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Identificar o exercício do poder nos factos e práticas do quotidiano prisional 64 5 Identificar as artes de fazer nos factos e práticas do quotidiano prisional

6. E, por último, através das imagens artísticas elaboradas no curso de Artes

Criativas pelos reclusos, do elencar do conjunto de fragmentos (parcelas de realidade), dos elementos compositivos e dos códigos artísticos presentes nos desenhos e do cruzamento e conceptualização destes desenhos com outros trabalhos artísticos contemporâneos, de autores variados, procurar as ressonâncias da experiência prisional dos reclusos presentes na representação do espaço e apresentar uma sugestão de leitura. Isto é, dar a ver uma escrita-

63 Idem, ibidem. 64 FOUCAULT, 2007. 65 DE CERTEAU, 1994.

25 visual66 cuja colectânea se apresenta a ser descodificada pelo olhar atento e construtor do intérprete, à imagem da proposta de Benjamim (2007) nas constelações.

Dada a complexidade do objecto de estudo, a metodologia utilizada para a compreensão dos fenómenos foi, obviamente, hermenêutica.67 Este modelo serviu adequadamente as necessidades e adaptou-se às dificuldades que foram sendo sentidas ao longo do percurso desta investigação, na especificidade de cada uma das suas partes, no manuseio dos dados, na sua heterogeneidade e na participação dos diversos actores. Enquanto estudo de caso, com carácter exploratório, procurou-se adoptar um plano aberto e flexível. Um plano adaptado às necessidades de um estudo qualitativo e dependente de um processo claramente indutivo. Os progressos e a pesquisa foram-se adaptando à aprendizagem e à experiência68 através de soluções diversas de interpretação e de caracterização do objecto e da realidade.69

A partir de uma questão inicial que aceita a realidade prisional na sua forma múltipla, procedeu-se à descoberta fazendo novos elementos emergir. Esta estrutura básica permitiu que o estudo avançasse, na óptica de que o conhecimento não é algo acabado. O conhecimento é antes um processo com avanços e recuos, certezas e

66 BENJAMIN, 2007 p. 1148. 67

“A terapêutica política que Hermes traz aos mortais é uma hermeneia: é uma disciplina interpretativa, um saber hermenêutico que admite que o intérprete seja capaz de aceder aos sentimentos da dikè, ou seja, da justiça, e, portanto da injustiça, e ao sentimento da vergonha, ou da indignidade, ou seja, também da honra e da dignidade […].” Bernard Stiegler, “Literal Natives, Analog Natives, Digital Natives”, A República por Vir, Arte, Política e Pensamento para o Século XXI, Conferências no âmbito da Exposição Res Publica, 1910 e 2010 Face a Face. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, pp. 137- 138.

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“Consiste no exame intensivo, tanto em amplitude como em profundidade, e utilizando todas as técnicas disponíveis, de uma amostra particular, seleccionada de acordo com determinado objectivo […], de um fenómeno social, ordenando os dados resultantes por forma a preservar o carácter unitário da amostra, tudo isto com a finalidade última de obter uma ampla compreensão do fenómeno na sua totalidade” (João Ferreira de Almeida. A investigação nas Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença Portugal, 1982, p. 87). Possui duas funções, que na prática podem ou não coexistir e reforçar-se mutuamente: “Uma função heurística: a análise de conteúdo enriquece a tentativa exploratória, aumenta a propensão à descoberta […] – uma função de administração de prova. Hipóteses sob a forma de questões ou de afirmações provisórias servindo de directrizes apelarão para o método de análise sistemática para serem verificadas no sentido de uma confirmação ou de uma infirmação.” Cf. Laurence Bardin. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 30.

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26 hesitações.70 De acordo com a ideia defendida por Menga Lüdke “o(s) estudo(s) de caso enfatizam a interpretação em contexto”.71 Neles predominam os dados descritivos, numa procura de atender ao maior número possível de elementos presentes, atento ao processo que, no seu modo complexo, aqui sobressai face ao produto.

De forma complementar, a análise documental ganha igualmente grande relevância. Procedeu-se ao levantamento de fontes principais em bibliotecas e arquivos, de artigos de jornais e revistas, documentos legislativos, regulamentos e relatórios prisionais relativos aos séculos XIX e XX, bem como de outros mais actuais. Recorreu-se também a material fotográfico e gráfico, o que ajudou a suprir as dificuldades de obtenção das diferentes informações relacionadas com o edifício, devido ao facto de ser uma instituição que cumpre zelar pela segurança. Tal fica patente, por exemplo, na quase total ausência de desenhos projectuais rigorosos disponíveis e na resposta da antiga Direcção-Geral dos Serviços Prisionais ao pedido de autorização de consulta de documentos: o pedido para consultar documentação onde constassem plantas, cortes e alçados foi indeferido por razões de segurança.72 Por este motivo, a dimensionalização do complexo prisional deve ser estabelecida de modo relacional e por aproximação, entre os desenhos representados e a percepção e a expressão oral e escrita dessas noções e realidades, pelos reclusos e com respeito à coreografia e topografia do corpo e do seu movimento.73 Também, e por isso, as já mencionadas visitas aos estabelecimentos prisionais nacionais e estrangeiros fortaleceram, in loco, a observação e o sentir das particularidades dos diferentes espaços e quotidianos prisionais.

