos corpos e, consequentemente, nas sexualidades desses, sempre foi objeto de atenção e de problematização desde tempos remotos, segundo Foucault (2012b, 2012c, 2012d).

Na Antiguidade Clássica, a preocupação com os corpos era variada, iam de prescrições que passavam pelo cuidado de si, por modos de conduta de si e por prescrições e chegavam ao uso dos prazeres.

Essas prescrições, que foram designadas por Foucault (2012c, p. 137) como Dietética, Econômica e Erótica, eram as artes da existência e se direcionavam a toda uma maneira de:

Se constituir como sujeito que tem por seu corpo o cuidado justo, necessário e suficiente. Cuidado que atravessa a vida cotidiana; que faz das atividades maiores ou rotineiras da existência uma questão ao mesmo tempo de saúde e de moral; que define entre o corpo e os elementos que o envolvem uma estratégia circunstancial; e que, enfim, visa armar o próprio indivíduo com uma conduta racional.

Para os antigos gregos, as artes da existência funcionavam como técnicas de si e influenciavam diretamente a vida em sociedade, uma vez que “a virtude individual tem que se estruturar como uma cidade”, eram, na realidade, estilizações das condutas (FOUCAULT, 2012c, p. 289).

Resumidamente, segundo Foucault (2012c), a arte Dietética descrevia a relação de si com o próprio corpo e com a saúde dele, a arte Econômica descrevia a relação de si com

esposa e com a instituição do casamento e a arte Erótica era direcionada à relação de si com os rapazes, com a liberdade de si e com a virilidade de si.

Para Foucault (2012c, 2012d) a Antiguidade Clássica já apontava para uma certa regulação das atividades homossexuais. No entanto, essa regulação era pautada por discursos prescritivos, ou seja, discursos ainda não normalizadores, pois não eram impostos aos indivíduos, mas envolviam muitos procedimentos. O autor designará esses procedimentos de artes da existência, cada um deles com elementos e direcionamentos específicos à vida do indivíduo e à conduta dele em sociedade (FOUCAULT, 2012b, 2012c).

Os cuidados de si com o uso dos prazeres diziam respeito à masturbação e às relações homoafetivas consideradas “desperdício de sêmen”. Para o autor, é na Antiguidade Clássica que muitos discursos que seriam reatualizados, que seriam transformados e sustentados pela tradição judaico-cristã começam a tomar forma (FOUCAULT, 2012c, 2012d).

Por exemplo, o desperdício do sêmen na forma da masturbação ou nas relações homoafetivas já eram sinalizados e problematizados na era clássica. Contudo, não se tratava de moralizar as condutas e, sim, de prescrever.

Nessa direção, alguns enunciados estavam relacionados à medicina e visavam à saúde e ao cuidado de si com os excessos em todas as suas formas: na alimentação, na prática de esportes, na parte econômica e, lógico, no sexo. Outros enunciados, como os da filosofia e os da medicina, visavam à temperança como base desses cuidados de si para com o uso dos prazeres e para com a formação moral e ética do próprio sujeito (FOUCAULT, 2012c, 2012d).

Os perigos do desperdício seminal serão amplamente descritos na Antiguidade e terão formas de condutas prescritas na arte Dietética. Dentro dessa arte, a masturbação e o sexo, em excesso, com pessoas do mesmo sexo ou com pessoas do sexo oposto, poderia levar o corpo à falência comprometendo a geração de filhos perfeitos e úteis à economia da Pólis (FOUCAULT, 2012c, 2012d).

Nesse sentido, Foucault (2012c) irá opor três categorias que tomaram os corpos como domínio discursivo: o paganismo, o cristianismo e a moral sexual. Estes seriam pontos históricos para a formação e transformação de práticas que problematizaram a sexualidade (FOUCAULT, 2012c).

Essas três categorias, segundo Foucault (2012c), marcam os discursos de investimento nas sexualidades. Contudo, apesar de se iniciarem na Antiguidade, tinham

objetivos completamente opostos, mas nem por isso, dissociados. Um exemplo desses objetivos opostos seria a preocupação com a masturbação e com o sexo entre pessoas do mesmo sexo, para os antigos gregos não era uma preocupação moral com os atos em si.

Contudo, essa preocupação irá ser (re)constituída e reconfigurada pelo poder pastoral dos séculos seguintes e, pelos saberes médicos, entre os séculos XVII e XX. O poder pastoral e os saberes médicos tomaram o sexo e as sexualidades como domínios discursivos e os associaram aos pecados da carne, às patologias e, finalmente, às anormalidades. Borrillo (2010) considera tais categorias, doutrina judaico-cristã e saberes médicos, como fundadoras das hostilidades contra os homossexuais.

