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IDENTIDADES DOCENTES E RENDIMENTO ESCOLAR: DISCURSOS ASSISTENCIALISTAS PRODUZIDOS EM CURSOS DE FORMAÇÃO INICIAL

DE PROFESSORES (DÉCADA DE 1930)

Luciana Maria Viviani

Em um momento de ampliação do acesso ao ensino básico, em que determinados grupos sociais começavam a entrar na escola, os olhares se voltavam para as famílias que não teriam condições de garantir aos seus filhos a assistência material, cultural, médica e até mesmo moral que se entendia ser fundamental para a formação do país. Para Freitas (2005), a rusticidade e o arcaísmo das culturas infantis que estavam chegando ao ambiente escolar, a partir das iniciativas republicanas de universalização do ensino, não foram incorporadas como se pretendia. Com o objetivo de adequar os alunos pobres, órfãos e não brancos a parâmetros considerados urbanos e civilizados, foi proposta uma homogeneização desde o início frágil, em que a ação das novas pedagogias científicas, com o apoio de técnicas de mensuração e classificação, não efetivou. Confirmaram-se diferenças sociais que continuavam identificando esses alunos como o outro, o diferente, em relação àqueles que já cursavam o ensino elementar. Poderiam ainda, sem dúvida, serem civilizados e direcionados a algo útil, evitando a transgressão das leis: ao mundo do trabalho.

Mesmo em relação às propostas ditas renovadoras, segundo Cunha (2007), o discurso da superioridade da instituição escolar na tarefa educativa esteve presente, com o apoio de profissionais que dominavam os saberes especializados, o que acabava legitimando o direcionamento dos estudantes para a atuação social que entendiam ser adequada para a sociedade que queriam construir. Tais projetos traziam direcionamentos específicos para crianças pobres e suas famílias, consideradas incapazes em todos os sentidos, motivo pelo qual a escola deveria praticar a assistência infantil e se aproximar dessas famílias para implementar um modo de vida mais saudável e eficiente, especialmente em relação ao trabalho.

O objetivo deste estudo é justamente analisar processos de construção identitária profissional ao longo da formação inicial docente em instituições da capital de São Paulo, na década de 1930, em sua vertente assistencialista, em associação a problemas de

rendimento e eficiência escolar e também quanto a propostas de soluções baseadas em práticas escolares.

As questões assistencialistas faziam parte de projetos de grande amplitude social, em que a população brasileira e, mais especificamente, o trabalhador brasileiro, deveria tornar-se mais eficiente para permitir a civilização e o progresso do país. Na década de 1930, a importância da instituição escolar como mediadora de projetos de normalização social foi liderada pelo grupo de educadores conhecidos como reformadores do ensino, que se associaram, em vários estados do país, e em diversos níveis de aproximação, a outros importantes intelectuais da época – médicos, engenheiros, bacharéis e literatos, para formular e implementar seus ideais.

Em vertente de pensamento liberal, a instituição escolar seria considerada uma sociedade em miniatura em que o ensino tido como democrático, praticado com base na liberdade do estudante e tendo em vista a formação de indivíduos livres seria suficiente para criar uma sociedade democrática (AZANHA, 1987). Dentro dessa mesma linha de argumentação, a formação de alunos eficientes em suas funções escolares poderia ser transladada para a eficiência social que se pretendia implementar.

A eficiência escolar se associava à racionalização de tempos e espaços produzida pelos processos de ampliação da escolarização e graduação do ensino, instaurados desde o início do século XX, quando a classificação dos alunos e a ordenação dos fluxos escolares tomaram grande importância. Isso se deu por meio de várias medidas, incluindo a aplicação regular de exames como base para aprovações e reprovações escolares, bem como para a indicação do momento de mudança de série ou da conclusão do curso (CORREIA; GALLEGO, 2004). Mais tarde, a partir dos anos de 1920, no âmbito dos projetos ditos renovadores, os processos mais rígidos de disciplinamento cederam lugar à moldagem de corpos e mentes que se adaptassem ao ideal de sociedade requerida, moldada pelo ritmo da modernidade, da técnica e da máquina (CARVALHO, 1997).

O discurso da eficiência dos alunos referia-se ao seu trabalho escolar, dentro de parâmetros renovados, com bons níveis de frequência e rendimento, de maneira a evitar problemas de repetência e de evasão, produzidos pela organização seriada do sistema escolar. A repetência foi alvo de muitas considerações por parte da intelectualidade de todo o país, na produção de discursos que buscavam explicações e soluções para o baixo rendimento do ensino, especialmente em relação ao ensino rural e ao período de alfabetização, em que a reprovação alcançava índices ainda maiores.

Os processos de formação docente desempenharam uma função primordial na elaboração de projetos sociais considerados renovadores, envolvendo a construção de uma nova identidade docente, voltada à formação de indivíduos mais aptos para o trabalho e para a vida considerada moderna e civilizada. Precisariam ter bem claro os parâmetros a serem trabalhados com os alunos da escola elementar em suas práticas docentes. Mais do que isso, deveriam ser os próprios docentes os representantes dos novos padrões culturais a serem difundidos socialmente.

Essa nova identidade, criada pelo discurso oficial, pode ser pensada, segundo Lawn (2000), como uma forma de governo dos professores, em que discursos são mobilizados pelo Estado para organizar mudanças e criar formas complexas de controle, perfazendo parte importante do discurso oficial, em propostas educativas, relatórios, artigos, descrições, etc.

No entanto, não é possível pensar que propostas educacionais oficiais possam, por si sós, modificar o cotidiano escolar ou as identidades docentes. Nesse sentido, é importante ampliar a noção de identidade docente, abordada por Lawn como possibilidade gestora, para considerar também os processos de apreensão e mesmo de rejeição, em vários níveis, desses ideais, por parte de instituições educacionais, docentes e de outros profissionais da educação.

Para Hall (2011), as identidades sociais são consideradas não como fixas, permanentes ou essenciais, mas como identidades que se formam e se transformam continuamente, até mesmo de maneira contraditória, em interação com diferentes momentos históricos e diversos sistemas de significação social e representação cultural. Apesar de reconhecer que o processo de formação identitária do professor ocorre em inúmeras e complexas instâncias sociais e individuais, parte-se do pressuposto que o período de formação inicial é muito importante nesse processo.

Ponto central dessa nova identidade docente, o discurso da eficiência do professor, veiculado desde os cursos de formação inicial, apontava para a apreensão de técnicas ditas inovadoras de ensino, como a aplicação de testes psicológicos, o trabalho com classes homogêneas e o desenvolvimento do ensino ativo em várias de suas dimensões (trabalho com projetos, criação de museus e laboratórios, visitas externas, etc). Outra característica dessa nova identidade, igualmente relevante, voltava-se para a importância das práticas de assistência social, direcionadas para as crianças e suas famílias, que poderiam garantir a frequência e rendimento dos alunos das famílias pobres, recém-chegados ao sistema

escolar, e ainda instruir e ajustar o modo de vida de suas famílias a um modelo considerado ideal.

Neste estudo serão enfocadas algumas formas de produção das identidades docentes em suas vertentes assistencialistas, ao longo de sua formação inicial, tomando como base duas instituições em que a necessidade de implantar práticas renovadas circulava com grande potência, especialmente na área de biologia educacional, conforme será abordado a seguir.

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