• Nenhum resultado encontrado

2.5 De corpo penitente a corpo confessional

2.5.2 Do monstro humano-moral ao anormal

O conceito de normal, de anormal, de anormalidade e do anormal somente se tornaram possíveis com a emergência de saberes médicos correlacionados aos saberes jurídicos. A partir de uma prática efetivamente discursiva e correlacional entre campos e espaços discursivos e de saberes distintos, especificamente os saberes da psiquiatria e os do direito penal que, ao se retroalimentarem, possibilitaram a constituição de normas e de normalizações.

Falar do monstro-humano e da noção de anormal é falar da história da psiquiatria e do direito penal. De uma imbricação das práticas e dos saberes médicos no campo discursivo jurídico e, mais estritamente, nos espaços discursivos do direito penal.

É falar da presença do saber médico em todos os processos de julgamento para a imputabilidade dos réus ou a absolvição deles. A história da constituição do anormal, da anormalidade e da norma, é a história das correlações de força enunciativo-discursivas- médico-legais e a história pela disputa de domínios discursivos sobre os corpos, sobre as vidas e sobre as sexualidades. Cada qual mobilizando dispositivos específicos para estabelecerem saberes e discursos de verdade.

Um desses procedimentos reconstituídos foi o exame. O exame fora, por muito tempo, uma técnica do poder pastoral, agora, ele seria retomado, capturado, pelos saberes médicos – já no final do século XVIII e durante o século XIX - que, ao o aplicarem, instituíram uma prática para se estabelecer e validar os discursos de verdade.

Foi por intermédio do exame que os discursos de verdade, sobre os corpos e as sexualidades, puderam se instituir como chancela científica, como saber científico e, igualmente, puderam constituir a psiquiatria e a prática psiquiátrica como disciplina, como área de conhecimento dentro da medicina moderna.

A psiquiatria e o direito penal, por meio dos relatórios médico-legais sobre os réus, formaram discursos com poder de vida e de morte sobre os corpos e as sexualidades discursivizadas como “periféricas”, “anormais” e “contranatureza” (FOUCAULT, 2014).

Pensar na noção de anormal, de anormalidade, do anormal e da norma, é pensar em constituições discursivas históricas, é pensar nos discursos de verdade que são possíveis por múltiplas situações, mas, inclusive, por processos designativos constituídos e instituídos por correlações de força enunciativo-discursivas.

Não vamos fazer as reconstituições de todos os processos que se sucederam até a constituição do anormal, descritos por Foucault (2014), dentro das correlações de força enunciativo-discursivas da psiquiatria e do sistema penal. Mas, vamos reconstituir uma linha de raciocínio que levou a ele.

Foram os processos designativos, mas não somente, validados pelos discursos de verdade que possibilitaram as noções de anormal, da anormalidade, do anormal e da norma estarem presentes e associados às homossexualidades ainda nos nossos dias.

Tais correlações geraram discursividades, por intermédio, segundo Foucault (2014, p.11), de “enunciados que tinham o poder de vida e de morte e que funcionavam na instituição judiciária como discursos de verdade”.

A partir desses discursos de verdade, se constituiria uma relação intrínseca entre as práticas jurídicas e as práticas médicas que marcaria todos os séculos seguintes. Esses discursos como chancelas científicas e instituições de verdade conseguiram ocupar a ordem do discurso. Conseguiram a condição à significação, e instituíram saberes e verdades sobre os indivíduos, sobre seus corpos e, principalmente, sobre suas sexualidades, que chegaram aos nossos dias. Destarte, reflete Foucault (2004, p. 18):

[...] Penso ainda na maneira como um conjunto tão prescritivo quanto o sistema penal procurou seus suportes ou sua justificação primeiro, é certo, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada, em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade ou, no mínimo, com estatuto de verdade.

O direito à significação advém essencialmente pela validação dos discursos de verdade, e eles somente serão possíveis se forem devidamente aceitos e instituídos pelas disciplinas.

