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3.1 Ideologia gerencialista, trabalho e sofrimento

3.1.3 O sofrimento e os espaços de discussões no trabalho

Considerando o entrelaçamento entre ideologia gerencialista, e sofrimento no trabalho no contexto organizacional, bem como o silenciamento causado por estratégias típicas do gerencialismo, nesse item discute-se essa questão e enfatiza-se como o fomento de espaços de discussão são fundamentais para a saúde psíquica dos trabalhadores. A partir desse ponto, tece- se uma análise sobre as formas de lidar com o sofrimento no trabalho e os mecanismos de resistência construídos pelos sujeitos no âmbito laboral.

Segundo Mundim (2011, p. 25), a falta de diálogo no trabalho prejudica o desenvolvimento do sujeito e a atuação nas formas de organização dos espaços que esse participa. Essa “ausência cristaliza a lógica dominante de grupos de poder, transformando-se assim em um espaço social que não possibilita mudanças”. Entretanto, no caso das organizações as chefias, enquanto sujeitos dialógicos, podem produzir sentidos na identidade dos trabalhadores. O diálogo também incita a reflexão, que leva a mudanças e a rupturas, assim como levanta contradições. De acordo com Mundim (2011), é necessário ter um espaço para a promoção de diálogo entre os colegas de trabalho, pois estes fazem parte de um processo em que a qualidade da comunicação é importante. A criação de um espaço dialógico é fundamental para a construção desse processo, visto que, conforme lembra Karam (2003), o processo de formação da identidade na esfera pública por meio do trabalho pode se tornar frágil quando ocorre a privação da palavra.

Diante desse contexto de sofrimento, Karam (2003) afirma que é fundamental que o local de trabalho seja um espaço de discussão, visto que é nele que o sujeito se consolida. Ou seja, nele o sujeito pode entender que a razão de ser de cada um no mundo não está restrito apenas à subjetividade. Há também uma intersubjetividade, onde a singularidade exerce papel decisivo para o coletivo. Ou seja:

Esse movimento, sem dúvida, exige uma concepção ética do sofrimento que permita articular, de forma harmônica e discordante, os singulares e o plural – movimento a ter lugar na instância do nós, lá onde se confrontam os valores do espaço íntimo e doméstico com os valores do espaço público ou político. Ao contribuir para a construção social através do trabalho da palavra, o sujeito recebe uma retribuição

moral/simbólica que lhe possibilita um nome próprio, um reconhecimento por parte do outro, do diferente/semelhante (seus pares, seus superiores ou subordinados hierárquicos, a sociedade), um espaço de jogo construtor da alteridade/identidade. O descarte da palavra de uns por parte de outros bloqueia essa transação, esse comércio entre o eu-tu (esfera doméstica) e o nós (esfera pública) (KARAM, 2003, p. 472). A privação da palavra acontece devido ao constrangimento, às ameaças e ao medo como ferramentas gerenciais. Consequentemente, os trabalhadores podem procurar um permanente estado de equilíbrio entre o cumprimento das atividades e tarefas e o impedimento de demonstração dos seus sofrimentos. Essa manifestação depende do curso da palavra no interior de organização, que está relacionada à realização de cada trabalhador e à ligação de uns com outros (KARAM, 2003). Assim, o sofrimento emerge quando a relação do sujeito com a organização do trabalho torna-se bloqueada (DEJOURS, 2013b).

De acordo com Dejours e Abdoucheli (1990), o sofrimento também conduz ao que ele chama de “estratégias defensivas”, as quais são organizadas e geridas coletivamente. As estratégias de defesa coletivas possibilitam ao sujeito maior estabilidade em seu espaço privado, visto que esse não seria capaz de assegurar uma luta contra o sofrimento organizacional utilizando somente suas defesas individuais. Nesse sentido, nem sempre o sofrimento é mostrado de forma direta, sendo, muitas vezes elaborados, a partir de processos defensivos, que estão presentes de forma inconscientes nos sujeitos (MARTINS, 2011). Tais questões perpassam o sujeito do seguinte modo, segundo Dejours e Abdoucheli (1990):

 É por meio das estratégias defensivas que os trabalhadores podem minimizar a percepção que possuem das restrições.