Tanto Borrillo (2010) quanto Foucault (2012c, 2012d) descrevem o amor entre as pessoas do mesmo sexo no mundo greco-romano de maneira positiva e normal, com função de iniciação e de preparação dos rapazes -filhos de homens livres- para a vida conjugal e política da Pólis.

Na Grécia Antiga, segundo Borrillo (2010, p. 45) o termo pederastia implicava em uma “afeição espiritual e sensual de um homem adulto por um menino”. Porém, tanto Borrillo (2010) quanto Foucault (2012c) observam a existência de um certo limiar de idade e de um status para serem exercidas as relações homossexuais.

No entanto, esse limiar não era uma problematização moral, mas, para nós, já seria um indício de formação de discursos “moralizantes” das condutas sexuais, e, com isso, apontaria para uma possível constituição das práticas preconceituosas e discriminatórias que mais tarde começariam a ser formadas.

Foucault (2012d) assinalará que as relações homossexuais existiam, mas elas estavam sujeitas às coerções sociais da época, às ritualizações que fixavam os papéis e impunham regras ao erasta (amante) e ao erômeno (objeto de amor e atenção pedagógica do erasta). Assim, as ritualizações dentro das relações entre os homens e os rapazes, para Foucault (2012d, p. 245):

Definem todo um conjunto de condutas oportunas e convenientes fazendo, assim, dessa relação, um domínio cultural e moralmente sobrecarregado; essas práticas [...] definem o comportamento mútuo de estratégias que os dois parceiros devem observar para dar as suas relações uma forma “bela”, estética e moralmente válida. Elas fixam o papel do erasta e o do erômeno. O primeiro tem a posição da iniciativa, ele persegue, o que lhe dá direitos e obrigações: ele tem que mostrar seu ardor, e também tem que moderá-lo; ele dá presentes ao amado; presta serviços; tem funções a exercer com relação ao amado; e tudo isso o habilita a esperar a justa recompensa; o outro, o que é amado e cortejado, deve evitar ceder com muita facilidade; deve também evitar aceitar demasiadas honras diferentes, conceder seus favores às cegas e por

interesse, sem pôr à prova o valor de seu parceiro. Ora, essa prática de corte mostra por si mesma que a relação sexual entre homem e rapaz “não era sem problemas”; devia ser acompanhada por convenções, regras de comportamentos [...]. Isto quer dizer que esse gênero de relações, que era perfeitamente admitido, não era indiferente. Todas essas preocupações mostram bem que as relações de prazer entre homens e adolescentes já constituíam, na sociedade, um elemento delicado e um ponto tão nevrálgico que não se podia deixar de preocupar-se com a conduta de uns e de outros.

Por conseguinte, haveria fronteiras entre as relações que eram aceitas e as relações que não eram, como o limite de idade dos parceiros para estarem e desempenharem essas relações, os status dos parceiros que deveriam ser homens livres e o modo como esses rapazes agiam e se portavam dentro dessas relações

Isso evidenciaria que mesmo na Antiguidade Clássica as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo não eram totalmente livres. A diferença estava na problematização dessas relações, pois elas não se baseavam na moral, não se baseavam no corpo ou no ato sexual em si. O que se questionava e o que se tentava equilibrar era o excesso do ato sexual.

Confirmando os estudos de Foucault (2012b, 2012c, 2012d), Borrillo (2010) descreve que mesmo havendo a pederastia na Grécia antiga, o homem deveria se casar, deveria constituir família e zelar não só pelos interesses econômicos da família e da cidade, mas, sobretudo, pela descendência futura.

Para Borrillo (2010) somente a bissexualidade ativa era bem vista e aceita entre os gregos. Tanto Foucault (2012c, 2012d) quanto Borrillo (2010) defendem que somente a virilidade, o indivíduo ativo na relação homossexual gozava de prerrogativas e de prestígio social e, somente, até determinada idade.

Todavia, Borrillo (2010) não considera a já existência de discursos e práticas preconceituosas e discriminatórias contra os homossexuais na Grécia Antiga, apesar de apontar algumas restrições de condutas sexuais para as relações homoafetivas.