Logo, a verdade não existe. A verdade é sempre uma construção. Se é aceita em determinado momento e lugar é por constituir múltiplos domínios discursivos e, no mesmo sentido, pertencer a estes que a valida.

Para Foucault (2004), a relação da verdade ou, a constituição dela advém das disciplinas e dos saberes que daí surgem e instituem práticas discursivas. No mesmo sentido, a constituição da verdade tem que ter “autorizações discursivas” para que ela obtenha a “condição de possibilidade à significação” em um determinado campo ou espaço social (FOUCAULT, 2004, 2014). É dentro desses processos, complexos e muitas vezes sub-reptícios, que a verdade é constituída, reconstituída ou instituída.

Por conseguinte, a verdade não é natural, a verdade não existe. O que há, por esse enfoque foucaultiano, são domínios discursivos que constituem saberes, induzem a estados de poder e a estados de verdade. Desse modo, aludimos a Foucault (2004, p. 33-35):

No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do que se crê. [...] muitas vezes se perguntou como os botânicos ou os

biólogos do século XIX puderam não ver que o que Mendel dizia era verdade. Acontece que Mendel falava de objetos, empregava métodos, situava-se num horizonte teórico estranhos à biologia de sua época. [...] Mendel dizia a verdade, mas não estava no “verdadeiro” do discurso biológico de sua época: não era segundo tais regras que se constituíam objetos e conceitos biológicos. [...] É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma “polícia” discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos.

Além dessa verdade, para que ela se torne verdade, tem que pertencer a campos e espaços de saber que a chancelam como legítimas. Sendo assim, o estatuto desses enunciadores, dessas funções enunciativas que as enunciam, igualmente, têm que ser validados, reconhecidos por tais campos e espaços.

Por isso, Foucault (2008a) faz a pergunta: “Quem fala?”. Consequentemente, é preciso saber, além da verdade, quem a enuncia, quem tem a autoridade para enunciá-la. À vista disso, citamos Foucault (2008a, p. 56):

Quem fala? Quem no conjunto de todos os sujeitos falantes tem boas razões para ter esta espécie de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dela sua singularidade, seus encantos, e de quem, em troca, recebe se não sua garantia, pelo menos a presunção de que é verdadeira? Qual é o status dos indivíduos que têm – e apenas eles – o direito regulamentar ou tradicional, juridicamente definido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante discurso? O status do médico compreende critérios de competência e de saber; instituições, sistemas, normas pedagógicas; condições legais que dão direito – não sem antes lhe fixar limites - à prática e à experimentação do saber.

Ao observarmos as constituições enunciativo-discursivas nos pronunciamentos do PLC 122/06, que constituem, reconstituem e instituem saberes e verdades sobre as sexualidades dos/das pessoas LGBTIs, sobre a noção de igualdade e liberdade, e sobre o direito que as pessoas LGBTIs podem ou devem ter acesso, nos perguntamos: Quem fala? Que funções enunciativas mobilizam para enunciarem discursos de vida e de morte, discursos de pretensão à verdade e de instituição dessa? Que correlações essas funções enunciativas movimentam e quais os saberes que elas constituem?

A noção de anormal, de anormalidade e do anormal sobre as sexualidades, a própria ideia de homossexualidade, pertencem a esses processos constitutivos de correlações de força enunciativo-discursivas. Processos, em sua maioria, perversos e somente possibilitados pelo engendramento de vários domínios discursivos que, ao designarem, instituíram domínios de saber e práticas discursivas.

O anormal será aquele definido por esses processos correlacionais e pelos discursos – médico-jurídico-religioso – com estatuto de verdade. O anormal será a junção de três elementos, constituídos de maneira dispersa em campos e espaços discursivos específicos, que tiveram início na Idade Média e chegaram ao século XIX.

