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A identidade, os professores e a escola na pós-modernidade: desafios a serem enfrentados

Capítulo 4: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL

4.1. Identidade

4.1.1. A identidade, os professores e a escola na pós-modernidade: desafios a serem enfrentados

Como salientado no Capítulo 03, atualmente a sociedade está condicionada por um mercado que exerce cada vez maior força sobre as organizações econômicas, financeiras, sociais e, em muitos casos, até educacionais (ZEICHNER, 2013). Sociedade essa que se faz a partir de rupturas e aceleradas mudanças de ideias, de estratégias e até de valores. Sociedade “[...] em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2005, p. 07).

Atento às intensas mudanças, complexidades e instabilidades que englobam o mundo, Bauman (2007a; 2007b) tenta explicar esses fenômenos pautando-se pelo termo ‘sociedade líquida’, afirmando que vivemos tempos líquidos (2007b). Essa denominação emerge aliada às transformações de ordem e estrutura social que se intensificam em detrimento dos processos da globalização, do capitalismo e do neoliberalismo, de forma que o termo líquido se opõe ao que é sólido, estando relacionado às rápidas transformações que perpassam o mundo.

É nesse contexto que as inovações ganham destaque, assim como foi pontuado no

Tópico 3.3. Literatura de Autoajuda e Educação, ao mostrar que os livros de autoajuda para

os professores geralmente procuram apresentar soluções inovadoras, mesmo que essas estejam apenas com uma nova roupagem, mas congreguem conteúdos já conhecidos.

As inovações e as rápidas mudanças podem ser facilmente percebidas no cotidiano, pois a cada dia novos produtos são lançados, a tecnologia desenvolve-se continuamente, novas ideias, cursos e mercadorias chegam ao mercado, convidando-nos a desfrutar-lhes. “A vida numa sociedade líquido-moderna não pode ficar parada. Deve modernizar-se” (BAUMAN, 2007a, p. 09). Entretanto, as intensas mudanças não passam despercebidas aos seres humanos, sendo frequentemente motivo de instabilidade, dificuldade em encontrar formas de situar-se, de fixar-se, de estabelecer referências:

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A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento [...] A vida líquida é

uma sucessão de reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores, sem os quais reiniciar seria inimaginável, tendem a ser os momentos mais desafiadores e as dores de cabeça mais inquietantes. Entre as artes da vida

líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las (BAUMAN, 2007a, p. 08, grifos nossos).

Os reinícios, por sua vez, engendram uma série de rupturas, já que as constantes mudanças impossibilitam o desenvolvimento de processos contínuos, sendo necessário rever constantemente o que até pouco tempo era considerado válido. Aliada à esse processo está à perda da tradição (RÜDIGER, 1996; ARENDT, 2009), que gera uma gama de incertezas ao indivíduo por não ser mais necessário guiar-se pelos valores e princípios que antigamente estruturavam a organização social.

O resultado disso é o engendramento de uma situação bastante precária para a subjetividade, que, constantemente exposta à possibilidade de perder a unidade e desprover-se de centro, vê-se compelida a desenvolver por conta própria e conservar unicamente com seus recursos essa unidade, para não perder sua identidade (RÜDIGER, 1996, p. 14).

Desse modo, os processos estabelecidos socialmente vão transformando a condição em que o indivíduo vive e se constitui, sendo que na medida em que a ordem mundial e os valores se alteram, o indivíduo vê-se na necessidade de acompanhar tais mudanças, de estar a par das transformações, sem, muitas vezes, ter condições para isso. Além disso, a perda de referências frequentemente relega ao homem a escolha por seus próprios princípios e valores, o que dificulta a constituição de valores sólidos, nos quais possa se apoiar para fundamentar seu desenvolvimento, suas decisões pessoais e profissionais. O homem dos dias de hoje caracteriza-se por não ter uma crença definida (RÜDIGER, 1996): “A consequência disso é a convivência constante com a ansiedade, o sentimento difuso de medo, a expectativa de fracasso e o crescimento de um profundo mal-estar consigo mesmo” (p. 202).

Dubar (1997) também ressalta que as mudanças sociais tornaram o mundo do trabalho mais instável, sendo que já não se pode ter as mesmas certezas que as gerações de décadas atrás. As taxas de desemprego, o rápido desenvolvimento tecnológico, as mudanças organizacionais e o acesso a empregos considerados cada vez menos estáveis são algumas das marcas dessas mudanças, que, para o autor, se intensificaram a partir da década de 1970:

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As identidades estão, portanto, em movimento e esta dinâmica de desestruturação/reestruturação toma, por vezes, a forma de uma “crise de identidades”. Cada configuração identitária tem hoje uma forma mista no interior da qual as antigas identidades entram em conflito com as novas exigências da produção e onde as antigas lógicas que perduram entram em combinação e, por vezes, em conflito com as novas tentativas de racionalização econômica e social (DUBAR, 1997, p. 239).