70 Partilha-se a ideia de Gonçalo M. Tavares a respeito dos processos envolvidos no conhecimento: “Este termo hesitante, parece-nos fundamental. Um avanço hesitante: eis um método; avançar não em linha recta mas numa espécie de linha exaltada, que se entusiasma, que vai atrás de uma certa intensidade sentida; avanço que não tem um trajecto definido, mas sim um trajecto pressentido, trajecto que é constantemente posto em causa; quem avança hesita porque não quer saber o sítio para onde vai – se o soubesse já, para que caminharia ele? Que pode ainda descobrir quem conhece já o destino? Hesitar é um efeito da acção de descobrir; só não hesita quem já descobriu, quem já colocou um ponto final n seu processo de investigação. ´As minhas dúvidas formam um sistema’, escreveu Wittgenstein.” TAVARES, 2013, pp. 26-27.

71 Menga Lüdke. Pesquisa em Educação: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU, 1986, p. 18. 72

Ofício nº 260/DSPRE, de 28.09.2009, da DGSP. Assunto: Investigação Académica para doutoramento em História e Teoria da Arquitectura, pela Universidade Nova de Lisboa.

73 Ideia presente no trabalho de Maria Filomena Molder, Rebuçados Venezianos. Lisboa: Relógio d’Água, 2016.

27 Este trabalho procurou ainda articular saberes de diferentes áreas, combinando o modelo descritivo e explicativo, daí partindo-se para a análise dos fenómenos circunscritos à prisão concreta, o Estabelecimento Prisional de Monsanto, não do geral para o particular, do macro para o micro, num sentido descendente, mas antes a partir do nível capilar das microestruturas74 e seguindo

[…] duas modalidades do agir: o agir no exterior – [em que] os acontecimentos recebem os teus gestos; e o agir no interior – a tua visão do mundo, [em que] a tua interpretação dos acontecimentos recebe os teus gestos; [de onde] a verdade surgirá da combinação exacta entre duas velocidades: a do observador e a da coisa observada.75

Por último, houve a necessidade de cruzar de forma interdisciplinar os diferentes saberes, no sentido de encontrar pontos de equilíbrio entre a História, a Arquitectura, a Psicologia da Arquitectura e as necessárias Ciências da Educação.76 Uma multidisciplinariedade e uma transversalidade do saber que, finalmente, permitisse estabelecer na tese generalizações, interpretações e a compreensão dos diferentes valores e significados aqui presentes, só possível a partir da História da Arte Contemporânea.

Neste sentido, a História da Arte Contemporânea permitiu-se ser o terreno da cesura,77 e da brecha criativa que concilia e organiza as engrenagens, ou seja, os diferentes saberes:78 teóricos e práticos, da manipulação do espaço e do corpo, das

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FOUCAULT, 2007.

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TAVARES, 2013, [O corpo no mundo. As circunstâncias] pp. 44 e 49.

76 Na obra de Henrique Muga (2005), Psicologia da Arquitectura, o autor aborda a experiência psicológica da arquitectura, analisando os vários processos psicológicos através dos quais o Homem, individual e socialmente considerado, interage com o ambiente arquitectónico.

77 “Grande é a influência […] do conceito elaborado por Hölderlin de cesura, correspondente à interrupção, no interior de uma obra, das composições e representações artísticas para trazer à tona o seu próprio processo de composição, os próprios mecanismos por trás de tais representações, mobilizados pelo artista para lhes dar vida – nas pinturas barrocas, por exemplo, observa-se tal procedimento na factura das obras, na qual as pinceladas do artista se dão a ver.” Letícia O. M. Botelho, “Walter Benjamin e as Imagens da História. Possibilidades de uma crítica social a partir da arte”.

Pólemos, vol. 1, nãoº 1, Maio 2012, p. 108.

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“O lugar da verdade é o lugar do inexprimível, do que aparece no discurso como cesura: «No inexprimível manifesta-se a sublime violência da verdade.» Não podendo, obviamente, ser expresso, o inexprimível aparece como uma brecha ou rachadura; destruindo a falsa totalidade do discurso e estabelecendo o seu momento de verdade.” Walter Benjamin. Les affinités electives de Goethe apud Imaculada Kangussu. “Desvios: citação, montagem, mosaicos”. UFOP, Academia Edu, 2018, p. 8. Acessível em: http://www.academia.edu/858092/DESVIOS_CITACAO_MONTAGEM_MOSAICO (consultado em Fevereiro de 2018).

28 artes (pictórica, conceptual e performativa) e do quotidiano, tendo em vista o explorar das possibilidades e do exercício de “multiplicar as possibilidades de verdade, [de] multiplicar as analogias, as explicações possíveis e as ligações”.79

A adequação ao grupo de trabalho foi também fundamental. Para tal, teve-se em conta o facto de a investigadora integrar o grupo de trabalho, embora com um papel distinto, o de professora. À professora-investigadora coube encontrar o domínio de estratégias e o uso dos recursos, no imediato das situações, sobretudo no modo de conduzir o programa de trabalho, as aulas e as conversas, por vezes num registo de entrevistas não estruturadas. Essas estratégias e soluções adoptadas revelaram-se também importantes no modo de orientar os trabalhos e os exercícios (na ausência da ideia de competição e concorrência), com vista a um melhor relacionamento com os reclusos. Somente seguindo estes preceitos e práticas metodológicas se conseguiu construir uma base relacional, no contexto da instituição, entre os reclusos e o corpus de análise (os desenhos).

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[A ESCALA DO EDIFÍCIO]

Capítulo I. O princípio panóptico