O anormal é a junção conceitual do monstro-humano, do incorrigível e do masturbador. Cada qual, em seu tempo, em campos e espaços discursivos e de saber específicos. No entanto, em comum entre eles, o processo de instituição de expressões designativas e de práticas que os constituíram e os instituíram como anormais.

De formas esparsas no tempo e sob dispersão enunciativo-discursivas, cada qual tornou-se domínio discursivo de múltiplos saberes e de correlações de força enunciativo- discursivas, se inscrevendo, dessa maneira, segundo Foucault (2014, p. 281), “em sistemas autônomos de referência cientifica”. Destarte, o indivíduo anormal, para Foucault (2014, p. 288), é aquele:

Que desde o fim do século XIX, tantas instituições, discursos, saberes levam em conta, deriva ao mesmo tempo da exceção jurídico-natural do monstro, da multidão dos incorrigíveis pegos nos aparelhos de disciplinamento e do universal secreto da sexualidade infantil. [...] Cada um se inscreverá em sistemas autônomos de referência científica: o monstro, numa teratologia e numa embriologia que encontram em Geoffrey Saint-Hilaire sua primeira grande coerência cientifica; o incorrigível numa psicofisiologia das sensações da motricidade e das aptidões, o onanista, numa teoria da sexualidade que se elabora lentamente a partir da Psychopathia Sexualis de Kaan. [...]: a construção de uma teoria geral da “degeneração” que, a partir do livro de Morel (1857), vai, por mais de meio século, servir de marco teórico, ao mesmo tempo que de justificação social e moral, a todas as técnicas de detecção, classificação e intervenção concernentes aos anormais; a criação de uma rede institucional complexa que, nos confins entre a medicina e a justiça, serve ao mesmo tempo de estrutura de “recepção” para os anormais e de instrumento para a “defesa” da sociedade.

O anormal será aquele que, para Foucault (2014, p. 54), transgride a natureza, que transgride as normas “do direito humano e do direito divino”. Um misto de espécies, humanas e não-humanas, uma “aberração”, a mistura dos dois sexos. Enfim, será sempre o “antinatural”.

As noções de anormal, de anormalidade, do anormal e do estabelecimento da norma somente foram possíveis pois os discursos de verdade, com a chancela médica ou jurídica, os balizaram, os validaram e, no mesmo sentido, validaram as funções enunciativas ali instituídas.

É do engendramento histórico desses múltiplos campos e espaços discursivos que, ainda nos dias atuais, tais expressões designativas, que constituíram e instituíram práticas discursivas, perpetuam preconceitos e práticas discriminatórias contra os/as homossexuais. Todos esses processos, gradualmente, por intermédio da psiquiatria e do sistema penal, tiveram como base os discursos de verdade e validaram processos designativos como: instinto, estado, periculosidade, indivíduo perigoso, inversão, perversão, invertidos, uranistas, sodomia, sodomitas, anormal, anormalidade, aberração, homossexual, homossexualidade, entre outras (FOUCAUL, 2012b, 2012c, 2012d, 2014; BORRILLO, 2010; RAGO, 2016; FERLA, 2005; NASCIMENTO, 2007). Todos esses processos designativos, sem exceção, foram discursivizados, se tornaram domínios discursivos de saberes e de correlações de força enunciativo-discursivas.

Essas correlações de força enunciativo-discursivas desenvolveram uma nova espécie de poder sustentada pelo dispositivo do exame médico-legal, instauraram o poder de normalização. Instituíram a norma, pois, pelo exame médico-legal, era definido o que estava dentro da norma e o que não estava.

Esses mecanismos de normalização constituíram instâncias de controle e domínios discursivos dos corpos e das sexualidades e, estabeleceram a noção de normalidade e de anormalidade.

