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CAPÍTULO II – Tecnologias e crise da cena frontal:

2.3 O olho mecânico de Dziga Vertov

A proximidade entre arte e tecnologia parece se anunciar de maneira muito latente na figura e na obra do cineasta construtivista Dziga Vertov. Quem nos inspira a pensar sobre isso é Steve Dixon (2007), ao analisar a incorporação de sistemas científicos no construtivismo – intensamente experimentados no teatro e no cinema russos – a sua aplicação no âmbito das artes, comparando-a aos modos pelos quais os sistemas matemáticos digitais são criativamente empregados na performance

digital44 contemporânea.

Nesse sentido, a própria forma como Vertov trabalharia em seus filmes, seus processos de produção e edição, estaria muito próxima aos modos de organização e operação dos computadores. Independentemente da visão de Dixon, o trabalho de Vertov urge como uma das formas pioneiras em que o foco da criação artística não se encontra mais sobre a figura do artista, ou do corpo do ator; em Vertov, é a tecnologia a assumir o lugar de destaque nos filmes e será ela protagonista na tarefa de fazer do cinema uma arte independente do teatro. Seu filme Um homem com uma câmera, de 1929, seria um dos arautos dessa nova vertente do cinema45. E isso pode ser percebido já na mensagem inicial, direcionada ao espectador do filme:

Atenção observadores: este filme é um experimento em comunicação cinematográfica de eventos reais, sem o auxílio de intertítulos, sem o auxílio de uma história, sem o auxílio do teatro. Esta obra experimental destina-se a criar uma linguagem de cinema verdadeiramente internacional baseada na sua absoluta separação da linguagem do teatro e da literatura (VERTOV, 1929).

44 Steve Dixon define como digital performance um conceito amplo que inclui todas as obras nas

quais as tecnologias digitais assumem um papel-chave que vá além de mero subsidiário de conteúdos, técnicas, estéticas ou outras formas de emissão. Incluem-se aí as mais variadas formas artísticas, entre elas o teatro, a dança e a performance (DIXON, 2007, p. 3). Falaremos mais especificamente sobre esse conceito de Dixon mais adiante, ao tratarmos da relação das tecnologias digitais com as formas artísticas contemporâneas.

45 Dziga Vertov dirigiu vários filmes sob a temática do cinema-verdade. Além de Um homem com uma

câmera, de 1929, destacam-se os anteriores Cine-Olho (1924) e Kino-Pravda (1925). Sugerimos aos

interessados em mergulhar no universo da cinematografia de Vertov iniciar a aventura por Um

homem com uma câmera, integralmente disponível no Youtube:

Vertov faz explodir, no frenetismo da superposição de imagens da Moscou metropolitana, uma velocidade até então pouco familiar aos olhos de uma geração legatária do estilo de vida que nascera sob a luz das velas, transportado em carroças e desacostumado com o meio urbano. Era um momento de profundas transformações, em que a revolução industrial, ali já tardia, tentava a toda maneira compensar o tempo perdido e instaurar as condições necessárias à nova república socialista. O sistema de produção taylorista será mesmo, nesse contexto, extremamente oportuno.

A era industrial faz da nova Moscou lavoura fértil para a experimentação artística, sendo justamente sob essas circunstâncias em que se impulsionam novas estéticas no teatro e na ainda rudimentar cinematografia. Esse breve contexto histórico, mais do que situar o momento à luz do qual podemos perceber essas transformações, é aqui muito cabível na medida em que permite compreender alguns dos elementos que marcaram uma espécie de cisão entre teatro e cinema. E isso se dá com evidência em Vertov, não só a partir de seu esclarecimento que acabamos de traduzir, mas da tarefa que o cinema parece assumir para si: trazer para o filme a realidade própria como é, objetiva, e não como aparenta ser; uma crença vertoviana na conquista da Verdade por meio do cinema. Sobre isso, proclamaria o cineasta:

Do ponto de vista do olho ordinário vemos mentiras. Do ponto de vista do olho cinemático (auxiliado por métodos cinematográficos especiais, neste caso, filmagem acelerada) vemos verdades. Se é uma questão de ler os pensamentos de alguém à distância (e muitas vezes o que nos interessa não é ouvir as palavras da pessoa, mas ler seus pensamentos) então, eis a oportunidade. Ele pode ser revelado pelo Kinoglaz (o cine-olho) (VERTOV in XAVIER, 1983, p. 261)46.

Vertov acredita que a lente da câmera é o meio pelo qual a realidade pode agora ser apreendida com objetividade: a tecnologia cinematográfica, herança do exercício científico, tem, pois, a capacidade de oferecer um retrato da realidade nunca antes oferecido. Diferente do teatro, que trabalha com uma ideia e a

46 Alguns dos principais textos de Dziga Vertov, como também de Sergei Eisenstein, podem ser

encontrados traduzidos para o português em antologia organizada pelo Prof. Ismail Xavier (1983). Quem assina a tradução dos manifestos que citamos é Marcelle Pithon.

transforma em cena – seja ela mais abstrata ou mais realista –, o cinema não necessita do apelo a esses recursos, tem na lente da câmera a independência de um olhar subjetivo, de uma perspectiva individual sobre o mundo real.

