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Os professores e a escola em situação cada vez mais complexa: da identidade aos saberes docentes

Capítulo 4: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL

4.2. Os professores e a escola em situação cada vez mais complexa: da identidade aos saberes docentes

Se os professores convivem com incertezas e certa dificuldade em estruturar seu processo identitário, é preciso ressaltar que a escola, como tantas outras instituições, também se vê influenciada pelas transformações atreladas à liquidez do mundo pós-moderno.

O desenvolvimento de fontes de informação alternativas à escola, como por exemplo, os meios de comunicação, fez com que ela deixasse de ser a detentora do saber, perdendo seu valor e prestígio social (ESTEVE, 1992; BAUMAN, 2008). Além disso, com a

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democratização do ensino, passa a existir uma grande diversidade de classes e etnias na sala de aula, de modo que já não é suficiente trabalhar com a cultura dominante, novos conteúdos e conhecimentos necessitam ser inseridos e incorporados nos currículos escolares.

Sob diferentes olhares, Esteve (1992), Masschelein e Simons (2013) olham para um descontentamento depositado sobre a escola, apontando para o fato de muitos acreditarem que ela já não cumpre com sua função. O fato é que tantas mudanças provocam inúmeros

questionamentos com relação ao que é e ao que deixa de ser papel da escola.

E por estarmos em uma era de valorização do capital econômico, Colello (2013) ressalta que o primeiro desafio da escola e do professor é mostrar aos alunos que o conhecimento possui um grande valor e que esse não está relacionado à sociedade do ter, à sociedade do consumo, pois hoje existe uma:

[...] oposição [...] entre os valores de nossa sociedade, a sociedade do ter, a sociedade capitalista, a sociedade do lucro e, por outro lado, o conhecimento. Qual é a razão para aprender, se o que vale mesmo é o dinheiro, é a grana, é o ter? Todos esses valores perpassam um pouco a mentalidade de nossos alunos. E eu vou dizer para vocês que talvez o primeiro desafio do professor, no enfrentamento do fracasso escolar, seja o de resgatar o valor do conhecimento, enquanto um bem necessário, enquanto bem prazeroso, enquanto um bem que merece ser adquirido (COLELLO, 2013, extraído da vídeoaula construção do fracasso escola: mecanismos do não

aprender e desafios do professor).

Tardif (2013) chama a atenção para essa gama de contradições e mudanças que vem afetando a escola nas últimas décadas. Para o autor, essa situação torna-se cada vez mais complexa:

E é nessa posição um tanto quanto complicada, que a escola encontra-se atualmente: Situando-se no centro de múltiplos desafios econômicos, sociais e culturais tanto individuais quanto coletivos, o ensino nas escolas encontra-se em nossos dias confrontado, por todos os lados, a pressões significativas, para se transformar e se adaptar imerso como se encontra num ambiente social que se tornou complexo e instável em quase todas suas dimensões (TARDIF, 2013, p. 552).

Segundo o autor, esses aspectos relacionados ao mercado marcam o último ciclo de grandes transformações ocorridas sobre o ensino e a formação de professores desde a Modernidade, desde o desenvolvimento das sociedades capitalistas. De uma divisão social e intelectual do trabalho docente, na qual a produção de saberes e a formação de pessoas passam a ser tarefas distintas e segmentadas, chega-se a uma condição em que não é somente a ciência que dita regras e exerce influências sobre o ensino, sobre os professores executores. Nem somente o Estado e a sua organização social, nem mais a religião.

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Desde a crise econômica que afetou países industrializados no início dos anos 1980, o que se intensifica, especialmente nos níveis superiores dos sistemas de ensino, é a ideia de que os saberes veiculados pela escola não correspondiam aos saberes úteis ao mercado de

trabalho, sendo que se passa a perguntar para que servem os saberes escolares, já que sua

pertinência social já não é tão clara.

“Surge então a necessidade de microestratégias cujo desafio consistiria em determinar quais são os saberes socialmente pertinentes dentre os saberes escolares” (TARDIF, 2010, p. 47). A partir dessa seleção, uma nova lógica – em prol do consumo – pode ser instigada entre as escolas, de modo que a lógica das instituições de ensino desloca-se da formação para o

consumo de saberes.

Nesse contexto, os alunos passam a ser vistos como consumidores de um capital de informações que possa ter utilidade em seu futuro. A função dos professores deixa de ser a

formação e passa a ser fornecer informações e instrumentos para lidar com a concorrência

presente no mercado de trabalho.

O autor demonstra que as diferentes mudanças por ele pontuadas – e aqui complementadas por outros autores – são marcadas essencialmente pela perda de controle dos professores, que cada vez menos possuem autonomia para definir os seus saberes.

De uma sociedade em que todo o processo de trabalho e formação ficava sob a responsabilidade do mestre artesão, passou-se a um esquema em que os especialistas produzem os saberes, enquanto os professores somente os executam. Com isso, as ciências se desenvolveram, trazendo à tona novas formas de trabalhar, valorizando seus conhecimentos didáticos e pedagógicos e colocando em segundo plano o que os professores sabem.