 De vítimas passivas, os trabalhadores assumem uma posição ativa e uma atitude provocativa.

 As estratégias coletivas de defesa são muito difundidas, mas não há garantia que essas estão presentes em todas as situações do trabalho.

 Prazer e sofrimento são experiências subjetivas. Ou seja, cada pessoa, em sua singularidade, é portadora de uma história.

 As estratégias defensivas funcionam como regras. Existem entre os trabalhadores certo consenso e acordos.

 As estratégias de defesa coletivas concentram-se na percepção da realidade pela transformação e eufemização.

 Juntamente com a estratégia de defesa coletiva, o sujeito tenta harmonizar suas defesas individuais, procurando certa coerência com sua singularidade.

 As estratégias de defesa desempenham papel essencial na estruturação do trabalho coletivo, na coesão e em sua estabilização.

 Existe uma possibilidade de as defesas coletivas mascararem o sofrimento dentro da organização.

O conceito de estratégia de defesa surgiu a partir da percepção de que os trabalhadores não são passivos diante das demandas e das pressões das organizações. Apesar do sofrimento, há uma liberdade, ainda que limitada, na elaboração de sistemas defensivos individuais e coletivos na luta contra o adoecimento. Desse modo, sofrimento e defesa sempre estão relacionados no campo do trabalho. Os recursos utilizados nessa defesa buscam mediar, enfrentar e negar o sofrimento (MEDEIROS; MARTINS; MENDES, 2017).

De acordo com Martins (2011, p. 70), embora a ruptura com o sofrimento seja subjetiva e esteja relacionada com a história de cada um, “quando o setor excluído do pensamento é comum ao grupo em que está inserido o sujeito pode substituir um pensamento pessoal por ideologias e estratégias defensivas construídas coletivamente”. As estratégias defensivas modificam o funcionamento psíquico do sujeito, estando presente não apenas no trabalho, mas aderindo também à vida privada. Dejours (2013b) afirma que quando cada grupo estabelece suas ideologias defensivas estas colaboram na sedimentação das relações de trabalho presente e para solidificar o individualismo.

Há também o risco de alienação nas estratégias defensivas, visto que estas podem tornar-se valiosas para os trabalhadores na luta contra o estresse psicológico do trabalho. Para elas convergem todos os esforços para manter e superar tudo que possa desestabilizar. Assim, como as ameaças contra a estratégia defensiva são tão combatidas, a própria estratégia pode tornar- se um objetivo em si mesmo. A situação subjetiva acaba se mostrando, como se o sofrimento fosse decorrente do enfraquecimento da estratégia defensiva, e não como uma consequência do trabalho. E se, de início, a estratégia defensiva buscava a defesa contra o sofrimento, depois

pode tornar-se uma promessa de felicidade e de defesa da ideologia. Além disso, ao invés de buscar uma nova organização menos destrutiva, a ideologia defensiva somente leva em consideração as lutas de poder. Entretanto, essas questões não resolvem os problemas patogênicos das coações organizacionais (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1990).

Quando ocorre uma passagem da estratégia coletiva de defesa para uma ideologia defensiva, há uma transição da ordem da realidade para a ordem do imaginário. Desse modo, ignora-se a ordem simbólica, cuja a articulação é necessária para a perlaboração dos objetivos da ação da organização dentro de um espaço público, entrando no domínio da alienação. Ademais, no trabalho o sujeito está sempre lutando contra seu adoecimento, pela conservação de sua identidade e por uma contribuição para a construção social (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1990).

A falta de diálogo e o sofrimento são perspectivas teóricas que podem ajudar a compreender o gerencialismo nas organizações públicas. Entretanto, em termos de subjetividade, outros modos de reflexão e ação podem ser construídos pelos sujeitos em seus momentos de criatividade. À vista disso, procura-se estabelecer no próximo capítulo um diálogo com a teoria da subjetividade, para entender o emaranhando de sentidos e práticas que um sujeito é capaz de organizar em relação ao seu trabalho e em confronto com outras instâncias de sua vida.