Será nesse sentido que Vertov inaugurará um estilo cinematográfico singular caracterizado como “cinema-verdade” (kino-pravda, em russo) e que marcará não só a sua, mas a carreira de vários outros cineastas ou mesmo artistas que se

embrenhavam na aventura de trazer o mundo da vida para os quadros da película47.

A ideia de objetividade a partir do olho da câmera e a própria noção de objetividade da técnica moderna, tem em Vertov um de seus grandes impulsionadores.

Todos aqueles que amam a sua arte buscam a essência profunda da sua própria técnica. A cinematografia, que já tem os nervos emaranhados, necessita de um sistema rigoroso de movimentos precisos. Necessidade, precisão e velocidade: três imperativos que Nós exigimos do movimento digno de ser filmado e projetado. Que seja um extrato geométrico do movimento por meio da alternância cativante das imagens, eis o que se pede da montagem (VERTOV in XAVIER, 1983, p. 249-250).

Com o legado dessa busca pela objetividade convivemos até hoje, época na qual, em certa medida, ainda se atribui ao cinema uma dimensão de verdade ou de retratação objetiva do mundo da vida. Ora, se o teatro, pelo menos até o realismo e o naturalismo, fundamentava como um de seus principais nortes justamente a imitação da natureza – a busca em transformar, por meio de um jogo ilusionista, a cena em vida real –, com o cinema esse compromisso se realiza com muito mais eficiência. Não há truques de perspectiva, maquinaria aprimorada ou quarta parede que resista às possibilidades que a nova tecnologia ofereceria nesse sentido. Mas isso, reiteramos, refere-se ao cumprimento de uma obrigação de mimesis da realidade. Tal como a fotografia – que também realiza um movimento semelhante

47 Um dos exemplos mais célebres de produções do cinema-verdade pode ser representado pelo

filme Chronique d'un été (“Crônica de um verão”, em português), dirigido por Edgar Morin e Jean Rouch em 1960. A obra procura apresentar, a parisienses de perfis variados, um questionamento sobre sua concepção acerca da felicidade. Inspiradora de gerações de cineastas, a película representa um dos expoentes do cinema-verdade, inovando no seu roteiro aberto à participação livre dos entrevistados. O filme pode ser visto na íntegra pelo Youtube, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=bESrAdqNSiw>.

em relação à pintura acadêmica –, o cinema tomará rumos bastante diversos e um deles será justamente a partir dos espaços multifacetados e fugidios da abstração.

Tal reflexão, em certa medida, vai ao encontro da análise de Hans-Thies Lehmann ao abordar o resgate de uma certa teatralidade por parte das encenações do final do século XIX. Segundo Lehmann, o advento do cinema teria catalisado

essa nova tendência do teatro de então, liberto da obrigação dramática48, ao mesmo

tempo em que o próprio teatro se reencontraria no elemento do ao vivo:

À medida que a “teatralização” do teatro levava à libertação da submissão ao drama, esse desenvolvimento foi acelerado por uma outra ruptura na história das mídias: o surgimento do cinema. O domínio exclusivo do teatro até então – a representação animada de pessoas em ação – foi conquistado e superado pela nova matriz de representação técnica do cinema. Ao mesmo tempo que a teatralidade passa a ser concebida como dimensão artística independente do texto dramático, começa-se a reconhecer, mediante o contraste com a “imagem movimento” de Deleuze produzida tecnicamente, o fator do processo vivo (à diferença dos fenômenos reproduzidos ou reprodutíveis) como diferencial específico do teatro (LEHMANN, 2011, p. 82).

48 Ao se utilizar da expressão “submissão ao drama”, Lehmann quer fazer referência, numa

perspectiva geral, à ideia de drama como imitação de uma ação, o que de certa maneira resgata a concepção anunciada na Poética de Aristóteles. A ideia de drama aqui se associa aos elementos da totalidade, da ilusão e da representação do mundo. Uma melhor contextualização dessa nossa breve e imprecisa nota pode também ser obtida na análise sobre o drama no teatro elaborada por Raymond Williams (2010) em Drama em cena ou ainda no estudo de Peter Szondi (2011) sobre a crise do formato dramático que se anunciaria na transição do século XIX para o século XX, precisamente entre 1880 e 1950, e que nos ajuda a refletir sobre a transformação da obrigação mimética na cena. Sobre a crise do drama, Szondi identificaria alguns elementos fundamentais: “É responsável pela crise em que se vê o drama em fins do século XIX enquanto forma poética do que se faz presente como acontecimento inter-humano, a transformação temática que substitui essa tríade conceitual por seus conceitos opostos correspondentes. Em Ibsen, o passado reina em lugar do presente. O que se tematiza não é um acontecimento passado, mas o passado ele mesmo, como passado rememorado que continua a agir internamente. Do mesmo modo, o âmbito inter-humano é também desalojado pelo que se dá no interior do homem. A vida ativa no presente cede nos dramas de Tchekhov à vida sonhadora na lembrança e na utopia. O acontecimento se torna acidental e o diálogo, a forma de interlocução humana no drama, vira abrigo de reflexões monológicas. Nas obras de Strindberg, o âmbito das relações humanas é ou suprimido ou passa a ser visto através da lente subjetiva de um Eu central. Essa interiorização faz com que o tempo “real” do presente perca sua supremacia: passado e presente confluem um no outro, o presente que se exterioriza evocando o passado rememorado” (SZONDI, 2011, p. 77).