A questão maior é que a passividade, a ideia de ser passivo em uma relação sexual, não tinha a ver com uma conduta imoral ou anormal, tinha a ver com os aspectos políticos das cidades. Na realidade, todas as questões referentes às sexualidades, às condutas sexuais, independentemente de serem heterossexuais ou homossexuais, giravam em torno dos benefícios para a Pólis (FOUCAULT, 2012c, 2012d).

Para ser um bom cidadão, um bom político, um bom homem de negócios ou um bom administrador, o homem tinha que ser temperante e essa temperança somente seria

obtida por aqueles que soubessem dosar o uso dos prazeres, entendessem e praticassem o cuidado de si (FOUCAULT, 2012c, 2012d). O homem que preenchesse esses quesitos, com certeza, seria um homem útil aos interesses da cidade, principalmente aos econômicos e éticos.

Um homem útil aos interesses da Pólis seria aquele que conduzisse a si mesmo de maneira equilibrada, pois, ao atingir a temperança, ele alcançaria os valores éticos e morais que são necessários à vida em sociedade. Esse objetivo estava ligado a tudo e, não somente, às condutas dentro das relações homossexuais (FOUCAULT, 2012c, 2012d).

Para os gregos antigos as atividades com o cuidado de si e o uso dos prazeres visavam à formação dos jovens. As atividades com o cuidado de si objetivavam uma estética da existência e não uma sujeição dos indivíduos às normas e às condutas normalizantes (FOUCAULT, 2012c, 2012d).

Os antigos gregos prescreviam - segundo Foucault (2012b, 2012c, 2012d), Rago (2016) e Borrillo (2010) - mas não normatizavam a sociedade. O homem ideal para a cidade seria o indivíduo equilibrado, seria aquele que não se deixa dominar pelos próprios instintos, que não fosse escravo de si mesmo, das paixões e dos excessos.

Os gregos propunham, segundo Foucault (2012c, p. 29), por intermédio de diversos textos descritivos de cunho filosófico “estilos de moderação ou de rigor”, sendo essas propostas pensadas e direcionadas, segundo o autor (FOUCAULT, 2012b, p. 30-31):

À uma moral de homens: uma moral pensada, escrita ensinada por homens e endereçadas a homens, evidentemente livres. Consequentemente, moral viril [...] ela não tenta definir um campo de conduta e um domínio de regras válidas para os dois sexos; ela é uma elaboração da conduta masculina, feita do ponto de vista dos homens, para dar forma as suas condutas.

Por isso, mas não somente, os antigos gregos valorizavam dentro das relações sexuais a virilidade e a forma ativa nas relações, pois, segundo Borrillo (2010, p. 47): “As dicotomias “macho/fêmea”, “ativo/passivo” definiam papéis sociais, o acesso ao poder e a posição de cada indivíduo segundo seu gênero e sua classe”, não havendo a questão moralizante das condutas sexuais.

No concernente às práticas enunciativo-discursivas que vêm sustentando homofobias, Borrillo (2010) argumenta que, na atualidade, apesar de ter havido uma renovação no discurso da doutrina católica, ela continua a ter a mesma ideologia essencialista e Escolástica. A doutrina católica se fundamenta na divisão criacionista de

que a vontade divina fez macho e fêmea e qualquer alteração nessa lógica será uma distorção à ordem divina e natural (BORRILLO, 2010).

No capítulo 6, nas análises dos corpora, vamos demonstrar que para alguns enunciados nos pronunciamentos da proposição 122/06 a homofobia é um conceito inventado. Uma ficção para a produção e a constituição de um determinado étos vitimológico ou, ainda, para a indução de empatias. Assim, esse conceito teria sido adotado para hipervalorizar as consequências de práticas preconceituosas e discriminatórias contra os/as LGBTIs.

Não há como negar que, como qualquer outra designação, a homofobia se tornou domínio discursivo de muitos saberes, como o jurídico, o sociológico, o antropológico, o histórico, o psicológico, o psiquiátrico e, outros tantos, inclusive, o saber dos estudos de linguagem.

Sendo assim, é evidente que há uma constante luta entre vários domínios discursivos para a constituí-la. Porém, independentemente dos saberes e dispositivos nela investidos, a prática homofóbica – preconceitos e discriminações, que se materializam de várias maneiras contra as pessoas LGBTIs são reais. A homofobia desumaniza, inferioriza, exclui, torna anormal o outro.

Na próxima seção, discorreremos sobre como o conceito de homofobia é tratado dentro do campo discursivo dos direitos humanos e como eles têm influenciado o enfrentamento às práticas preconceituosas e discriminatórias.