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A IMPORTÂNCIA DA FRANQUEZA E DA AUSÊNCIA DE AMBIGUIDADE Como o relato contado atrás pretende mostrar, a clareza e a ausência de

Capítulo V. O curso de Artes Criativas no Estabelecimento Prisional de Monsanto

V. 2. A organização da actividade, os procedimentos e as restrições O curso de Artes Criativas de 2007/2008, pelo vínculo à Escola Secundária

4) A IMPORTÂNCIA DA FRANQUEZA E DA AUSÊNCIA DE AMBIGUIDADE Como o relato contado atrás pretende mostrar, a clareza e a ausência de

ambiguidade em todas as decisões foi sempre uma parte valiosa nas relações interpessoais. A franqueza das respostas e a não criação de falsas expectativas em meio prisional privilegiam, indirectamente, a segurança. Adoptou-se esta atitude praticamente em todos os momentos em que se esteve com os reclusos a desenvolver uma qualquer actividade. Enquanto alguém que vem de fora da prisão, e enquanto agente do Poder, o professor está na prisão com um propósito, com a missão de trabalhar directamente com o recluso. O professor sabe que está a ser testado pelos reclusos, relutantes a qualquer exercício de poder. A certeza do posicionamento a

175 adoptar é essencial, mas não é linear, nem isento de dúvidas. No entanto, todo o esforço para obter coerência e evitar hesitações é meritório, mas isso não pode ser impedimento a que se tente perceber “o ponto de vista do outro”. Assim, os reclusos várias vezes se questionaram sobre a justiça, sobre a razão de ser de determinadas decisões tomadas pela professora ou por outros agentes de poder, mostrando legitimamente a sua indignação ou testando posições ou pedindo garantias, pois, para eles, a corrente expressão “amanhã!” significa na maioria das vezes “nunca”.448

Resumindo, as aulas decorriam em sala à porta trancada, com videovigilância e campainha, nem sempre operacional. Na eventualidade de qualquer necessidade tocava-se à campainha ou batia-se à porta e aguardava-se a vinda de alguém. Dentro da sala de aula permanecia a professora com os oito reclusos. Relativamente aos procedimentos adoptados em aula, enumeram-se os seguintes:

1. No início e no final de cada actividade era necessário verificar o material, as suas quantidades, registar as potenciais falhas e preencher o registo de presenças dos reclusos.

2. Na preparação de cada actividade era importante seleccionar todo os materiais pretendidos, organizando-os e dispondo-os de forma acessível e de utilização comum para que a aula decorresse sem interrupções nem litígios. Este procedimento era importante, caso fosse necessário chamar os guardas prisionais por qualquer motivo que exigisse a saída da sala. Isso verificava-se, por exemplo, aquando da necessidade de se ir buscar água para trabalhos com tinta ou barro. Obter a água obrigava ao acompanhamento de guardas prisionais até à instalação sanitária mais próxima e que outros guardas permanecessem com o grupo, que não poderia ficar desacompanhado na sala.

C) Era necessário gerir o tempo de acolhimento dos reclusos, em cada sessão, até ser possível ter reunido todo o grupo e se poder dar início à aula. O Acolhimento

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Situação idêntica é descrita por Primo Levi em Se isto é um Homem (2002). Nas suas memórias da experiência concentracionária, rimo. Levi descreve regras básicas da rotina do lager: “Aqui é assim. Sabem como se diz «nunca» na gíria do campo? «Morgen Früh», amanhã de manhã” (Primo Levi. Se isto

é um Homem. Porto: Público, Colecção Mil Folhas, 2002, p. 148) ou ainda: “Ne pas chercher a

compendre.” Esta última, sobre a irreflexão e arbitrariedade das decisões e o absurdo das situações vividas. (Idem, ibidem, p. 155.)

176 revelou-se uma parte muito significativa e imprescindível para o sucesso do curso. Nesse momento era importante conseguir captar a atenção do grupo, procurar a sua disponibilidade e empatia. Era necessário permitir o uso de alguns minutos para que os alunos se cumprimentassem, conseguindo, logo de seguida, reverter a dispersão. Propôs-se fazê-lo com recurso a brincadeiras simples de boas-vindas ou ao relato de algo pessoal ou focado na vida exterior à prisão, sem expor dados pessoais ou íntimos.

