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64 Idem, Ibidem.

65 A Constituição brasileira de 1988 prevê em seu artigo 4º que: “A República federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I-Independência nacional; II- Prevalência dos direitos humanos; II- Auto-determinação dos povos; IV- Não-intervenção; V- Igualdade entre os Estados; VI- Defesa da Paz; VII- Solução pacífica dos conflitos; VII- Repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX- Cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; IX-Concessão de asilo político. Ver Constituição da República Federativa do Brasil.

66 Barão do Rio Branco, Discursos. Apud. WEHLING, Arno. Visão de Rio Branco. O homem de Estado e os fundamentos políticos. In: CARDIM, Carlos Henrique; ALMINO, João. Rio Branco, a América do Sul e a modernização do Brasil. Brasília: IPRI, 2002, p.104.

Coube a Rio Branco fundar uma identidade nacional pacifista e ao Itamaraty, ao longo do tempo, a deturpá-la, acreditando que os recursos de solução pacífica de conflitos dispensariam a guarnição brasileira de meios estratégicos67. Interessante seria analisar a evolução da relação existente entre esta chamada cultura de paz com uma eventual cultura estratégica, no bojo do Itamaraty, ao longo do tempo, a fim de delimitar mais precisamente, a partir de que momento uma passa a agir de modo antagônico à outra – o que não cabe a este capítulo.

O que, no entanto, é consensual entre alguns acadêmicos, é a fixação da década de 1990, como contexto de agravamento do distanciamento entre as duas faces da política externa. O fim do modelo nacional-desenvolvimentista, o qual teria como bases o fomento à indústria nacional, o protecionismo, a política de substituição de importações e também a ampliação das bases da Defesa nacional teria se feito sentir mais sobre as percepções dos diplomatas do que de militares. Enquanto os últimos continuavam a ver no aparelhamento militar o meio mais importante de lastro dos interesses nacionais no exterior, os diplomatas adaptariam sua visão àquelas que consideravam as novas prioridades de inserção estratégica brasileira68. A busca pela renovação de credenciais, norteadora da chamada postura institucionalista, adotada pelo Itamaraty entraria em choque com a visão persistente nos círculos militares69. Tal postura explorava o conceito de soft-power como meio de o Brasil angariar reputação internacional, desprezando a capacidade militar como variável de poder. Equivocadamente, a diplomacia brasileira passou a justificar sua postura afirmando que se tratava de uma longa tradição da política externa brasileira, de busca de criação de consensos, advinda da era Rio Branco. Buscava-se, na verdade, reinventar uma tradição, ou deturpar uma antiga para cimentar valores de atuação condizentes com uma nova conjuntura.

67 Se plano concreto, a cultura de paz dispensou o preparo militar, a consciência do Barão sobre a convivência entre a guerra e a paz – sendo a paz o exercício de imposições de vontades –, fez-se presente desde o passado até hoje nas relações entre o Brasil e a Argentina, como procuram mostrar os dois primeiros capítulos. Primeiramente, na convivência entre um padrão pragmático de cooperação –instrumentalizado para atender aos desejos brasileiros de liderança e participação internacional – com o cultivo de uma memória de rivalidade que deixará à futura geração a consciência sobre a existência do leque aleatório (conceito já discutido acima), no cálculo de política externa, quer se trate de um amigo ou não.

68 CASTELAN, Daniel Ricardo. Segurança e Defesa na década de 90: Interpretações do Itamaraty e das Forças Armadas. Texto apresentado durante o I Simpósio em Relações Internacionais do Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas. 12 a 14 de novembro de 2007, p.11.

3.2.2.1: Panorama do diálogo entre militares e diplomatas na era FHC.

Não se pode dizer que durante o governo de Cardoso, o diálogo entre militares e diplomatas foi de todo ausente, como mostra breve análise dos ofícios trocados entre os Estados- maiores das Forças Armadas e os mais diversos departamentos burocráticos do Itamaraty. Houve, porém, um diálogo disperso e inconstante, ficando notório que o Itamaraty seleciona os assuntos que merecem a abertura de interlocução, ignorando outras eventuais consultas militares relacionadas a tópicos que a diplomacia considere de sua exclusividade.

Comecemos pela matéria que consideramos de maior proficuidade nesta tentativa de comunicação: a participação brasileira em missões de paz. O tema das missões de paz parece ser o único aberto pelo Itamaraty aos militares, em níveis tanto de debate, como de elaboração e decisão, como em nenhum outro caso. Acreditamos que a esta constatação seja propício o fato de o Itamaraty admitir sua ignorância para tratativa de questões logísticas militares, das quais depende a estruturação de tais missões.

