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ENTRE A TEORIA E A HISTÓRIA PARTICULARIDADES DA DINÂMICA DECISÓRIA NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA.

Depois de dedicar os primeiros capítulos ao estudo das crenças e idéias que moldam as opções de política externa do Brasil com a Argentina1, aqui exploramos as especificidades do processo decisório brasileiro em política externa, enquanto outro importante condicionante estrutural do relacionamento bilateral aqui estudado, sob perspectiva a do Brasil. Constatar-se-á que algumas particularidades históricas do processo de elaboração e decisão da política exterior brasileira, em dada medida, contribuem à cristalização da linha de conduta externa do Brasil, ainda que recorrentemente, à mesma, sejam impostos sempre novos desafios conjunturais. Em primeiro lugar, é válido apontar que a decisão em política externa no Brasil, salvo raras exceções, não está sujeita à efetiva avaliação e contrabalanço do parlamento, e é tomada de forma alheia ao conhecimento da sociedade em geral. Nos assuntos referentes à Defesa, como é o caso que buscamos enfocar, a situação é mais enfática por estar relacionada à dupla via de uma problemática constituída, de um lado, pelo desinteresse parlamentar e pela apatia pública quando se tratam de problemas daquela envergadura, e por outro, pelo interesse de ambas as esferas da política externa – Defesa e Diplomacia – em que tal afastamento perdure. Tal condição, por sua vez, tem a ver com a maneira exclusiva com que os agentes daquelas duas esferas – os militares e os diplomatas – enxergam as questões nacionais e seu papel diante delas. Trata-se, portanto, de um processo decisório dotado de significante complexidade. Todavia, longe de encerrar o problema, se Defesa e Diplomacia, teoricamente, constituem duas partes de um todo, devendo, por isso, trabalhar de modo concatenado e sinérgico, no Brasil, o tema da Defesa ainda se enclausura no interior dos muros das Forças Armadas, enquanto que outros aspectos de Política Externa são, em geral, tratados de modo exclusivo pela burocracia diplomática.

Visando sustentar a organização aqui adotada para exposição de nossa análise sobre o funcionamento da política externa brasileira – a qual busca contemplar a ênfase nos processos que permeiam as relações do Brasil com a Argentina no campo da Defesa –, consideramos importante, como ponto de origem, deixar alumiada nossa percepção teórico-conceitual sobre o que venha a constituir a política externa e como deve ocorrer sua operacionalização. Em seguida, argumentar-se-á o porquê de a estrutura decisória brasileira ser por nós concebida como

1 Sendo que escolhemos dois padrões que acreditamos ser capitais para a compreensão da visão brasileira: o de rivalidade e o de cooperação.

um obstáculo de considerável dimensão à institucionalização da cooperação em Defesa com a Argentina.

(3.1) Eixo teórico-conceitual

Antes de tudo, consideramos apropriado discernir política externa de outros termos que, muitas vezes, são tomados como análogos ao que aqui se busca explicar: relações internacionais, política internacional e diplomacia. Chamamos aqui de Relações Internacionais ao complexo conjunto de intercâmbios entre unidades políticas2 – admitindo, porém, a pluralidade conceitual que enreda o termo3. Já a Política Externa, é aqui percebida como “o conjunto de ações de um Estado em suas relações com outras entidades que também atuam no cenário internacional, com o objetivo, a princípio, de promover o interesse nacional”4.

Enfim, compreendemos que política externa abarque o planejamento e o delineamento da ação externa de um país, tendo em vista o melhor aproveitamento dos ganhos e a minimização de perdas, atendendo, ao máximo, aos interesses do Estado, através da fundamentação da ação sobre um rigoroso cálculo estratégico. Em outros termos, as decisões seriam tomadas com baliza em um consistente projeto político de ação externa.

A Política Externa deve ser diferenciada da Política Internacional, a qual, segundo Gonçalves, corresponderia à “estrutura e funcionamento dos sistemas políticos estrangeiros”5, em oposição ao método político particular de ação de determinado país.

2 PISTONE, Sérgio. Relações Internacionais. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília:UNB; São Paulo: Imprensa Oficial. Pp.1089-1099.

3 Sob uma perspectiva realista, fundamentalmente, a distinção entre as relações internas e as relações internacionais, surge da dupla realidade que vive um Estado: em âmbito interno, ele é soberano e tem legitimidade de impor decisões e diretrizes, mas no âmbito externo, o Estado tem que tentar defender seu interesse nacional junto a uma sociedade anárquica, na qual inexiste uma autoridade suprema reguladora. No entanto, a crença na indissociabilidade entre as relações que ocorrem no âmbito interno e externo de um Estado motivaram diversas críticas ao realismo, às quais não merecem nossa atenção agora. Sobre isso, ver: DOUGHERTY, James E.; PFALTZGRAFF, Jr. Robert L. Relações Internacionais As teorias em confronto. Tradução de Marcos Farias Ferreira, et al. Lisboa: Gradiva, 2003. p.46.

4 REYNOLDS, P. A. Introduccion al Estudio de las Relaciones Internacionales. Madrid: Tecnos, 1977. p. 46. Apud. GONÇALVES, Williams. Relações Internacionais. Disponível em: http://www.cedep.ifch.ufrgs.br/Textos_Elet/pdf/WilliamsRR.II.pdf p.8. Ver também: GONÇALVES, Williams; SILVA, Guilherme A. Dicionário de Relações Internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005.