A prática intencional, no início e final de cada sessão, do gesto (físico) do cumprimento, foi uma estratégia de aproximação e de controlo emocional sobre o grupo. Optou-se pelo aperto de mão, executado quase sem excepção, em detrimento do simples “bom dia” oral. Esse acolhimento com “alegria” permitiu um determinado posicionamento face ao grupo e demostrou ser uma estratégia pessoal positiva para desconstruir receios.

Por último, gerir o acolhimento foi também perceber que a aula, que se iniciava entre as 10h00 e as 10h30 tinha, para os reclusos, um significado particular. A maioria dos reclusos levantava-se e arranjava-se, recebia o pequeno-almoço na cela, porventura sem ter trocado uma só palavra com alguém. Só saíam da cela com a finalidade de se dirigirem à aula de Artes Criativas. O último contacto com outros reclusos teria sido, muito provavelmente, no dia anterior, catorze a dezasseis horas antes de ali chegarem. Por isso, chegar à aula era o primeiro momento de socialização após várias horas em silêncio e a sós na cela. Quando reunido o grupo era preciso “deixá-los ser” e dar-lhes alguns momentos de convívio. O tempo dos cumprimentos e das “graçolas”, dos avisos e dos sub-avisos, da consolidação do grupo, das alianças e dos afectos. Muitos vinham para estarem em grupo, descurando as artes. Vinham para integrarem o grupo e estabelecerem relação com algum recluso em particular ou com o grupo. O desafio nesses momentos iniciais consistia em saber-se “desaparecer” e, no momento devido, saber-se “regressar” agarrando o grupo e dando início à aula. De 2008 a 2011 houve uma única sessão em que os reclusos pediram que não se trabalhasse e que pudessem ficar a conversar entre todos, o que foi aceite.

D) Logo depois, era o momento de explicar o trabalho planificado e o que se pretendia realizar, explicando os objectivos de cada exercício. Era importante

177 reconhecer, nas feições e na linguagem de cada recluso, a resposta recebida – de aceitação ou recusa do desafio –, bem como reconhecer as dificuldades sentidas face à proposta feita. A exposição do trabalho que se pretendia realizar em cada aula era, naturalmente, um momento adverso pela resistência do recluso ou perante as expectativas de cada um face ao que eventualmente pudesse ser novo (técnicas ou conteúdos) ou difícil.

E) O trabalho proposto, ou com ligeiras adaptações, era desenvolvido de modo a acompanhar os diferentes ritmos e necessidades dos vários reclusos, desconstruindo-se “ideias pré-concebidas”, simplificando objectivos, dando sugestões através de metáforas ou de jogos.

F) Após cada exercício feito, reflectia-se em conjunto sobre as dificuldades sentidas.

Perto do final da aula, era aceite a colaboração dos reclusos para limpar e arrumar o material, de modo a definir-se a relação de confiança entre as partes. Esta colaboração poderia corresponder a um momento melindroso na interacção entre professora e reclusos devido à agitação e à movimentação gerada.

G) Ao longo do tempo percebeu-se que, no final da aula, era um recurso valioso lançar o desafio para a próximo encontro de Artes Criativas, propondo metas individuais e de grupo. Procedia-se novamente à verificação e contabilização do material, diagnosticando possíveis falhas; procedia-se ao agradecimento da presença e do contributo de cada um, de modo incentivar os reclusos. Entre cada encontro decorria uma semana. No caso de interrupções lectivas por férias ou doença, a ausência era maior. Através das palavras dos reclusos foi dito à professora que, nessas alturas, o tempo (psicológico) decorria de forma distinta para a professora e para os alunos. No regresso, os reclusos manifestavam sempre agrado por serem retomadas as aulas e felicitavam a professora pelo seu regresso.

H) Enquanto medida de segurança, era necessário impedir que os reclusos passassem, entre si, papéis ou objectos ou que levassem consigo algum material da sala de aula para a cela.

178 I) Com a saída dos reclusos da aula, era importante garantir a limpeza do material e a manutenção da sala. Esse período correspondente ao final da aula podia durar quinze a vinte minutos, visto ser este o tempo que os guardas tomavam a acompanhar cada um dos participantes.