Ofícios trocados entre o Itamaraty e os antigos Ministérios militares – ainda existentes durante o primeiro mandato de Cardoso – indicam que os militares decidiam com certa autonomia sobre a designação dos cargos que compunham as missões permanentes do Brasil junto a ONU. Por exemplo, o aviso n.245/MM, Dist. 27/09/1995 deixa claro que o então Ministro da Marinha, Mauro César Rodrigues Pereira escrevia apenas para avisar ao Ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia que o Capitão-de-Corveta (QC-CA), Cesar Mendes da Costa Abreu teria sido escolhido para atuar como Oficial Assistente do Conselheiro Militar70.

Alguns ofícios sugerem também que seria de responsabilidade dos Estados Maiores, a coordenação e a organização dos estágios que visam à preparação de militares brasileiros para missões de paz, a exemplo do ofício que expõe mensagem do Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército ao Chefe da Secretaria de Planejamento Diplomático do MRE, avisando sobre a data

70 Ver: Aviso n.245/MM, Dist. 27/09/1995. Outras correspondências do mesmo teor podem ser encontradas, como o Ofício interministerial, n.72/MM/MRE, de 16 de Agosto de 1995. Disponível no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.

do próximo estágio de preparação de oficiais e agradecendo o apoio que aquela secretaria havia prestado à organização do último estágio realizado71.

Também ficariam a cargo das Forças Armadas os estudos sobre preparo das forças, bem como sobre cálculo e distribuição de contingentes72. Sobre isto, o Itamaraty se dirigiu inúmeras vezes aos Estados-Maiores, em caráter consultivo, solicitando dos militares pareceres precisos sobre a viabilidade de envio de efetivos para as missões. Ainda que o Itamaraty não as consultasse, as Forças Armadas tomavam a iniciativa de informar sobre as capacidades brasileiras, como mostra o Ofício elaborado pelo Vice-Almirante Rayder Alencar da Silveira, Vice-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas à Embaixadora Celina Maria Assumpcao do Valle Pereira, Diretora-Geral da Divisao das Naçoes Unidas do MRE, tratando de assuntos de “Standby Arrangements for peacekeeping operations e rapid deployment headquarter”. O Vice- Almirante chama a atenção para a importância de sua mensagem, tendo em vista que o Brasil, desde 18 de fevereiro de 1996, teria confirmado junto a ONU sua intenção de participar de novos projetos de paz, ressaltando:

Todavia, essa anuência requer uma seqüência de ações das quais a próxima e a informação sobre capacidades, isto,é, o arrolamento dos escalões de forças brasileiras possíveis de serem colocadas a disposição da ONU a fim de integrarem os referidos projetos. Desse modo, com vistas a permitir o prosseguimento do processo em foco da ONU, transmito a Vossa Excelência os seguintes dados relativos a capacidade brasileira: [...]. Por fim, informo que este Estado-Maior pretende, no mais curto prazo, concluir o levantamento pormenorizado do equipamento principal e o respectivo volumétrico, de modo a concluir a sistemática de ações preliminares preconizadas pela ONU para os países concordes na participação no “Standby Arrangements for peacekeeping operations e rapid deployment headquarter”73.

71 O Ofício n.355/SAE-3.2. Disponível no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.

72 O Ofício no. 04352/SC-3 de 27 de novembro de 1996, Dist. DOI/DNU nos leva a entender que primeiramente as Forças Armadas se reúnem para discutir o planejamento e, em seguida, ele é registrado em Ata, transmitida ao Itamaraty. Normalmente, não é o ministro das Relações Exteriores quem recebe estes documentos, mas o Departamento de Organismos Internacionais do MRE. No caso do documento supracitado, o remetente era o Brigadeiro-do-Ar Márcio Bhering Cardoso (3º subchefe do Estado-Maior das Forças Armadas e o destinatário, o Embaixador José Maurício Bustani, chefe do Departamento de Organismos Internacionais do Itamaraty). A Ata enviada referia-se ao planejamento da participação da tropa brasileira na UNAVEM III.

73 Ver: Ofício n. 002050 Brasília 01 de julho de 1998. MRE 9147. Disponível no Arquivo Histórico do Itamaraty.

Os Estados-Maiores se encarregariam, por fim, de elaborar relatórios de balanço da participação brasileira que seriam enviados ao Itamaraty74. Encerra-se aí, todavia, a abertura que o Itamaraty cede aos militares.

