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As ideias de Freire subsidiando a prevenção e enfrentamento de violências no setor saúde: instrumentalização ou conscientização?

PARA PROFESIONALES DE LA SALUD

1 As ideias de Freire subsidiando a prevenção e enfrentamento de violências no setor saúde: instrumentalização ou conscientização?

Claramente, a produção científica sobre violência e saúde vem aumentando exponencialmente, sobretudo nos últimos 10 anos, impulsionada, dentre outros fatores, pelos estímulos internacionais da Organização Mundial da Saúde, como o Relatório Mundial sobre violência e saúde, divulgado em 2002 (KRUG et al., 2002), e nacionais, como a Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências - Portaria MS/GM nº 737, de 2001 (BRASIL, 2005).

Mesmo com todo avanço na visibilidade da questão como pauta indiscutivelmente prioritária no setor saúde, esse aumento quantitativo apresenta lacunas qualitativas, iniciando pela própria compreensão do que é violência. Para boa parte dos estudos na área de saúde, a preocupação maior é a tipificação das diversas violências, acentuando os limites entre uma e outra forma de violência, e demarcando as virtuais diferenças entre elas (se é que existem, muitas vezes) do que refletindo sobre suas inter- relações.

Essa tipificação foi de suma importância histórica, já que a Resolução WHA 49.25, da World Health Assembly, ocorrida em 1996, que declarou a violência como um dos principais problemas de saúde pública, instigou à Organização Mundial da Saúde (OMS) que desenvolvesse uma tipologia que caracterizasse os diferentes tipos de violência, bem como os vínculos entre eles. Os demais documentos que vieram depois contribuíram decisivamente para tornar menos invisível a problemática frente ao setor saúde.

A partir da perspectiva dialógica de Freire, pode-se pensar a violência como fenômeno sócio-histórico-cultural, enraizado em todas as civilizações e capilarizado socialmente em relações de opressão (opressor-oprimido). Ou seja, nos faz pensar: existem mesmo tantos crescentes “tipos diferentes” de violências? Quais são “piores”? A violência é necessária para a evolução da humanidade? Existe

possibilidade real da violência acabar? A noção de paz é uma hipocrisia fabricada para nos iludir?

Talvez, essas questões, produzidas a partir da noção freireana de relação entre opressor-oprimido como presente em todos as sociedades, sejam uma excelente contribuição deste educador para pensar no campo da violência, pois coloca em cheque o que (achamos que) “sabemos” sobre as situações de violência.

Analisando as ideias de Freire, nota-se que alguns conceitos se encaixam melhor para este estudo: relação opressor-oprimido, concepção bancária e problematizadora, dialogicidade, respeito aos saberes do outro, conscientização e autonomia. Todos esses conceitos, isoladamente ou articulados, podem nos dar pistas de como prevenir e enfrentar situações de violência que cotidianamente batem à porta dos serviços de saúde.

Entretanto, inicialmente, já nos emerge o primeiro desafio: qual o limite entre a instrumentalização simplista (no sentido mecânico e biologicista, que historicamente pautou a formação e atuação dos profissionais de saúde a partir do modelo flexneriano e das “hiperespecializações”), a qual reduz a violência a mais uma “patologia” com prescrições milagrosas para sua resolução; ou a conscientização epistemológica, como afirma Freire, que sensibiliza profissionais para entenderem a violência do “outro” como “meu” problema (também)? Certamente, os ideais de Freire não são ferramentas que podem se guardar em uma caixa e levadas para dentro dos serviços de saúde. É preciso minimamente viver e acreditar no que acreditou o pernambucano (mesmo discordando e ponderando alguns aspectos), transpondo isso na relação com os usuários/clientes/pacientes.

Como também não se pode sustentar a hipocrisia que o cotidiano insalubre de trabalho em que atua boa parcela dos profissionais no SUS permite que todos os princípios freireanos sejam efetivados, tal qual consta em toda sua obra, sem serem destoados por uma boa dose de pragmatismo e rapidez, gerados pela conhecidamente elevada demanda dos serviços do SUS. Este conflito é, de certo modo, saudável e gera uma justa medida que os profissionais de saúde terão que conviver, diariamente, entre o abismo da mecanicização e a falácia romântica da teoria vazia que nunca é praticada (e esse, certamente, não se constitui no legado da obra de Freire).

Em sua obra fundante (Pedagogia do Oprimido), Paulo Freire traz a ideia de que há uma dominação vigente na sociedade, que é retratada também na educação. Ou seja, as relações entre professores e alunos eram (e continuam sendo) fruto e reflexo de uma sociedade desigual, preconceituosa, imperialista e piramidal, que não tinha (tem) interesses

em ter os “dominados” refletindo sobre as condições de desigualdade circundantes (FREIRE, 2016).

