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ICÔNICO OU ARBITRÁRIO? MOTIVADO OU IMOTIVADO?

No documento davivieiramedeiros (páginas 160-165)

6 DISCUSSÃO SOBRE ARBITRARIEDADE E ICONICIDADE NAS LÍNGUAS DE SINAIS: O QUE OS DADOS DA LIBRAS NOS INDICAM?

6.1 ICÔNICO OU ARBITRÁRIO? MOTIVADO OU IMOTIVADO?

Iniciamos a presente dissertação, apresentando a concepção de língua de Saussure (2006 [1916]), enquanto um sistema de signos cuja natureza é a seguinte: uma entidade psíquica de duas faces, uma acústica (o significante) e outra conceitual (o significado), ambos os elementos intimamente ligados (em outras palavras, um reclamando o outro). A partir da concepção linguística do autor, expomos o princípio da arbitrariedade do signo: o laço que une essas duas faces é arbitrário, ou seja, a sequência de fonemas utilizados para fazer referência a determinado conceito não é naturalmente motivada por nenhum tipo de aspecto.

Vimos que a noção acerca do signo linguístico proposta por Saussure (2006 [1916]) também pode ser aplicada à Libras, bem como às demais línguas de sinais, de modo geral. Conforme aponta Luchi (2013), o significante e o significado correspondem, nessas línguas, respectivamente, à representação mental que os falantes têm da imagem visual dos sinais (permitindo-os reconhecê-los, como também produzi-los) e do(s) conceito(s) a ela associado(s).

Discutir as noções de arbitrariedade e de iconicidade, bem como as noções de imotivação e de motivação linguística, de fato, não é trivial. Essas noções, de certa forma, representaram, por vezes, um problema para a aceitação das línguas de sinais, enquanto línguas naturais, por parte da ciência linguística. Vale apontar que boa parte

dos linguistas que se propuseram a iniciar a investigação das línguas sinalizadas, implicaram-se em demonstrar a escassez e/ou a irrelevância da iconicidade nessas línguas, visando a aproximá-las das línguas orais (LANE, 1992 apud XAVIER; SANTOS, 2016; WILCOX, P., 2000; XAVIER; SANTOS, 2016).

Nesse sentido, autores como Strobel e Fernandes (1998) e Quadros e Karnopp (2004) explicitam a prevalência de sinais arbitrários, na Libras, em relação à presença de sinais icônicos. As autoras são categóricas ao afirmarem essa ocorrência – “a grande maioria dos sinais da LIBRAS são arbitrários, não mantendo relação de semelhança alguma com seu referente (STROBEL; FERNANDES, 1998, p. 5) – e ao explicarem o porquê desse fato – “dada a forma, é impossível prever o significado, e dado o significa é impossível prever a forma” (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 26). Percebemos, nas afirmações das autoras, tanto uma preocupação em ressaltar a escassez de sinais icônicos na Libras (nas primeiras) quanto uma visão que reduz a noção de iconicidade a uma relação direta entre significante e significado, a partir da ideia de uma possível transparência linguística, o que vai de encontro à Saussure (2006 [1916]), que concebe a língua como um sistema de signos que são constituídos por meio de convenções sociais, compartilhadas por uma mesma comunidade linguística. Acerca dessa ideia, é interessante citar Xavier e Santos (2016, p. 63), os quais são precisos ao afirmar que “se assim fosse, mesmo indivíduos não sinalizantes seriam capazes de aprender essa relação e deduzir o significado de qualquer sinal”.

Não obstante, apresentamos uma série de pesquisadores (como FELIPE, 2006; FERREIRA-BRITO, 1995; FRIEDMAN apud WILCOX, P., 2000; FRYDRYCH, 2012; KLIMA; BELLUGI, 1979; TAUB, 2001; XAVIER, 2017; XAVIER; SANTOS, 2016; WILCOX, S. 2004) que não apenas se implicaram em investigar a iconicidade nas línguas de sinais e em descrever suas diferentes formas de manifestação, como também a consideraram como sendo algo bastante presente nessas línguas51. É

comum, nesses autores, trazer a questão da modalidade linguística das línguas sinalizadas como uma razão para a presença significativa da iconicidade em línguas de sinais. Essas línguas (dependentes da visualidade), por serem articuladas pelo

51 Xavier e Santos (2016) afirmam que apenas após o advento de novas correntes linguísticas

(como a Linguística Funcional e a Linguística Cognitiva) é que se começou a perceber uma atenção maior à noção de iconicidade, inclusive nas línguas orais (os autores citam, por exemplo, pesquisas como as de Hinton, Nichols e Ohala (1994), que mostraram que as onomatopeias apresentam sistematicidade e conformidade no sistema fonológico da língua a que pertencem).

corpo, de modo geral, e em um meio (o espaço) multidimensional, aproveitam imagens visuais de uma forma que as línguas orais não o fazem, uma vez que aquelas conseguem explorar, mais facilmente, oportunidades icônicas que não estão disponíveis a estas.

Como aponta Taub, a maioria dos conceitos não apresenta imagens sonoras associadas a eles. Tal fato acaba impedindo que as línguas orais os representem iconicamente. Diferentemente, a maior parte dos conceitos tem imagens visuais, espaciais e motoras que podem ser exploradas por línguas visuais. [...] Nesse sentido, segundo Taub (2012), a presença relativamente menor de iconicidade nas línguas orais não lhes confere superioridade em relação às línguas sinalizadas. Ao contrário, indica a incapacidade das línguas orais de fazer uso desta – que talvez seja um princípio universal nas línguas – , em virtude da pobreza de imagens sonoras em nossa experiência (XAVIER; SANTOS, 2016, p. 63).

