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3.1 Ideologia gerencialista, trabalho e sofrimento

3.1.1 A ideologia e o gerencialismo

3.1.1.2 A ideologia gerencialista

A partir dos séculos 18 e 19, a administração das pequenas firmas e empresas cresceu consideravelmente. A gestão instalou-se como uma forma de conhecimento especializado para as indústrias. No decorrer do século 20, com a administração científica nos Estados Unidos, a administração das fábricas transformou-se em gestão. Posteriormente, esta adotou algumas ideologias, como, “competição”, “eficiência”, “livre mercado” e “necessidade de ganhar dinheiro”, transformando-se em gerencialismo, perspectiva que hoje afeta toda a sociedade (KLIKAUER, 2013b). Portanto, gestão e gerencialismo não são movimentos que historicamente foram concebidos ao mesmo tempo. A gestão surge antes do gerencialismo (KLIKAUER, 2013a).

A soma da gestão e da ideologia, assim como sua expansão, corresponde ao que pode se chamar de “gerencialismo”. O “ismo” que se acrescentou à gestão representa uma doutrina composta de várias crenças e práticas ideológicas comuns. Entretanto, para transformar a gestão em uma ideologia, o gerencialismo, primeiramente, precisa possuir uma ideologia própria (KLIKAUER, 2013b).

As políticas de reformas voltadas para o mercado, como, thatcherismo, racionalismo econômico e neoliberalismo, cresceram alinhadas com o gerencialismo. Entretanto, o gerencialismo e neoliberalismo não são sinônimos, apesar de apresentarem várias semelhanças. Em suma, o gerencialismo não está preocupado com as questões do livre mercado do neoliberalismo. Seus princípios norteadores são a gestão e as técnicas de gestão utilizadas nas empresas. Contudo, o gerencialismo está acima da soma das técnicas de gestão, sendo que para seu entendimento é preciso considerar as influências sociais, econômicas e políticas. Já o neoliberalismo pode ser entendido a partir do programa político descrito por Von Hayer7, que é centrado na

desregulação e conquista de novos mercados, na desregulação do mercado de trabalho e das relações industriais, na redução do Estado de Bem-Estar Social, na privatização, na diminuição da regulação estatal e no enfraquecimento dos sindicatos (KLIKAUER, 2013a).

Em termos da Reforma do Estado, foi no período do governo da primeira-ministra Margaret Thatcher (1979-1990) que a Inglaterra viveu o mais agressivo e claro regime político de que se tem lembrança na história recente. O thatcherismo pode ser considerado um exemplo interessante do poder restrito da consciência na vida social. Tinha por objetivo não apenas provocar mudanças nos cenários político e econômico da Inglaterra, como também fazer com que houvesse uma transformação nos valores ideológicos (EAGLETON, 1997).

O governo de Thatcher era alimentado por uma combinação inconstante de ideologia neoconservadora e teoria econômica hayekiana e agia em resposta à crise da economia e da política ou seja, a recessão econômica e o esgotamento de um governo trabalhista anterior

7 Friedrich August Von Hayek nasceu em 1989, na Áustria. Construiu, ao longo da vida, uma formação

interdisciplinar, tornando-se um dos mais importantes estudiosos da perspectiva ultraliberal. Acreditava que o mercado era a única forma de organização para as sociedades contemporâneas. Foi um crítico contundente do socialismo e um teórico e ideológico do neoliberalismo (GANEM, 2012).

(NEWMAN; CLARK, 2012). Desse modo, o thatcherismo conseguiu tornar um conjunto de crenças e sentimentos em um projeto ideológico (KATWALA, 2013).

Apesar da baixa aprovação popular na Grã-Bretanha, Thatcher conseguiu manter-se no poder devido às peculiaridades do sistema eleitoral da Inglaterra. Desde o começo de seu mandato, ela diminuiu o poder do trabalho organizado, promovendo, de modo deliberado, o desemprego da população. Dessa maneira, desintegrou temporariamente um movimento dos trabalhadores que tinha uma tradição militante (EAGLETON, 1997).

A “Era Thatcher” foi marcada por uma mudança de paradigma na forma de estruturar e organizar os serviços públicos, tornando os pressupostos dessa modificação quase que axiomáticos. Essas reformulações, anteriormente discutidas, foram retratadas como a passagem da tradicional regulação hierárquica para formas organizacionais pós-burocrática (PAINTER, 1999), ou seja, gerencialista. Mesmo após a saída do poder, a sombra de Thatcher acompanhou tanto os governos conservadores quanto os trabalhistas posteriores ao seu mandato. Nenhum deles foi capaz de afastar-se das consequências e contradições do thatcherismo (KATWALA, 2013).

