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Hybris tecnológica:o digital e a transfiguração das formas cênicas

CAPÍTULO II – Tecnologias e crise da cena frontal:

3.5 Hybris tecnológica:o digital e a transfiguração das formas cênicas

É importante fazermos sempre reflexões que constantemente nos coloquem diante das razões primeiras que nos convidaram a abordar este tema de nosso trabalho, o qual, pelo menos para nós, firma-se como algo bastante espinhoso, com

141 “Definimos o termo ‘performance digital’ de forma ampla para incluir todas as obras de

performance nas quais as tecnologias da computação desempenham um papel fundamental, em vez de um papel subsidiário em conteúdo, técnicas, estéticas ou formas de entrega. Isso inclui o teatro ao

vivo, a dança, a performance art que incorpora projeções que têm sido digitalmente criadas ou

manipuladas; performances robóticas e de realidade virtual; instalações e obras teatrais que usam equipamentos computacionais sensoriais/ativadores ou técnicas telemáticas; e obras performáticas e atividades que são acessadas por meio da tela do computador, incluindo eventos de ciberteatro, MUD’s, e mundos virtuais, jogos de computador, CD-ROMs e obras performáticas net.art”. (Tradução nossa).

um curso amealhado por sinuosidades teóricas inesgotáveis e, portanto, bastante complexas para contemplarmos no breve período de pesquisa de um mestrado. Depois de realizar um percurso a partir do qual procuramos mostrar, além de outras questões, como a tecnologia passou ocupar outros lugares na cena, constituindo-se cada vez mais, como participante do que ali se produz, chegamos aqui a um ponto fundamental e que parece nos despertar para uma série de outras reflexões, sem uma solução definitiva ou absoluta, evidentemente.

No ensejo dessa nossa digressão, parece haver, com a inserção das tecnologias digitais nas artes cênicas – e particularmente nas formas do teatro dramático –, um fenômeno bastante interessante e que não deixa de nos fazer recordar uma análise muito interessante que Fredric Jameson faz da pós- modernidade. Segundo Jameson, um dos traços marcantes de tal época poderia ser identificado à ideia de esquizofrenia, fundamentado, sem quaisquer pretensões clínicas, no que Lacan analisaria sobre o conceito. Tal noção constituiria, para Jameson, um dos traços marcantes da pós-modernidade.

Na medida em que a esquizofrenia se relaciona a uma particular dificuldade de acesso ao domínio da linguagem, instâncias como a temporalidade humana deixam de ser identificáveis. Essa confusão entre passado, presente e futuro, no limite, deixaria o esquizofrênico sem condições de definir uma identidade própria.

Daí a dificuldade de definição de identidades marcante dessa época142:

O esquizofrênico não consegue desse modo reconhecer sua identidade pessoal no referido sentido, visto que o sentimento de identidade depende de nossa sensação da persistência do "eu" e de "mim" através do tempo (JAMESON, 1985, p. 22).

Essa concepção de Lacan, que Jameson transforma em conceito operativo para explicar a pós-modernidade, parece nos iluminar um pouco no sentido de

142 Jameson faz uma análise bastante interessante que procura aproximar o conceito de esquizofrenia

lacaniano a uma das características do que identifica como pós-modernidade. Mais sobre essa brilhante análise, além de outros traços que concebe como marcantes de tal época, pode ser apreciado em “A virada cultural”, obra que reúne alguns de seus principais textos e conferências sobre tal problemática (JAMESON, 2006), ou mesmo na conferência Pós-modernidade e sociedade

de consumo, cujo texto fora traduzido para o português pela Revista Novos Estudos CEBRAP

procurar entender por que é tão complexa, e por que sempre nos escorre por nossos próprios dedos, a tentativa, voluntária ou não, de classificar, organizar em categorias a plural infinidade de formas cênicas que surgem justamente nesse período em que Jameson caracteriza como a eclosão da pós-modernidade (concentrado principalmente a partir da década de 60 em diante).

As categorias da “performance” e do “happening” ou mesmo o que se caracteriza, sem grandes rigores, como “teatro experimental”, parecem expressar essa inadequação classificatória ao analisarmos as obras que delas “fariam parte”. Tais eventos parecem, pois, expressar esse caráter esquizofrênico do que o autor

concebe como “pós-modernidade”143. Dispensados das complexas querelas em

torno do termo, o que nos interessa aqui é perceber como essa noção da pluralidade de formas e a ausência de eixos que as reúnem sob traços semelhantes esclarece- nos um pouco mais essa Babilônia de experimentações que passamos a viver, principalmente no campo das artes, nas últimas décadas.

Mas há um outro ponto muito importante a se considerar nessa ideia de esquizofrenia e algo que nos impulsiona ainda mais a contemplá-la nesta análise. É justamente pelo fato de o esquizofrênico não ter noção da temporalidade como a concebemos, que sua vivência do momento é muito mais esfuziante, intensa. Como esclarece Jameson, é por não ter a influência de experiências do passado ou os planos do futuro e assim não selecionar percepções, que o esquizofrênico “vivencia mais do que nós, e com nitidez, uma experiência muito mais intensa de um definido instante do mundo” (idem, ibidem).