A essa condição atrelou-se o avanço da sociedade, que caminhou do estado sólido

para líquido, e viu as áreas do conhecimento se diluírem em muitas outras áreas; enquanto as

funções sociais das instituições, solidamente consolidadas na tradição, passaram a ser flexíveis, versáteis, questionáveis... Já não se havia certeza quanto a essas funções. Já não havia tanta segurança depositada sobre a tradição (ARENDT, 2009).

O desenvolvimento do mercado coroa as mudanças, sendo que a lógica mercantil e suas demandas podem adentrar e mesclar-se com as funções do ensino. Enquanto Esteve (1992) olha para essas mudanças do ponto de vista da personalidade ou até da identidade docente, estudando os novos desafios que a sociedade atual oferece ao professor; Nóvoa (1992) olha para as condições e o modo como a profissão vem se organizando e preocupa-se ao constatar uma proletarização do ensino e da profissão docente.

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Tardif (2010), por sua vez, olha para essas transformações a partir dos saberes, e traz à tona a problemática de professores que não controlam os saberes com os quais lidam. Reforça que professores e cientistas parecem estar em grupos distintos conforme uma lógica de divisão de trabalho em que a comunidade científica produz os saberes e os professores apenas

os executam com suas técnicas e seus instrumentos. “Noutras palavras, a função docente se

define em relação aos saberes, mas parece incapaz de definir um saber produzido ou controlado pelos que a exercem” (TARDIF, 2010, p. 40).

Essa relação de exterioridade, na qual os professores lidam com saberes que não foram por eles produzidos, organizados ou definidos, acaba por reforçar a desvalorização da formação profissional, gerando a ideia de que a pedagogia está atrelada a ciências abstratas produzidas pelos formadores universitários. Dessa forma, Tardif (2010) questiona:

De fato, se as relações dos professores com os saberes parecem problemáticas, como dizíamos anteriormente, não será porque essas mesmas relações sempre implicam, no fundo, uma certa distância – social, institucional, epistemológica – que os separa e os desapropria desses saberes produzidos, controlados e legitimados por outros? (p. 42).

Diante dessa situação, que envolve a função social da escola, dos professores e os próprios saberes docentes, Tardif (2010) traz à tona uma pesquisa que se os docentes não podem controlar os saberes que lhes são ensinados nas instituições de formação e lhes são cobrados pelas instituições de ensino e pela lógica do mercado, eles buscam produzir saberes

por meio dos quais compreende e domina seu próprio trabalho, sua atuação na prática.

A partir dessa perspectiva Tardif (2010) inova ao olhar e estudar os saberes docentes e é essa temática que abordamos no próximo tópico. Ao mostrar que os professores produzem

saberes como uma estratégia para superar sua condição de exterioridade em relação aos

saberes que lhes são confiados e cobrados, o autor acaba por refletir sobre o próprio sentido do ensino e sobre a natureza do trabalho docente.

Nessa perspectiva, Tardif (2010) também nos brinda ao tocar na dimensão humana do trabalho docente, que emerge a partir de sua teoria dos saberes. Dimensão que ganha força nesta pesquisa, justamente por ser uma das características marcante dos livros de autoajuda voltados a educadores: uma grande preocupação dessas obras é lidar com a afetividade e o

amor no contexto educacional (ROMÃO, 2009; SILVA, J. DE S., 2012).

Além disso, como salientado na problemática de estudo, levantamentos anteriormente realizados demonstraram que muitos professores evidenciaram que os livros de autoajuda

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oferecem respostas e contribuições à essa dimensão (ARNOSTI, 2012; SILVA, J. DE S., 2012).

Por essas razões, interessa-nos o olhar mais atento a essas questões, buscando reconhecer o que fundamenta tal dimensão e em que sentido diferentes autores contribuem com essa discussão.

Essas são questões que serão retomadas ao longo da pesquisa, principalmente ajudando-nos a refletir sobre os resultados.

O próximo capítulo, por sua vez, foca o trabalho docente, pois também é nosso interesse perceber as relações entre esse e a literatura de autoajuda. Entretanto, adentra uma dimensão que o fundamenta, mas que nem sempre é considerada pelos cursos de formação e pelas políticas públicas (ARNOSTI, 2012).

A dimensão humana do trabalho do professor será o centro das próximas discussões, pois o resgate dessa dimensão, que nem sempre é considerada nos meios formais de formação

e trabalho docente, mas é central na construção dos livros de autoajuda, se faz essencial às

reflexões pertinentes a este estudo.

Como ressaltado anteriormente, este capítulo vem para contemplar a tríade proposta anteriormente, na qual se reflete sobre as relações e as influências delineadas entre a leitura dos livros de autoajuda, a constituição da identidade do professor e a atuação no trabalho docente.

Dessa forma, o Capítulo 5 foca a compreensão da dimensão humana (ou de elementos que a fundamentam) a partir de diferentes autores, mas deposita atenção especial sobre a teoria de Maurice Tardif (2000, 2010), que parte de um estudo sobre os saberes e o trabalho docente para, a partir desse, refletir sobre a dimensão humana que o constitui.

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