De acordo com Newman e Clark (2012), as propostas gerencialista da Grã-Bretanha estavam embasadas na crença ideológica em relação ao poder da gestão, na busca de alterações profundas e, também, na maior disseminação do poder do Estado para um grupo de servidores públicos empoderados:

Como estratégia de reconstrução do Estado, a dispersão serviu para realinhar relações de poder de maneiras complexas. Disciplinou o exercício da forma de poder tanto profissional como burocrática ao introduzir a organização como o lócus primário de agenciamento e responsabilidade: tanto profissionais como gestores ficaram sujeitos às exigências de missões organizacionais, estratégias comerciais e normas de desempenho. Na medida em que os vínculos com o Estado eram (seletivamente) afrouxados, as organizações estavam cada vez mais situadas em um campo competitivo onde sobrevivência e sucesso dependiam de sua capacidade para assegurar financiamento e atrair clientes, recentemente franqueada com algumas formas de escolha entre múltiplos prestadores. E a dispersão também operava como uma lógica interna nas organizações, pois eram divididas em unidades de negócios, cada uma com seu próprio orçamento e metas de desempenho, introduzindo elementos novos de competição intraorganizacional (NEWMAN; CLARKE, 2012, p. 363).

Dessa maneira, “o gerencialismo como ideologia foi essencial para o processo de reforma das décadas de 1980 e 1990 no Reino Unido porque traduzia um ethos de negócios do setor privado no Estado e no setor público”. Portanto, ao se falar de Estado gerencial, o gerencialismo situa- se como uma formação cultural e um conjunto diferente de ideologias e práticas que constituíam uma das bases dessa nova convenção política que emergia (NEWMAN, CLARKE, 2012, p. 358).

Newman e Clark (2012) ressaltam que o gerencialismo pode ser entendido como uma ideologia e a gerencialização como um processo de transformação. Ambos, quando combinados, levam à formação do Estado Gerencial. Em relação ao gerencialismo, os autores enxergam o conceito de três formas distintas: como ideologia; como estrutura; e como uma série de discursos superpostos. Segundo os autores, o gerencialismo é classificado como uma ideologia na medida em que legitima direitos ao poder, principalmente no que tange ao direito de gerir, elaborados como fundamentais para aumentar a eficiência dos objetivos organizacionais e sociais.

Já a gerencialização pode ser vista a partir de três processos: estabelecimento de autoridade gerencial e de estruturas calculistas; criação de formas de “gerir”; e tipos de gestores. Desse modo, primeiramente, a gerencialização é um processo de estabelecimento de autoridade gerencial a respeito de recursos corporativos, como, materiais, humanos ou simbólicos, e tomada de decisão corporativa. Além disso, é um processo de estabelecimento de estruturas calculistas de gerencialismo; ou seja, na definição dos termos e nas condições de tomada de decisão. Nesse sentido, busca absorver essas estruturas como o formato de conhecimento que direciona os parâmetros de relacionamentos, internos e externos. A gerencialização também é um processo de criação de formas de “gerir” e tipos de gestores. No Reino Unido, por exemplo, os três principais estilos identificados durante a reestruturação dos serviços públicos nas duas últimas décadas do século XX foram “os gestores reais”, “os gestores híbridos8” e uma

“consciência gerencial dispersa” (NEWMAN; CLARK, 2012).

Para Gaulejac (2007), o gerencialismo pode ser considerado uma estrutura calculista, devido à organização do conhecimento a partir de metas organizacionais e dos meios para atingi-las,

8 De acordo com Newman e Clark (2012, p. 360) “híbrido é uma maneira conveniente de descrever os complexos

processos de incorporação de profissionais trabalhadores a funções de gerenciamento, caracteristicamente por meio de processo de devolução e delegação”.

sendo estruturado ao redor do cálculo interno de eficiência e de cálculo externo de posicionamento competitivo em suas relações com o mercado. O autor acrescenta que o gerencialismo também possui uma série de discursos superpostos, que associam proposições distintas e, por vezes, conflitantes, em relação ao modo de conduzir e àquilo que necessita ser conduzido. Dessa maneira, diversos modos de gerencialismo dão ênfase à liderança, à estratégia e à qualidade, entre outros, e elaboram um campo complexo e variável de conhecimento gerencial.

Gaulejac (2007, p. 36) entende que, a partir de uma apresentação objetiva, operatória e prática, o gerencialismo pode ser considerado uma ideologia que exprime as atividades dos trabalhadores por meio de indicadores de desempenhos, e estes desempenhos em despesas ou em benefícios. Desse modo, “indo buscar do lado das ciências exatas uma cientificidade que elas não puderam conquistar por si mesmas, as ciências da gestão servem, definitivamente, de suporte para o poder gerencialista”, legitimando os ideais em torno da objetividade, do utilitarismo, do funcionalismo e do positivismo. Também é construída uma representação do trabalhador como um recurso que está a serviço da organização, colaborando para sua instrumentalização.