Enquanto isso, o cinema desvincula-se da tarefa de representar um contexto essencialmente ligado à figura humana, presentificada na tela por meio de seu corpo. Apesar de os dramas humanos não interessarem a Vertov, o cineasta parece nos oferecer uma cena protagonizada pelas novas tecnologias de seu tempo: do começo ao final de Um homem com uma câmera, o que mais vemos são pessoas ou situações humanas interpostas às imagens de engrenagens, postes elétricos, tubulações, automóveis, máquinas industriais, bondes, telefones, aviões que se repetem ao longo da obra, alinhavando, ao final, uma verdadeira narrativa, a narrativa de uma Moscou metropolitana. Mais, a narrativa de uma nova forma de habitar a cidade. Na tela do cinema de então, as imagens montadas por Vertov, alucinadas, têm o mesmo efeito que o trem a toda velocidade: assistir ao filme é como olhar pela janela de dentro de um vagão em disparada.

Ao final, acomete-nos a vertigem à que Vertov nos submete a partir dos truques de sobreposição de quadros fílmicos. Como se o olho humano não pudesse mais acompanhar as novas velocidades, anuncia-se a inseparabilidade entre ele e a lente da câmera: não seria mais possível fugir a essa intermediação. Não será a pálpebra, mas as pás mecânicas do aparelho tecnológico, a dar fim à narrativa vertoviana. Elas é que encerram o filme. Prenunciando a figura do ciborgue e a transformação dos sentidos humanos a partir das novas tecnologias, Vertov

anunciaria já em 1923, em seu manifesto Knoks: uma revolução49:

Eu, o cine-olho, crio um homem mais perfeito do que aquele que criou Adão, crio milhares de homens diferentes a partir de diferentes desenhos e esquemas previamente concebidos. Eu sou o cine-olho. De um eu pego os braços, mais fortes e mais destros, do outro eu tomo as pernas, mais bem- feitas e mais velozes, do terceiro a cabeça, mais bela e expressiva e, pela montagem, crio um novo homem, um homem perfeito. Eu sou o cine-olho. Eu sou o olho mecânico. Eu, máquina, vos mostro o mundo do modo como só eu posso vê-lo (VERTOV in XAVIER, 1983, p. 255-256).

49 Dziga Vertov organizaria dois manifestos: o Nós, publicado em 1922, e o Kinoks: uma Revolução,

de 1923. As publicações não eram somente dele, mas resultantes do grupo formado com sua esposa Svilova e seu irmão Mijail. Curiosamente, o "Conselho dos Três", expressão pela qual eles se denominavam, não se concebia como um grupo de cineastas, mas kinoks, junção dos termos russos

kino (“cinema”, em português) e oko (“olho”). Juntos, produziriam 23 obras fílmicas de Kinopravda, o

Anos mais tarde seria a vez de Walter Benjamin teorizar sobre essa relação entre as novas tecnologias e as faculdades da percepção humana. Os efeitos de ampliação e miniaturização, interrupções e acelerações, silêncios e sons marcantes proporcionados pelo cinema teriam a capacidade de alterar a nossa percepção e, portanto, nossos próprios modos de conceber a realidade. Benjamin articula essas mudanças a uma origem técnica. E a partir disso, é possível dizer que tanto a fotografia quanto o cinema permitem acessos a dimensões do real que nossos mecanismos sensíveis próprios não teriam o potencial de captar.

Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite de seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas. O espaço se amplia com o primeiro plano, o movimento se torna mais vagaroso com a câmera lenta. É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmera não é a mesma que se dirige ao olhar (BENJAMIN, 2012, p. 204).

A revolução da eletricidade, no final do século XIX, parece, pois, combinar-se a um conjunto bastante evidente de profundas transformações que marcariam a arte da época, deslumbrada pela dinâmica que a máquina traria para os mais variados campos da vida social. A fim de continuar nossa análise sobre essas relações entre a nova tecnologia elétrica e seus impactos sobre as formas de encenação da época, façamos um breve, mas muito oportuno, passeio pelo mundo do teatro futurista.