Ao trazer que a verdade do opressor reside na consciência do oprimido, Freire instiga que as relações desiguais entre educador e educando são desiguais porque assim são apreendidas pelo próprio aluno, que se vê refém do dominador/educador justamente por atrelar a ele sua própria condição de existência. Ele denuncia, assim, que a figura do educador, muitas vezes, personifica esta classe dominadora da sociedade na época (que se perpetua nos dias atuais). Ele traz ainda que o ensinar a não pensar é algo puramente planejado pelos que estão no poder, para que possam ter em suas mãos a maior quantidade possível de oprimidos, que, se sentindo fragilizados, necessitam dos que dominam para sobreviverem. Mas não bastaria uma “revolução” (repentina e “milagrosa”) no campo da opressão, por buscar mudanças daqueles que dominam, pois acabaria gerando novos opressores e oprimidos – o processo é longo e deve visar à libertação de ambos: oprimido e opressor. Para Freire, ensinar a pensar e problematizar sobre a sua realidade é a forma mais viável de se construir conhecimento, pois é a partir daí que o educando terá a capacidade de compreender-se como um ser social. Traz as noções de educação bancária e problematizadora. Na bancária, os educandos são “treinados” a repetirem procedimentos externos e alheios à sua realidade social, ou seja, sem significado concreto nem mobilização para que transcendam o que o próprio professor leciona mecanicamente. Já na educação problematizadora, pressupõe uma conscientização de fato do aluno, quando ele passa a conhecer sua realidade e discutir os problemas a partir da realidade social concreta onde vive, pertencente a ele, logo, com potencial de mobilização bem maior (FREIRE, 1979).

Trazendo alusões para a prevenção e enfrentamento de violências, as relações conflituosas podem ser compreendidas de modo semelhante, pois, muitas vezes, as pessoas que vivem em situação de violência por muitos anos acreditam “depender” do agressor (de algum modo) e têm dificuldades em romper o ciclo desta situação, aos olhos externos “inaceitável” e “fácil” de ser resolvido. A relação agressor-vítima” é muito mais complexa que o senso comum pode estipular, e as situações conflituosas devem ser entendidas como necessariamente relacionais a partir da lógica freireana instigada nestes capítulos.

Podemos inferir que não existem apenas algozes ou heróis nas relações de violência, e ambos merecem atenção e cuidado por parte do setor saúde. Ou seja, os profissionais de saúde, movidos pelo imaginário do senso comum de que apenas as “vítimas” precisam ser acolhidas em suas “fragilidades”, esquecem de vários compromissos éticos que

assumem no exercício de suas profissões. Além de desconsiderarem as potencialidades que a pessoa violentada possui na superação, por ela própria, do ciclo de violência (sendo esta uma premissa baseada na conscientização freireana que aqui se defende). Os profissionais de saúde claramente tomam partido pela “vítima”, desqualificando a atenção igualmente necessária ao agressor e desconsiderando, inclusive, a condição relacional das violências, na qual os papéis são mutáveis e não polarizados. Além de infrações éticas, com implicações legais, o cotidiano das práticas em saúde denota que muito ainda temos a avançar para efetivarmos uma atenção adequada frente a todo(a) e qualquer usuário(a) envolvido(a) nas situações de violência diuturnamente apresentadas aos(às) trabalhadores de todos os níveis de complexidade do sistema.

A partir do Livro “Pedagogia do Oprimido” (FREIRE, 2016) e irradiando para toda sua obra, Freire traz a alfabetização como forma de aprender a escrever a vida, como autor e testemunha de sua própria história. Ou seja, alfabetizar é conscientizar. Quem sabe possamos, inclusive, transpondo a libertação que a alfabetização traz, entender que tal libertação como proposta de autonomia do sujeito pode ser interpretada no campo das relações de violências, no qual as pessoas que as sofrem ainda desconhecem ou precisam ser “alfabetizadas” quanto aos seu direitos, sendo os profissionais de saúde protagonistas sociais ímpares nesta “alfabetização”.

Assim, percebe-se que o pensamento de Freire pode e deve ser utilizado para o enfrentamento de violências como uma estratégia para conscientização epistemológica de sujeitos envolvidos nesse processo, tanto profissionais de saúde quanto pessoas em situação de violência, e não apenas como um mero instrumento de capacitação, como tem sido verificado pelos estudos em nível de políticas e iniciativas oficiais equivocadamente direcionadas (CRUZ et al., 2015; SILVA FILHO, 2013).

2 Nas trilhas de uma utopia: os profissionais de saúde podem