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Ilusão e excentricidade: as fantasmagorias e a revolução elétrica

CAPÍTULO I – Tecnologias e representação figurativa:

1.4 Ilusão e excentricidade: as fantasmagorias e a revolução elétrica

Antes de darmos prosseguimento à reflexão, façamos aqui um breve esclarecimento sobre a narrativa que estamos articulando no que tange à relação entre as tecnologias e as formas de representação dramática que até então apresentamos. Faremos agora um percurso que contemplará a criação de novas espacialidades cênicas a partir do uso da luz elétrica, espacialidades essas que parecem começar a precipitar na cena um certo deslocamento da uma obrigação realista, trazendo um jogo ilusório não mais ligado à imitação rígida da realidade, mas à esfera daquilo que não pode ser explicado pelo “mundo real”.

As chamadas “fantasmagorias” operarão nesse limiar de conflito entre o “visto” e o “verossímil”, criando imagens nítidas – e muito impressionantes para a época – de criaturas e objetos sobrenaturais. Inaugura-se no palco, pela primeira vez, um efeito de presença de criaturas que, fisicamente, não pertencem àquele espaço de representação.

Discutir a fantasmagoria dentro da questão do efeito de presença na cena – uma das frentes a que vamos chegar na análise de nossos casos representativos – tem implicações bastante delicadas. Primeiro porque um movimento desses envolve

uma certa classificação que afasta do debate outras possíveis técnicas e dispositivos anteriores a ela e que poderiam causar efeitos semelhantes: por que um foco de luz, mesmo que rudimentar, não poderia determinar efeitos distintos de presença de um ator ao representar Otelo num palco barroco? Segundo, porque tocamos em um vespeiro ainda mais carregado que é o do conceito de presença, que nos faz indagar se todos os avanços do teatro renascentista e, em espacial do barroco, já não resultavam em acentuadas transformações na presença dos atores – ou mesmo, viajando ainda nos porões da história, poderíamos negar o efeito de presença que um deus ex machina trazia à resolução de um drama euripidiano?

Essa é uma questão espinhosa, mas talvez nosso ponto, não de resolução, mas de problematização, e do qual partiremos, seja justamente o estudo das tecnologias que possibilitaram a geração de imagens audiovisuais que não mais buscavam um compromisso mimético de representação fiel da natureza. Após um longo jogo de ilusão que buscava uma profunda retratação de um “mundo real” e que chegará ao seu ápice nos teatros que buscarão trazer as tempestades, os terremotos ou o próprio mar para o espaço do palco, as fantasmagorias parecem sinalizar para uma das primeiras tentativas de representação em que a ilusão não está mais a serviço da realidade, mas começa a se emancipar, assim como as imagens geradas.

Não é à toa que poucas décadas mais tarde veriam nascer um teatro em que

o símbolo emerge como camafeu da representação16. Sem, portanto, pretensão de

eleger esse caminho como o mais adequado numa provável linha de desenvolvimento entre tecnologia e artes cênicas, passaremos a uma reflexão sobre a fantasmagoria como umas das precursoras no uso da projeção de imagens na cena.

A virada do século XVIII para o XIX conheceu uma tecnologia que permitiu a realização de efeitos até então desconhecidos no palco. A criação de espectros por meio das fantasmagorias inaugurou no teatro as primeiras técnicas de projeção de imagens por meio da luz, à época ainda gerada a partir das lâmpadas de querosene, inventadas na segunda metade do XVIII. Vale destacar, no entanto, que algumas

16 Referimo-nos aqui ao teatro simbolista, que marcaria a cena da transição do século XIX para o

experiências já haviam sido realizadas nesse sentido, principalmente por Sabbatini, mas será mesmo em 1793 que as fantasmagorias ganharão uma máquina própria a partir da união entre ilusionistas e cientistas, como o belga Étienne-Gaspard Robert (1763-1837), o físico alemão Paul Philidor (17??-1828/9) e o dramaturgo inglês Thomas Willian Robertson (1829-1871).

Se aos nossos olhos as fantasmagorias podem parecem um tanto quanto rudimentares, seus efeitos sobre o público da época devem ter sido não menos do que muito impressionantes. Afinal, nunca antes havia se conseguido projetar um espectro no palco, com a ajuda da luz, de uma maneira tão perfeita. Paradoxalmente, era o efeito de algo “quase real” – pela qualidade da projeção – que a tornava ainda mais assustadora aos olhos do público.

E um dos aspectos mais interessantes disso é que os precursores das fantasmagorias, ou pelo menos a maioria deles, sempre nutriam uma afinidade pela arte da representação e, ao mesmo tempo, pela teoria científica. Os primeiros efeitos fantasmagóricos nasceram de experiências científicas de aplicação de preceitos básicos da física, especificamente da óptica, sendo aperfeiçoados e ganhando agilidade a partir da invenção de novas fontes de luz, principalmente a luz a gás, aprimorada durante o século XIX.

O grande precursor Robert substituiria o sistema de espelhos e luz a vela ou a querosene, até então em voga, por uma “lanterna mágica”. Construída a partir da combinação simétrica de lentes ajustáveis, o dispositivo se movimentava por meio de um sistema de rodas deslizantes, sobre o qual era acoplada a fonte de luz. Um dos efeitos interessantes propiciados por esse projeto consistia no deslizar dessas rodas, o que permitia a variação das dimensões das imagens projetadas e, dessa maneira, a ilusão de movimentação do espectro. Robert patentearia posteriormente a invenção sob o nome de fantoscópio.

Figura 8: Na cena da fantasmagoria do século XVIII, imagens são projetadas sobre um tecido branco, num princípio bem próximo aos sistemas que conhecemos hoje. Fonte: POUGIN, 1885.