Fica claro, por outro lado, que os militares não tinham acesso a quaisquer tipos de diálogo junto a ONU. Este seria papel e função exclusivos do Itamaraty. Sendo assim, após avaliação interna do desempenho brasileiro, o Ministério das Relações Exteriores recebia da ONU o parecer daquela organização, o qual, por seu turno, era repassado às Forças Armadas. Elogios e condecorações a quaisquer oficiais envolvidos na missão também eram remetidos ao Itamaraty que, em seguida, informava o Estado-Maior responsável pelo oficial avaliado75.

As Forças Armadas também dependiam do Itamaraty para negociar junto à ONU, por exemplo, ajuda de custo para combustível de aviões da Força Aérea Brasileira utilizados para transporte de ida e regresso de pessoal76. Era também o Itamaraty que solicitava junto à ONU os materiais de orientação para planejamento das missões que, posteriormente eram repassados aos Estados-Maiores77.

Da mesma maneira que as Forças Armadas aceitam se subordinar ao Itamaraty no trato político das questões de missões de paz78, o Itamaraty aceita conselhos dos Estados-Maiores,

74 Como exemplo, menciono Ofício 2349-AS/1.32-EMEX, elaborado pelo General de Divisão Jaime José Juraszek (Chefe de Gabinete do Ministério do Exército) ao Embaixador Carlos Moreira Garcia, que encaminha relatórios sobre a atuação de seu Batalhão junto a COBRAVEM, como do desempenho da Cia. de Engenharia e do Posto de Saúde Avançado.

75 Ver como exemplos: Ofício n.9 DNU-MRE/PEMU-OPAS e Ofício n.10/DNU-MRE/PEMU. Disponíveis no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.

76 Como mostra o Ofício n.191/SC-3. Reservado. Desclassificado. Disponível no Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.

77 O Ofício 158/SAE 3.2 expõe pedido do General José Luis Lopes da Silva (Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército) ao Embaixador José M. Bustani (chege do Departamento de Organismos Internacionais do Itamaraty, rogando que este solicitasse junto a ONU o referido material, imprescindível para planejamento dos treinos realizados com os oficiais que participariam de missões.

78 Embora a participação em missões de paz figure como objetivo do presidente Fernando Henrique Cardoso, a análise de uma seqüência de correspondências mostra que primeiramente, a tratativa de elaboração e também de avaliação é de responsabilidade do Departamento de Organismos Internacionais do Itamaraty que, envia relatos de resultado das missões à Secretaria Geral do Ministério das Relações Exteriores que, por sua vez, informa o Ministro das Relações Exteriores sobre a situação das mesmas que, por último, elabora, por exemplo, os textos que serão proferidos pelo presidente nas chamadas “Mensagens ao Congresso Nacional”. Assim, podemos dizer que o diálogo entre militares e diplomatas, nestas situações, não são regulados pelo poder político, mas são coordenados pelo Itamaraty. Pode levar a esta interpretação a leitura de: EM416/DNU/DAF-II/SEI/SRC-MRE-PEMU OPAZ, de 25 de julho de 1995 que mostra o caminho final

quando se trata, por exemplo, dos direitos e capacidades do Brasil de reivindicar junto à ONU espaços de maior destaque79. Ademais, os militares parecem se sentir à vontade para indicar ao Ministério das Relações Exteriores a melhor forma de justificar eventuais pedidos de abertura de crédito que tenham que ser feitos à União, para estabelecimento das missões80.

É possível, destarte, acreditar que no campo das missões de paz, o diálogo entre militares e diplomatas flua positivamente, provavelmente porque seus resultados interessem a ambos os lados: ao Itamaraty porque a liderança brasileira em missões de paz ONU constitui-se, a partir da era Cardoso, no principal instrumento de participação brasileira na construção da ordem mundial – objetivo principal do paradigma da autonomia pela participação, como visto no segundo capítulo e que, entretanto só pode se concretizar pela participação das Forças Armadas, dada a natureza da atuação; Às últimas, por outro lado, interessa o envolvimento em missões de paz, considerando que este pode significar a justificativa para sua manutenção em um contexto em que a necessidade de sua existência chegou a ser posta em cheque pelos adeptos de novos preceitos internacionais do pós-guerra Fria. Em outras palavras, seria, em parte, a solução para a crise de identidade vivida pela caserna, ao longo da década de 1990. Além disso, restaurar-se-ia junto à sociedade, o sentimento de que as Forças Armadas são relevantes à Defesa externa. Ainda instrumentalizadas pelo Ministério das Relações Exteriores, e não pelo Estado, o reconhecimento de sua importância tática justificaria a atenção do governo e da sociedade.

Em relação às demais temáticas que possam envolver o diálogo entre militares e diplomatas no debate da política externa brasileira, algo que se pode notar na análise dos ofícios trocados entre as duas esferas é que prevalecem numericamente aqueles emitidos pelas Forças