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Nas trilhas de uma utopia: os profissionais de saúde podem contribuir para uma cultura de paz?

PARA PROFESIONALES DE LA SALUD

2 Nas trilhas de uma utopia: os profissionais de saúde podem contribuir para uma cultura de paz?

Buscaremos aqui construir a ideia de uma utopia como algo viável e construído coletivamente, à luz de princípios freireanos. Mas afinal, o que é uma utopia?

Dentre as várias possibilidades encontradas no pensamento de Paulo Freire que possibilitam a viabilização de uma práxis libertadora, a utopia vem diretamente atrelada à noção de esperança. Ardoroso educador utópico e imbuído de convicções libertárias, ele assume a

utopia/esperança como condição fundamental para inspirar e orientar os educadores e profissionais de saúde que buscam superar as contradições do sistema educacional e de saúde vigentes (FREIRE, 1979; 2016).

A utopia jamais se dá em nível individual. Ela é essencialmente social. Pode-se admitir somente a ação do indivíduo ou sua concepção utópica na medida em que esta vai ao encontro de uma luta ou conduta de um grupo, que supõe a devida incongruência com a ordem social existente e tem perspectivas de nova ordem social. As concepções utópicas só adquirem tal sentido, ou seja, são compreendidas e assimiladas à conduta de um grupo social se perfiladas a uma estrutura social e que a um dado tempo se unam: as concepções utópicas com a realidade. Faz-se necessário, cada vez mais, resgatar o conceito de esperança a partir da compreensão freireana; esperança impregnada da preocupação de libertar o ser humano do discurso ideológico pragmático (presente nos agressores da violência, que seduzem romanticamente suas vítimas a perpetuarem-se no ciclo da violência). Para Freire (2015b), a esperança é inerente à própria natureza humana, sendo concebida como horizonte e princípio de emancipação do ser humano na medida em que este se reconhece como inacabado historicamente e se coloca num movimento de busca constante para desvendar as razões legítimas de sua existência no mundo, num constante processo de humanização (PEROZA; MESQUIDA, 2008).

Freire colabora ainda na discussão sobre prevenção de violências ao propor uma esperança crítica, ao motivar uma ação revolucionária - utópica - argumentando pelo engajamento do ser humano na construção de sua própria história.

Freire (2006; 2015a) aborda a questão da dialogicidade como essência da educação como prática da liberdade. Em sua perspectiva, só há diálogo com um profundo amor ao mundo e aos homens, com humildade sincera e mediante a fé no poder de criação do homem, sendo assim um ato de criação e recriação constantes, de coragem, compromisso, valentia e liberdade. Assim, o diálogo faz-se numa relação horizontal baseada na confiança entre os sujeitos e na esperança, uma busca eterna fundamentada em um pensamento crítico.

A investigação temática (uma das etapas do círculo de cultura de Freire) pode também nos ajudar no enfrentamento de violências, pois ensina para os profissionais uma observação criteriosa, atitudes compreensivas e uma percepção crítica da realidade da pessoa violentada, constituída pelo seu conjunto de dúvidas, anseios e esperanças. Ou seja, Freire entende que as pautas/prioridades devem emergir do povo (FREIRE, 2006; 2016).

Reflete-se que evitar o diálogo é temer a liberdade e não crer no povo, chamando a atenção para que as lideranças revolucionárias não se deixem arrastar para posturas características das classes dominadoras, como a absolutização da ignorância, a descrença no homem e a impossibilidade do diálogo.

Em suma, não é suficiente que o oprimido tenha consciência crítica da opressão, mas que se disponha a transformar a realidade. A problematização da realidade (educação problematizadora) caracteriza-se pela intencionalidade, afirmando e fundamentando que a leitura do mundo requer conscientização, enquanto capacidade de admirar, objetivar, desmistificar e criticar a realidade do mundo no qual o homem, ao descobrir-se seu construtor, descobre-se sujeito de direitos, passível de se libertar de qualquer regime de dominação que visa à massificação. É na superação da contradição vítima-agressor, via estabelecimento do diálogo, que os sujeitos de um processo violento conseguem realizar a práxis e refletirem sobre si mesmos dentro da realidade que os mediatiza (FREIRE, 1979; 2016).

Ou seja, a consciência crítica – epistemológica, conforme Freire (1979) – tem de ser capaz de instigar nos indivíduos que sofrem violência a noção de que não podem, após se perceberem como cerceados de direitos, tornarem-se agora agressores para compensar a violência que sempre os afligiu. Essa seria uma conscientização ingênua, que continuaria por perpetuar as relações de violência nas proporções que se encontram. Ao mesmo tempo, espera-se que os profissionais de saúde também superem tal dicotomia, e senão por outra razão, eticamente serem capazes de acolher os envolvidos em processos de violência.

O que se advoga aqui é que, superada a consciência ingênua da culpabilização ao agressor, os profissionais de saúde sejam capazes de, por meio de um processo reflexivo, promover o desvelamento crítico dessa realidade, compreendendo as violências como fenômeno sócio- histórico-cultural. Nessa perspectiva, ao alcançar uma consciência epistemológica, ultrapassar o limite visível do fenômeno (as consequências visíveis da violência que chegam aos serviços de saúde) e desenvolver atitudes que contribuam a uma cultura da paz.

Cultura de Paz é paz em ação; é o respeito aos direitos humanos no dia-a-dia; é um poder gerado por um triângulo interativo de paz, desenvolvimento e democracia. Enquanto cultura de vida trata de tornar diferentes indivíduos capazes de viverem juntos, de criarem um novo sentido de compartilhar, ouvir e zelar uns pelos outros, e de

assumir responsabilidades por sua participação numa sociedade democrática que luta contra a pobreza e a exclusão; ao mesmo tempo em que garante igualdade política, equidade social e diversidade cultural. (COMITÊ PAULISTA PARA A DÉCADA DA CULTURA DE PAZ, 2000) Emergem aqui os princípios da cultura de paz, estabelecidos pelo Manifesto 2000 por uma cultura de paz e não violência e defendidos pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), por meio do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz. São eles: 1. Respeitar a vida; 2. Rejeitar a violência (praticar a não- violência ativa, repelindo a violência em todas as suas formas); 3. Ser generoso; 4. Ouvir para compreender; 5. Preservar o planeta; e 6. Redescobrir a solidariedade (COMITÊ PAULISTA PARA A DÉCADA DA CULTURA DE PAZ, 2000). Implícito em todos eles, o diálogo se apresenta como condição ímpar para a concretização desta “utopia necessária”, a paz. Todos esses princípios podem ser incorporados na atitude dos profissionais como tecnologias para o cuidar/cuidado.

Se analisarmos cada um desses princípios da cultura de paz, absolutamente todos, isoladamente ou em conjunto, possuem forte afinidade com o pensamento do educador pernambucano.