2.3. O espaço sala de aula

Propõe-se agora referir as condições e características do espaço oferecido pela sala para o desenvolvimento da aula de Artes Criativas.

Nas zonas habitadas por reclusos – os dois anéis da prisão –, os compartimentos não têm plantas regulares. Não são rectangulares nem rectos. Devido à estrutura do edifício, a largura da sala de aula era exígua, não excedendo os três metros. E de comprimento possuía pouco mais de quatro metros, numa área total inferior a vinte metros quadrados. Do ponto de vista físico, a sala apresentava três paredes cegas. A quarta parede tinha uma porta em ferro, blindada, e um vão com uma janela com vidros duplos, ambos dando para o corredor central do anel interior da prisão. Era a partir desse corredor e através dessa janela que se exercia pontualmente a vigilância directa dos guardas prisionais durante a actividade.

Devido às reduzidas dimensões da sala, as possibilidades de organização do espaço eram limitadas. Era obrigatório trancar os materiais de artes dentro do cacifo existente na sala.

Para acomodar os reclusos e desenvolver a actividade foram disponibilizados no total cinco mesas e nove cadeiras, uma estante e dois cacifos. Numa primeira abordagem, o modo como se entendeu dever distribuir os reclusos na sala de aula449 privilegiou a separação entre a área dos reclusos, com as mesas juntas, e a área da professora, com a respectiva mesa de trabalho. Tal como esperado, os reclusos trabalharam e cooperaram sempre bem, lado a lado, em torno de uma grande mesa, resultado da reunião das quatro mesas disponibilizadas. Todavia, a prática obrigou a

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179 rever a situação da disposição da mesa de trabalho da professora. O necessário acompanhamento dos reclusos na realização dos trabalhos obrigou a considerar uma de duas hipóteses: ou a professora permanecia no seu posto de trabalho tendo os reclusos de ir junto dela para esclarecerem as suas dúvidas – obrigando a movimentações que poderiam gerar perturbação e aumentar a insegurança – ou, inversamente, caberia à professora e só a ela deslocar-se para fazer as observações e acompanhar o grupo, permitindo que os reclusos não interrompessem a prática. Optou-se pela segunda hipótese. Para a implementação desta medida foi, no entanto, importante considerar em que sitio e a que distância dos reclusos deveria a professora estar, de forma a poder assegurar a qualidade do seu trabalho e observar o desempenho dos reclusos sem comprometer a sua própria segurança.

Foi desta experiência de contenção e quase claustrofobia, ao permanecer-se cento e vinte minutos dentro de uma sala sem ventilação (por vezes o exaustor não era ligado), com calor ou com frio, com ausência de luz directa, obrigados à restrição de movimentos no espaço, trancados nesse mesmo espaço e sujeitos a controlo e a vigilância (directa e indirecta), que emergiu a inquietação que serviria de base à questão fundamental de como seria viver em meio prisional. Como é a percepção do espaço em virtude destas vivências? E em que medida a História da Arte e a Arquitectura enquanto disciplinas, com os seus instrumentos de análise, poderiam contribuir para dar essa resposta e para o conhecimento dos quotidianos e das experiências prisionais, em complemento à prática da investigação de campo.

Deve referir-se, a propósito, um episódio algo humorístico que foi presenciado. Trata-se de uma experiência passada dentro da sala de aula num momento em que se pôde observar os guardas prisionais no corredor. Os guardas vigiavam os alunos reclusos e a professora e riam-se (do grupo?). Dentro da sala de aula, conjecturava-se sobre o que estariam os guardas a ver que fosse tão significativamente distinto daquilo que o grupo via, ou seja, indivíduos sujeitos a um espaço idêntico (em meio prisional) com igual falta de condições e de conforto, naquele corredor escuro, fechados e sem luz ou ventilação directa. Depois da aula, os alunos reclusos e a professora, reflectindo sobre a ocorrência, consideraram que tanto os reclusos quanto os guardas estavam sujeitos e expostos, do ponto de vista físico e

180 ambiental, a experiências e vivências muito similares. A diferença fundamental residia na autonomia e no poder diferenciado de cada um.