Combinados a uma fumaça que inundava a sala de espetáculos os efeitos espectrais tornavam-se ainda mais impressionantes, uma vez que toda a tecnologia utilizada estava oculta em alguma região da maquinaria do teatro, mais comumente na parte inferior do palco. E esse aspecto nos faz pensar que até então, todo o aparato tecnológico responsável por dar vida às ilusões da cena, apesar de estar a serviço disso, sempre esteve escondido em alguma parte do teatro, longe do público, como se atrapalhasse a contraposição realidade/ilusão ali pretendida.

Mesmo nas fantasmagorias, apesar de robustecerem a dimensão ficcional – uma vez que agora a obrigação mimética vai se abrindo na cena para algo que não mais corresponde propriamente ao “mundo real” –, todo o esforço é empreendido para dissimular o ficcional, tornando-o o mais real possível a partir dos truques que escondiam o aparato técnico destinado à ilusão. A tecnologia, portanto, não entra em cena. Está, sim, a serviço de uma narrativa e de um efeito que, em última instância, procura representar uma realidade que se presentifica ali naquele palco, sem qualquer tipo de mediação, nem qualquer espelho ou lanterna que pudesse ferir o mecanismo da ilusão.

Na tentativa de tornar os efeitos ainda mais próximos a uma imagem real, os ilusionistas desenvolveram aprimoramentos no tubo óptico da lanterna, que, ao projetar a luz sobre a fumaça, causava um efeito tridimensional, o que hoje, guardados os complexos avanços tecnológicos, poderia aludir ao nosso sistema 3D. Apesar de toda a tecnologia para tornar ainda mais real as fantasmagorias, tais espectáculos, como indicam alguns registros históricos, esclareciam sempre ao início que os espectros não se tratavam de qualquer tipo de bruxaria ou rito sobrenatural: não passavam, pois, de mera ilusão de óptica. O escurecimento total da sala e o clima de suspense não eliminavam, no entanto, o efeito de medo sobre a plateia, que, em muitos casos, não levava muito a sério a mensagem de que tudo não passava de mero ilusionismo.

A projeção de imagens em cena a partir de fontes de luz e os dispositivos e técnicas que passaram a integrar seus diversos usos foram ganhando espaços importantes durante o teatro dos séculos XVIII e XIX, mas foi a lâmpada elétrica a possibilitar que uma infinidade de recursos inundasse a cena. A utilização de um sistema de iluminação de maior qualidade e o aprimoramento dos equipamentos a partir dos quais era operada a luz tornaram possível um melhor controle de foco, intensidade, cor e direcionamento, aspectos que a partir de então, como nos lembra Cyro del Nero (2009), passaram a ser controlados remotamente a partir de uma cabine própria.

O aperfeiçoamento das tecnologias de iluminação conviveria com uma época bastante singular do teatro, um momento em que a tarefa de representação do mundo, até então exacerbada pelos contextos dramáticos realista e naturalista, começa a deixar de ser o cerne dos espetáculos, época em que os símbolos e a poética da sugestão e do enigma começam a tomar conta tanto da dramaturgia quanto das próprias encenações. A obrigação mimética cede lugar, pois, a uma certa emancipação da própria cena.

As condições para uma transformação da arte cênica achavam-se reunidas, porque estavam reunidos, por um lado, o instrumento intelectual (a recusa das teorias e fórmulas superadas, bem como propostas concretas que levavam à realização de outra coisa) e a ferramenta técnica que tornava viável uma revolução desse alcance: a descoberta dos recursos da iluminação elétrica (ROUBINE, 1998, p. 20).

Bastante notável será a herança do teatro simbolista para a cena contemporânea, tanto no que se refere ao controle e ao desenvolvimento das técnicas de iluminação, quanto na própria cenografia. Farão parte das cenografias desenhos abstratos, expressionistas, descompromissados com a antiga tarefa da ilusão de profundidade, ou da extensão de uma paisagem real. Como comenta Roubine (1998), começa-se a reimprimir sobre a representação teatral uma dimensão que havia progressivamente perdido espaço durante o século XIX, aquela do sonho e do encantamento, tão presente na maquinaria dos espetáculos barrocos dos séculos XVII e XVIII. E Anna Balakian complementa:

No teatro simbolista, nenhum objeto é decorativo; ele está ali para exteriorizar uma visão, sublinhar um efeito, desempenhar um papel na subcorrente de acontecimentos imprevisíveis. A interação de luzes e sons enfatiza as correspondências entre o físico e o espiritual, a fim de que a hora do dia, o bater de um relógio, a sugestão de vento, as variações de cor inundando palco, constituam uma linguagem para cada diferente espectador, como a música que comove cada ouvinte de uma maneira diferente de acordo com seu temperamento e suas experiências (BALAKIAN, 2007, p. 100).

O espaço no teatro ganha, portanto, com a ajuda dos recursos de iluminação, novos contornos: cores, sombras e outros efeitos de luz passam a dar vazão ao afã pela profundidade das ideias representadas em cena, à busca de uma verdade que

as visões realista e naturalista não davam conta de acessar. Era necessário transcender a cena para além dela mesma, invocando ali novas dimensões de reflexão.

Se muitas das vertentes assumidas pela cena contemporânea fluem num caminho de experimentação de novos formatos desvinculados da representação mimética (sendo as tecnologias digitais, em muitos casos, protagonistas desse jogo ilusório), tudo isso parece ser bastante tributário da “revolução potencial” que a iluminação elétrica permitiria e que teria nas encenações simbolistas seu grande campo inicial de experimentação. “Em suma, aparece pela primeira vez, sem dúvida, a possibilidade técnica de realizar um tipo de encenação liberto de todas as amarras dos materiais tradicionais (ROUBINE, 1998, p. 23).