O primeiro questionamento que trouxemos no capítulo 1 desta dissertação (e talvez o mais central do presente trabalho) está relacionado ao fato de as noções de arbitrariedade e de iconicidade serem opostas (em outras palavras, de elas serem noções contrárias uma a outra). Ao fazer tal questionamento, estávamos certos de que, se assim o fosse, nós nos depararíamos com um problema considerável, por um lado, no que diz respeito à aceitação do status linguístico das línguas de sinais, considerando a presença significativa da iconicidade nessas línguas, como já foi explicitado neste texto, por outro lado, no que se refere à manutenção da preocupação em evidenciar (cega e ingenuamente), a escassez e/ou a irrelevância da iconicidade nas línguas sinalizadas.

Assumimos e defendemos, portanto, neste trabalho, a visão de Frydrych (2012), a qual reconhece a impossibilidade de se colocar arbitrariedade e iconicidade no mesmo patamar. Afirma a autora, enquanto a arbitrariedade representa um princípio organizacional de todas as línguas (princípio linguístico), a iconicidade consiste, apenas, em uma característica presente e explorada em/por determinadas línguas (aspecto formal), destacando-se, nesse sentido, as línguas de sinais.

Ao aplicarmos determinados pressupostos saussurianos à noção da arbitrariedade e da iconicidade na Libras, notamos que, nessa língua (assim como ocorre com as onomatopeias, nas línguas orais), os signos linguísticos icônicos são, também, arbitrários, na medida em que são frutos de uma convenção. De certo modo, ao mesmo tempo que isso explicaria o fato de não falantes de Libras (isto é, indivíduos

que não compartilham esse sistema linguístico) não reconhecerem a iconicidade em determinados sinais, explicaria o porquê de os signos icônicos, nessa língua, não serem os mesmos em outras línguas de sinais. Strobel e Fernandes (1998) citam, por exemplo, os sinais referentes à árvore na Libras e na Língua de Sinais Chinesa (LSC), que são diferentes. E a esses exemplos, acrescentamos o sinal referente ao mesmo conceito na LSF: em Libras, o sinal é motivado pela imagem visual da raiz, do tronco e da copa de uma árvore; em LSC e em LSF, o sinal é motivado apenas pela imagem visual do tronco de uma árvore (Figura 73). Nas três línguas, esses sinais são icônicos, todavia, por fazerem parte de sistemas linguísticos distintos, submetem-se a regras e a evoluções diferentes, às quais também se submetem os demais sinais não icônicos dessas línguas.

Figura 73 – Sinais referentes à árvore na Libras, na LSC e na LSF, respectivamente

Fonte: Cuxac e Sallandre (2007, p. 16); Strobel e Fernandes (1998, p. 5)

Questionamos também, no capítulo 1 do presente trabalho, o fato de haver uma correspondência direta e biunívoca entre os conceitos de imotivação e de arbitrariedade e os conceitos de motivação e de iconicidade, de modo que, se assim o fosse, automaticamente, um sinal imotivado seria equivalente a um sinal arbitrário e, consequentemente, um sinal motivado seria equivalente a um sinal icônico. Como pode ser visto em algumas citações neste trabalho, esses termos vêm sendo tratados por autores que se propõem a investigar a arbitrariedade e a iconicidade na Libras, de certa forma, como sendo sinônimos. Destacamos o fato de vermos essa ideia no próprio CLG, ao lermos o seguinte: “queremos dizer que o significante é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na realidade” (SAUSSURE, 2006 [1916], p. 83, grifo nosso).

Observamos no nosso trabalho signos linguísticos cujo significante poderia ser facilmente explicado, mas que não são icônicos. Dito de outro modo, estamos nos referindo a significantes que apresentam uma motivação – uma razão, um porquê – no que diz respeito à forma que possuem, mas que não conferem iconicidade aos signos que os constituem. Citamos como exemplo, os signos motivados, exclusivamente, por ELP, apresentados neste texto (Figuras 64, 66 e 67). É verdade que a(s) CM desses sinais está(ão) relacionada(s) ao fato de as palavras a eles correspondentes se iniciarem com (e/ou apresentarem) essas letras. No entanto, essas CM, especificamente, não apresentam algum tipo de relação com o(s) conceito(s) que esses sinais evocam. Nesse sentido, assumimos que os conceitos em questão (icônico e motivado; e arbitrário e imotivado) são (na verdade e apenas) conceitos relacionados, mas não sinônimos: nesse sentido, todos os signos na Libras são arbitrários, mas nem todos são icônicos; todos os signos icônicos apresentam alguma motivação, mas nem toda motivação é icônica. Em outras palavras, todo sinal icônico é motivado, entretanto, nem todo sinal motivado é icônico, uma vez que nem toda motivação é icônica: há motivações que conferem iconicidade ao signo, há motivações que não o fazem; e todos eles são arbitrários.

Entendemos, portanto, na presente dissertação: (i) a arbitrariedade como um princípio linguístico comum a todas as línguas naturais, independentemente da modalidade dessas línguas, o qual estabelece que a relação entre o significante e o significado dos signos linguísticos das línguas não é natural, mas, sim, convencional; (ii) a iconicidade como um aspecto formal, explorado de diferentes formas nas/pelas línguas, que está relacionado à possibilidade de estabelecimento de determinada relação, por meio de representações visuais mentais, entre o significante de um signo e o(s) significado(s) por ele evocado(s); (iii) a motivação como a existência de uma explicação (em outras palavras, à existência de um motivo, de um porquê) para a forma que o significante apresenta; e (iv) a imotivação como a ausência desse porquê (Figura 74).

Figura 74 – O signo linguístico nas línguas naturais

Fonte: Elaborado pelo autor (2019)

No documento davivieiramedeiros (páginas 160-165)