Foucault (2014) afirma que a cada época eram constituídos monstros específicos. Os hermafroditas, os irmãos siameses, a criança masturbadora, os/as homossexuais, entre outros. Mas todos com algo em comum: o domínio discursivo de seus corpos e de suas sexualidades. Para Foucault (2014, p. 47-49), o monstro:

Ele é, num registro duplo, infração às leis em sua existência mesma. O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que podemos dizer “jurídico-biológico” [...]. Daí um certo número de equívocos que vão continuar [...] a perseguir por muito tempo a figura do anormal, mesmo quando o homem anormal, tal como será constituído na prática e no saber do século XVIII, tiver reduzido e confiscado, absorvido, de certa forma as características próprias do monstro. De fato, o monstro contradiz a lei. Ele é a infração, e a infração levada a seu ponto máximo. [...] a forma natural da contranatureza. É o modelo ampliado, a forma desenvolvida pelos próprios jogos da natureza de todas as pequenas irregularidades possíveis. [...] É o princípio de inelegibilidade de todas as formas – da anomalia. [...] O monstro é, paradoxalmente, apesar da posição-limite que ocupa, embora seja ao mesmo tempo, o impossível e o proibido. [...] O monstro é, por definição, uma exceção.

Em resumo, o que possibilitou a constituição da ideia jurídico-biológica do monstro-humano foi a inserção do exame psiquiátrico, a partir do século XVIII, como

validador e constitutivo das imputabilidades penais nos julgamentos. O exame psiquiátrico, em forma de relatórios ou descrições, assumiu, naquele período, o que Foucault (2014) designa de discursos de verdade, pois tinham o estatuto de cientificidade e eram formulados por pessoas qualificadas no interior de uma instituição científica.

O importante é sabermos que tais discursos instaurados pela justiça e validados pela medicina, segundo Foucault (2014), podem ser classificados como grotescos ou ubuescos, uma vez que, apesar de terem estatuto de verdade ou de cientificidade, têm teor irrisório e estão organizados em argumentos falaciosos ou tautológicos.

Porém, seus efeitos são reais, já que têm o poder de vida ou de morte e são portadores de tecnologias específicas que maximizam os efeitos de poder a partir da desqualificação de quem o produz.

Foucault (2014) irá afirmar que tais discursos deveriam estar incluídos em categorias precisas de análises histórico-políticas, já que produzem verdades, ou, no mínimo, presunções de verdade por sujeitos que supostamente sabem. Em vista disso, para Foucault (2014, p. 11-13):

Chamarei de “grotesco” o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem, o “ubuesco” não é simplesmente uma categoria de injúrias, não é um epíteto injurioso, e eu não queria empregá-los nesse sentido. [...] O terror ubuesco, a soberania grotesca ou, em termos mais austeros, a maximização dos efeitos de poder a partir da desqualificação de quem os produz: isso, creio eu, não é um acidente na história do poder, não é uma falha mecânica. Parece-me que é uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos de poder. [...] O poder político, pelo menos em certas sociedades, em todo o caso a nossa, pode se atribuir a possibilidade de transmitir seus efeitos [...] num canto que é manifestamente, explicitamente, voluntariamente, desqualificado pelo odioso, infame ou pelo ridículo. [...] Parece-me que encontramos aí, da soberania infame à autoridade ridícula, todos os graus de que poderíamos chamar de indignidade do poder.

A questão maior é que eles comportam supostas verdades que são aceitas como “verdadeiras”, mesmo sendo formulados por indivíduos desqualificados. O discurso grotesco ou ubuesco será retomado por nós no capitulo cinco concernente à análise dos corpora.

No entanto, já adiantamos que, mesmo aparentemente irrisórios, falaciosos ou tautológicos, constituíram, instituíram, fundamentaram e perpetuaram saberes e verdades sobre as sexualidades nas constituições enunciativo-discursivas nos pronunciamentos.

A próxima seção abordará como foi constituída a noção de homossexualidade e a intrínseca relação entre os saberes médicos e as políticas higienistas do século XIX.