Portanto, o gerencialismo é uma combinação de regras racionais, prescrições exatas, elaborados instrumentos de medida e técnicas de avaliação objetivas, quanto de regras irracionais, prescrições que se afastam do real, painéis de bordo que não podem ser aplicáveis e julgamentos arbitrários (GAULEJAC, 2007). Desse modo, atrás da racionalidade fria e “objetiva” dos números encontra-se um projeto obcecado pelo quantitativo, que leva os homens a perderam o senso da medida. A isso Newman e Clark (2012) chamam de “estrutura calculista”.

A ideologia gerencialista está embasada em pressupostos, postulados, crenças, hipóteses e métodos, dos quais é necessário verificar a validade. “O paradigma objetivista dá um verniz de cientificidade à ‘ciência gerencial’” (GAULEJAC, 2007, p. 66). Ele se declina de acordo com os princípios que delineiam a organização como um universo funcional, a partir de procedimentos elaborados sobre o modelo experimental, marcado por uma compreensão utilitarista da ação e de um entendimento economista das pessoas. “Por trás dos instrumentos,

dos procedimentos, dos dispositivos de informação e de comunicação encontram-se em ação certa visão do mundo e um sistema de crenças” (GAULEJAC, 2007, p. 65).

“A adesão de fachada à ideologia gerencialista dissimula também uma submissão pragmática a suas exigências, condição mínima para esperar conservar seu lugar” (GAULEJAC, 2007, p. 140). A liberdade de pensamento, a autonomia e o direito de colocar-se em posição contrária são negados no gerencialismo. Este demonstra ser cada vez mais capaz de satisfazer as necessidades das pessoas pela forma como essas são administradas (KLIKAUER, 2013a). Nota-se também que nas organizações a noção de “liberdade” é marcada por meios instituídos que não são nada democráticos. Destarte, todas as formas de liberdade são realizadas para mostrar-se como perversa, ilusória, utópica e irrealista. As ideias contrárias ao gerencialismo e os comportamentos não conformistas são vistos como perturbadores e controversos, impedindo o pensamento crítico de entrar na organização (KLIKAUER, 2013a).

Aqueles que trabalham sobre a lógica do gerencialismo e que, muitas vezes, estão condicionados aos cargos gerenciais ocupados engajam-se no processo de “ideologização”. Assim, transformam o conhecimento gerencial em ideologia pura. Eles são empregados para fazer com que as irracionalidades pareçam racionalidades na forma da análise de custo benefícios, custos de transação e técnicas de redução de custos, entre outros. Ou seja, são levados a aceitar os valores gerenciais como valores “tradicionais”. O gerencialismo modifica também o entendimento de padrão de vida, lazer e política. Por conseguinte, há um aumento de patologias, devido à intensificação do trabalho e da perseguição (KLIKAUER, 2013a).

Na gestão de pessoas das organizações, nota-se um aprisionamento nos programas e nas outras cercaduras por essa produzida, como, gerenciamento da produtividade, salário de acordo com a produtividade, indicadores de desempenho, BSC e avaliação de desempenho. “No lado obscuro do gerencialismo, há aqueles cuja vida é o inferno. Eles são mantidos na linha pela brutalidade manipuladora-ideológica do gerencialismo que revive e simultaneamente ultrapassa as práticas medievais e modernas” (KLIKAUER, 2013a, p. 47, tradução nossa).

Na administração pública, o gerencialismo tem a capacidade de provocar mudanças no ambiente organizacional, trazendo um conjunto negativo de efeitos psicossociológicos, tais como, estresse, adoecimento, insatisfação, baixa motivação, medo e ressentimento. Ainda, pode levar ao aumento da competitividade, da desconfiança, das tensões e de formas de violência simbólica, entre outros (DIEFENBACH, 2009).

De acordo com Klikauer (2013a), o gerencialismo combina quatro aspectos. a) fortalecimento do egoísmo e do individualismo; b) crítica em relação às questões sociais, como, educação, saúde e previdência, além das próprias instituições públicas e investimentos em infraestrutura; c) significantes diferenças em termos salariais de acordo com o grupo, sexo e região dos trabalhadores; e d) forte ataque midiático às entidades que representam os trabalhadores. Diante das considerações levantadas acima, prossegue-se com o debate a partir de um dos espaços sociais no qual os sujeitos entram em confronto com essa forma ideológica de gestão: o trabalho. Assim, no tópico seguinte, discutem-se a importância do trabalho para o sujeito os sentidos que vêm sendo atribuídos à prática laboral, focando a discussão nas mudanças advindas da sociedade capitalista.