Nesse ínterim, o processo vai além de aumentar o consumir, adquirir novos produtos, incorporar novas palavras e jargões no vocabulário; as mudanças recaem sobre o indivíduo em si, sobre a constituição de seu processo identitário, pois as transformações exigem mudanças profundas, sendo necessário:

[...] ir em frente despindo-se a cada dia dos atributos que ultrapassaram a data de vencimento e desmantelamento, repelindo as identidades que atualmente estão

sendo montadas e assumidas. [...] A necessidade aqui é de correr com todas as

forças para permanecer no mesmo lugar, longe da lata de lixo que constitui o destino dos retardatários (BAUMAN, 2007, p. 09-10, grifos nossos).

Assim, na sociedade líquida, as atualizações já não perpassam apenas os bens de consumo materiais, mas invadem o território imaterial das ideias, dos valores, dos conhecimentos, dos conceitos... E, nessa ordem, não basta ter os produtos necessários à vida moderna, passa-se a ser fundamental incorporar e ser o sujeito necessário – ou útil – à vida moderna.

Nessa atualização se extrapola a mobilidade e a eficiência que envolvem os processos organizações e as ações humanas, pois adentrando-se o interior, exigindo-se uma identidade

em movimento, que esteja sempre pronta a abandonar velhos hábitos e incorporar novos, que

possa ser “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que o rodeiam” (HALL, 2002, p. 13).

Hall (2002) busca explicar tais mudanças pautando-se em dois modelos de identidade concebidos anteriormente para se chegar no que possivelmente vivencia-se hoje. Para ele, no Iluminismo, acreditava-se que a identidade da pessoa correspondia à sua essência, à sua razão, à sua consciência de ação, de modo que “o sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado” (HALL, 2002, p. 10).

Mais tarde surge a noção de sujeito sociológico, que vai ao encontro do aumento da complexidade do mundo moderno, de forma que a ‘essência’, a identidade do sujeito não mais era autônoma, mas constituí-se na relação com outras pessoas importantes para ele. “De

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acordo com essa visão, que se tornou a concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade” (HALL, 2002, p. 11).

Essa perspectiva, de certa forma, continua sendo válida na medida em que se entende que a identidade é negociada e constituída num processo de socialização (DUBAR, 1997; SOUZA NETO; SILVA; IZA, 2015), e que esse processo, por sua vez, se dá em relação ao meio em que o indivíduo está inserido, dependendo também das relações que são estabelecidas.

Assim, o que se questiona, na pós-modernidade, não é o processo de socialização, nem o processo pelo qual a identidade se constitui, mas sim a fragilidade das relações e a

intensidade das mudanças que se perpetuam em tempos líquidos. Os quais, por sua vez,

podem incidir diretamente sobre a construção de nossa identidade, de modo que “o próprio processo de identificação através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático” (HALL, 2002, p. 120).

Bauman (2007a) reforça essa ideia na medida em que demonstra que a sociedade líquida oferece inúmeras ‘identidades’ a serem incorporadas pelos consumidores, e que essas, por sua vez, se desfazem, pois as relações entre o sujeito e a estrutura são traçadas ligeiramente, podendo deslizar e até desaparecer numa velocidade surpreendente. Nesse panorama:

[...] as pessoas são atormentadas pelo problema da identidade. No topo, o problema

é escolher o melhor padrão entre os muitos atualmente em oferta, montar as partes

do kit vendidas separadamente e apertá-las de uma forma que não seja nem muito frouxa (para que os pedaços feios, defasados e envelhecidos que deveriam ser escondidos embaixo não apareçam nas costuras) nem muito apertadas (Para que a colcha de retalhos não se desfaça de uma vez quando chegar a hora do desmantelamento, que certamente acontecerá). (BAUMAN, 2007a, p. 13, grifos nossos).

Corroborando com Bauman (2007a), Hall (2002) assume que o sujeito pode assumir identidades diversas em diferentes situações, pois essas não são unificadas em torno de um ‘eu coerente’: “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (p. 13).

Assim, o processo de construção da identidade se baseia em uma sociedade na qual múltiplas relações podem se constituir, onde ideias e culturas diferentes – e até contraditórias – podem se misturar, complementar-se (SILVA, T., 1999), mas essas mesmas relações podem também se segmentar de maneira volátil, podem se desfazer, moldar-se a novas formas e

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contornos com extrema facilidade. Em uma sociedade líquida, pergunta-se: Quais parâmetros continuam sólidos para determinar nossa essência? Quais fundamentos permitem alicerçar os valores, as concepções, a visão de “eu” e de mundo? Mais uma vez nos deparamos com uma perda de referências.