5 Desta forma, de acordo com o autor, um estudioso dedicado ao tema da Política Internacional deve se debruçar sobre a dinâmica de ação e reação dos povos diante dos desafios mundiais. Gonçalves acrescenta

A compreensão de política externa que aqui se explora afasta o tradicional preconceito de que política externa e Defesa são coisas distintas. É muito comum relacionar a Defesa a um setor mais remoto, um lugar isolado, pouco freqüentado e específico ao nicho militar e da guerra, e enxergar a Diplomacia como face da paz e da concórdia. Concebemos Diplomacia e Defesa como parte de um único todo denominado Política Externa6.

A Diplomacia e a Defesa, guardadas suas especificidades, são os dois instrumentos por excelência da política externa que atuam para que esta seja, principalmente, promotora do interesse nacional. É destes dois instrumentos que o Estado lança mão para fazer valer seus fins, depois de auscultados os interesses, no âmbito da intermediação política, e depois de decidido o parâmetro de ação externa.

A Diplomacia, por sua vez, refere-se a um método particular de regulamentação, manutenção e condução através de negociações7. Assim, “a arte ou o ofício diplomáticos” estão relacionados menos ao conteúdo que ao procedimento8. Quem fornece o teor, ou ainda o objeto da diplomacia dando-lhe sentido, é a Política Externa, por isso, “Diplomacia sem política não passa de conduta vazia, movimento sem rumo, ação externos sem estratégia de realização de interesses nacionais e mesmo coletivos”, como aponta Cervo9. E prossegue:

Cabe à política exterior agregar os interesses, os valores e as pretendidas regras do ordenamento global, da integração ou da relação bilateral, isto é, prover o que a segunda alternativa de compreensão de Política Internacional estaria vinculada à aplicação de ideologias (socialismo, neoliberalismo, terceira via, populismo, etc.) aos programas e regimes políticos em todos os Estados do Mundo, motivo, pelo qual, um estudo de Política Internacional deve ser necessariamente, um estudo comparativo GONÇALVES, Williams, Op. Cit., p.7.

6 É certo, porém, que tomando por base a ação de governos, há, na política externa, dimensões que podem e devem ser analiticamente separadas, a título de recorte, por exemplo: político-diplomática; militar-estratégica e econômica. ALTEMANI, Henrique. Política externa brasileira. São Paulo: Saraiva, 2005. p.5

7OSTELLINO, Piero. Diplomacia. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: UNB; São Paulo: Imprensa Oficial, pp.348-349. Grifo nosso

8 Utilizado pela primeira vez em 1796, por Edmund Burke, o termo Diplomacia deriva do termo grego diploma (diplôum) que era “a folha enrolada usada antigamente para leis e editais públicos, e que passou a ser, depois, sinônimo de licença e privilégio concedidos às pessoas”. O uso de mensageiros para dirimir as controvérsias é muito antigo”. De acordo com Ostelino, Tucídides, em A Guerra do Peloponeso indicia que os gregos, no século V a.C. já faziam o uso de relações diplomáticas, encarregando como mensageiros indivíduos de caráter inviolável e de grande habilidade oratória. Idem, p.349. Por outro lado, a cuidadosa preparação dos diplomas indicava a intenção de conservação dos documentos e, automaticamente, o registro de fatos históricos – como a instituição de tratados de paz e aliança, ou o fim de hostilidades.

9 CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional. Formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008,p.9.

conteúdo da diplomacia desde uma perspectiva interna, quer seja nacional, regional, quer seja universal10.

A Diplomacia deve ser um dos instrumentos legítimos de mediação, dos quais se vale o Estado, para conversão de interesses nacionais em política externa e vice-versa, porém, o todo da Política Externa, só se compõe com a ação complementar da Defesa. Por Defesa entendemos uma política pública que tem como tarefa “compatibilizar a capacidade de combate e os custos das forças com as metas políticas dos governos na cena internacional”11, sendo composta pelas Forças Armadas, por uma “estrutura integrada de comando e planejamento militar”, por uma “suposta” institucionalidade governamental e por uma política declaratória.

A Defesa, no entanto , está relacionada à segurança, numa dinâmica de interpenetração e influência mútua12, sendo, portanto, importante, delimitar as diferenças e apontar as conexões entre os dois termos. Enquanto “o conceito de segurança designa um estado de coisas e não uma atividade”, como nos lembra Saint-Pierre13, a Defesa é a atividade que garante a segurança, a qual, por sua vez, define-se pela “ausência de ameaças para obter valores, e, num sentido subjetivo, mede a ausência do temor de que tais valores sejam atacados”14. Ainda, no âmbito subjetivo, a segurança está condicionada à proteção da identidade, da soberania e dos interesses da nação. Assim, de um processo cooperativo em Defesa – levando-se à risca nossa acepção do termo – espera-se, ao menos, a articulação conjunta de políticas que garantam os interesses vitais de determinada região. Trocando em miúdos, a cooperação regional, em última instância visa sustentar a ausência de temores e vulnerabilidades, a sobrevivência íntegra, a soberania e os interesses comuns dos povos que compõem determinada aliança. Outro ponto a se discernir é que a segurança enquanto objeto de garantia pela Defesa, toma o Estado como referência;