E talvez seja esse um traço que nos ajude a refletir sobre a ousadia dessas formas artísticas “experimentais”, sobre seu caráter eminentemente descompromissado com os limites dos antigos cânones, sobre a sua vontade de se aventurar sobre mares ainda nunca explorados. E é justamente nesse ponto que as próprias tecnologias digitais entram como participantes fundamentais de uma nova

143 Não nos fixaremos aqui no conceito de pós-modernidade de Jameson ou na discussão sobre a

plausibilidade do termo que usa para caracterizar tal época. Seja ela concebida como a “modernidade tardia” de Giddens (2002), a sociedade pós-moderna de Bauman (1999), a “hipermodernidade” de Lipovetski (2004) ou mesmo a “hiperrealidade” de Baudrillard (1981), o que nos interessa aqui é muito mais dispor desses conceitos que Jameson, em muito esclarecedora articulação, usará para explicar nossa contemporaneidade.

cena não mais identificável144. É, no entanto, essa completa hibridação de estilos e formas que traz a singularidade fugidia, mas fascinante de obras como as de Bob

Wilson, Denis Marleau ou The Wooster Group145.

A hibridação de formas, bem como a hibridação das próprias tecnologias, acabaram por favorecer o caráter eminentemente ousado dessas experiências (principalmente durante a sua eclosão a partir dos anos 60). Ironicamente, essa vertente transgressiva não nos deixa de remeter às primeiras tragédias, ainda muito próximas dos rituais religiosos, marcadas por um elemento que propriamente as constituía: a hybris, a transgressão da ordem, o mergulho no imprevisível da desordem, o convite ao caos e à vivência plena de um dado momento. Em certa medida, arriscamo-nos a dizer que tal ideia nos conduz à própria noção de

performance146 como “ação”, como “fazer” imediato, sem as obrigações de um

referencial ou de uma representação mimética de mundo.

Não queremos aqui nos ocupar do debate classificatório das artes, mas não há como deixar de aludir à influência da própria inserção das tecnologias digitais no mundo do que se poderia conceber como o mundo do tradicional teatro dramático. A

“unidade indeformável”147 do teatro que há milênios parecia se manter choca-se

frontalmente com a inserção das tecnologias digitais, não com sua incorporação

144 O que antes, por exemplo, poderia ser facilmente enquadrado como cinema ou um próprio “teatro

cineficado” (LEITE, 2011), expressa elementos que se aproximam a formas artísticas distintas.

145 Em meu artigo “Viagem a um real desfamiliarizado: performatividade da tecnologia na cena

contemporânea”, faço uma breve análise sobre algumas particularidades de obras de Denis Marleau e do Wooster Group em relação ao impacto da participação das tecnologias digitais em suas encenações. O texto foi publicado pela Revista aSPAs da ECA/USP e pode ser acessado no link a seguir: <http://revistas.usp.br/aspas/article/view/68386>. Acesso em: 01 fev. 2014.

146 Refiro-me aqui à noção de performance relacionada diretamente aos perfomance studies de

Richard Schechner, representados sobretudo pelas obras Performance Theory (2003) e Performance

studies: an introduction (2002). A visão de Schechner aqui nos é bastante oportuna porque expande a

noção de performance para além das artes, incorporando territórios da sociologia, da antropogia, da estética, das religiões. Sua concepção de performance se liga muito mais a ideia de uma ação em si mesma do que à representação de algo, distanciando-se, portanto, da noção de construção de uma personagem ou do amparo de um texto escrito.

147 Expressão usada pelo diretor francês Jacques Polieri ao refletir sobre a resistência ao uso da

tecnologia que julgava encontrar em muitos colegas do teatro. Segundo Polieri, a cristalização de formas que no teatro mudaram muito pouco em dois milênios acabava por frear o uso da técnica quando essa representava transformações muito drásticas no modus operandi do teatro tradicional (JACQUART, 1994).

eminentemente pacífica e aglutinadora de sempre, como no caso das outras tecnologias, mas a partir de novas experiências que colocam em xeque os elementos que até então pareciam ser essenciais à sua expressão: pode haver um teatro sem atores humanos? O que significa, na prática, um ator presente? Somos “espectadores” esquizofrênicos dessas novas experiências em que tempo e espaço diluem-se como as próprias certezas de algum significado unívoco?

É, pois, nessa toada, órfãos de sistemas classificatórios, que passamos à parte seguinte de nosso trabalho, na tentativa de contribuir não para solucionar tais querelas, mas para torná-las ainda mais enoveladas. Percebemos aí, no limite, a necessidade de questionar os formatos que analisam as artes cênicas e sua expressão ainda a partir da figura do artista e de sua completa separação de outros elementos que passaram a exercer uma participação em cena tão ou mais expressiva que o próprio elemento humano. Pretendemos tentar superar essa ideia e apresentar caminhos que nos convidem a compreender a cena de hoje, a partir de linhas de análise operativas, não categóricas: é a essa tarefa principal a que nos propomos e que nos guiará nos capítulos seguintes.