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Fabrício Aparecido Bueno

INTRODUÇÃO

No presente capítulo tenho como proposta articular uma discussão acerca das táticas de controle e regulação da função docente implicadas na acentuada profusão de discursos psicológicos no campo educacional contemporâneo. O argumento central ao qual pretendo oferecer subsídios a partir da presente exposição é o de que o ímpeto psicologizante na produção de enunciados referentes à educação escolar tem produzido, como um de seus efeitos mais contundentes, a (des)legitimação da autoridade docente frente ao ato educativo, ao mesmo tempo em que vem se constituindo como um importante viés de normalização das práticas pedagógicas.

As discursividades psicológicas e os aparatos técnicos por elas disponibilizados contam na contemporaneidade com um expressivo prestígio entre profissionais da área da educação, o que vem sendo revelado tanto por estudos que se dedicam a problematizar os processos de medicalização e psicologização do campo educacional (MACHADO, 2003; BAUTHENEY, 2011; COLLARES; MOYSÉS, 2011; SOUZA, 2011) quanto por indicadores que colocam o Brasil entre os maiores consumidores mundiais de psicotrópicos, nomeadamente de substâncias indicadas para o “tratamento” de disfunções cujas expressões apresentam implicações diretas sobre o trabalho escolar, como a Dislexia e o TDAH (ONU, 2016).

Convém lembrar que o caráter reducionista dos discursos que restringem as explicações sobre as causas das dificuldades escolares a problemas de ordem psicológica, mediante a utilização de referenciais patologizantes em relação à criança em situação de fracasso escolar, vem sendo sistematicamente problematizado no Brasil no decorrer das últimas décadas, sobretudo a partir dos importantes trabalhos de Maria Helena Souza Patto (1984, 1990) na década de 1980. As contundentes críticas realizadas por essa autora acerca das práticas excludentes e segregatórias às quais os discursos psicológicos hegemônicos vinham historicamente se prestando inauguram um profícuo campo de

estudos e debates no âmbito do qual as ciências psicológicas passam a ser interrogadas em termos dos condicionamentos sociais, políticos e ideológicos que permeiam a produção de seus enunciados, tornando patente, portanto, a fragilidade das alegações em favor da neutralidade dos discursos por elas produzidos.

Não obstante o desenvolvimento desse importante referencial crítico, a ênfase psicologizante na explicação dos problemas escolares não vem demonstrando sinais de enfraquecimento. A frequência com que noções, termos e conceitos provenientes das disciplinas psicológicas comparecem no discurso de profissionais e especialistas da educação, quase sempre aliados a uma obstinada busca por diagnósticos psíquicos que pretensamente explicariam dificuldades nos processos de escolarização, assim como a prática, por parte de muitos educadores, de encaminharem crianças e adolescentes com dificuldades escolares a profissionais e serviços de saúde mental, ainda se apresentam como situações bastante recorrentes no cenário educacional contemporâneo.

Neste trabalho busco chamar a atenção para a proficuidade de se encarar essa proeminente ênfase psicologizante no campo educacional sob a ótica de suas implicações para a regulação do ofício docente. Como tem demonstrado alguns estudos que vêm se dedicando a analisar historicamente a circulação dos discursos psicológicos no campo educacional brasileiro (ASSUNÇÃO, 2007; CARVALHO, 2009, LIMA, 2016, 2017), desde o final do século XIX e, sobretudo, a partir das décadas iniciais do século XX, a psicologia tem sido considerada uma disciplina cujos saberes produzidos são indispensáveis de serem conhecidos pelos educadores, dada a sua pretensa capacidade de oferecer um conhecimento científico sobre o aluno e, em decorrência, de propiciar bases mais seguras para as práticas pedagógicas. Esse conhecimento científico do aluno tornou- se reconhecido como fundamental para a superação de problemas ligados ao baixo rendimento escolar, na medida em que possibilitaria tanto uma melhor alocação institucional dos alunos quanto um melhor ajustamento do ensino às potencialidades “naturais” de cada educando. Tal importância conferida à psicologia outorga a essa disciplina, e por extensão aos seus especialistas, uma posição de relativa autoridade na regulação da produção de enunciados acerca dos processos de aprendizagem, do desenvolvimento psicológico, dos desempenhos escolares e, por conseguinte, das próprias condições de exercício do ofício docente.

Como recurso mobilizador para essa discussão, optei por percorrer analiticamente as publicações da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) – um importante

periódico oficial de circulação de ideias e conhecimentos especializados no campo educacional brasileiro, publicado desde 1944 até os dias atuais – no intuito de examinar o modo como os discursos psicológicos circularam por meio dessa publicação. Foram analisados os números publicados entre os anos de 1944 (ano em que foi publicado o primeiro número da Revista) e 2000. Ao todo foram examinados 198 números da RBEP, concentrando-se a análise prioritariamente na leitura de textos (artigos, entrevistas, conferências, textos de imprensa republicados pela RBEP, notas de pesquisa e indicações bibliográficas) nos quais fosse possível identificar enunciações a respeito da funcionalidade das expertises psicológicas para o ofício docente.

A discussão aqui empreendida apoia-se nos pressupostos analíticos desenvolvidos por Nikolas Rose sobre o processo de psicologização da vida social, bem como nas interlocuções deste autor com os escritos de Michel Foucault acerca das noções de governamentalidade e liberalismo. Parto premissa de que a evidenciação dos efeitos normatizantes subjacentes aos discursos psicológicos sobre a educação escolar tende a subsidiar a profissão docente no desenvolvimento de uma postura mais crítica e proativa em relação aos saberes especializados, condição essencial para que possa reconquistar um lugar de protagonismo no campo do saber.

PRÁTICAS E MECANISMOS DE REGULAÇÃO NO ÂMBITO DAS FORMAS

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