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O individual e o social na constituição da subjetividade

3.2 A teoria da subjetividade em uma perspectiva histórico-cultural

3.2.1 O individual e o social na constituição da subjetividade

Nesta seção, discute-se como o sujeito, na produção da subjetividade, é influenciado pelo social e o influencia em um processo permanente. O intuito deste tópico é romper com a dicotomia externo e individual, que permeia os estudos hegemônicos. Também se discorre sobre como a ideologia se estabelece nesse processo de construção da subjetividade, demonstrando que ela não se estabelece como uma estrutura determinante.

González Rey (2005a) lembra que as subjetividades social e individual integram um mesmo sistema, sendo que as contestações entre esses dois níveis de organização tornam-se produções de sentido, atuando na construção, ao mesmo tempo, dos sujeitos e da sociedade, em um processo que não tem fim. Ou seja, cada pessoa ao mesmo tempo determina e é determinado em seu processo de socialização (ARAÚJO; SACHUK, 2007). Assim, “negar um desses momentos em favor de outro torna-se um obstáculo a que ambos se desenvolvam e está na base das crises violentas enfrentadas por esses sistemas” (GONZÁLEZ REY, 2005a, p. 26).

Ou seja, o individual e o social são dois momentos fundamentais na composição da subjetividade. O primeiro é determinado socialmente. No entanto, este determinismo não é linear e externo e não parte do social para o subjetivo. O que ocorre é um processo de constituição, que associa ao mesmo tempo a subjetividade social e a individual. Assim, o

indivíduo constitui a subjetividade social e também é constituído nela (GONZÁLEZ REY, 2011). Pode-se, dessa maneira, dizer que o sujeito reflete o mundo, mas que também o mundo reflete o sujeito. Portanto, as pessoas são simultaneamente produtos e produtores (MORIN, 2011).

De acordo com González Rey (2005a), o pensamento no Ocidente tem se preocupado para as dicotomias, sendo que, dessa maneira, o mundo é visto como externo e independente em relação aos indivíduos, como se o primeiro não fizesse parte do segundo e como se estes não estivessem implicados em seu próprio funcionamento de maneira arraigada.

Superar a fragmentação anteriormente referida não é apenas um ato de boa vontade, sendo necessária, portanto, uma construção teórica que lhe dê subsídio e que lhe permita superar uma dicotomia a qual, de forma implícita ou explícita, continua exercendo muita força na psicologia atual: a dicotomia individual-social. É no sentido de superá-la que o conceito de subjetividade social está orientado. A subjetividade, nessa perspectiva, não se reduz aos indivíduos; os diferentes espaços sociais em que as pessoas atuam estão carregados de uma subjetividade social que tem existência supra-individual e se perpetua nas produções simbólicas compartilhadas sobre as quais se organizam as relações dos indivíduos dentro desses espaços. Essas produções simbólicas, por sua vez, se alimentam de sentidos subjetivos configurados no percurso das experiências diferenciadas dos sujeitos que vivem em tais espaços (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. VII).

É importante observar também o fato da exclusão histórica na dimensão individual da subjetividade em relação à dimensão social. Essa vem sendo considerada como de influência exclusiva e linear das variáveis externas. Em outras palavras, somente pelas variáveis sociais. Assim, as expressões particulares de cada indivíduo são afastadas das tentativas de se compreender a subjetividade, não se atentando para o fato de que (OLIVEIRA, 2015):

A dimensão histórica se encontra não apenas na subjetividade individual, isolada em um mundo objetivo e de constituição física, mas se estabelece na síntese entre processos que se entrelaçam com outra subjetividade, agora de caráter social. No entanto, a subjetividade social e a subjetividade individual não são processos separados que podem ser restritos a variáveis mecânicas de causa e efeito, mas devem ser vistos como momentos distintos de um mesmo processo (OLIVEIRA, 2015, p. 4). Essa visão possibilita “enxergar, de maneira distinta, profunda, recursiva e contraditória, a articulação ente o social e o individual no psiquismo humano” (MARTÍNEZ, 2005, p. 15). O conceito de subjetividade de González Rey visa, portanto, romper com a dicotomia entre o social e o individual, que vem influenciando a construção do pensamento psicológico

(SILVEIRA; PALASSI, 2011). Desse modo, mesmo quando não se consegue compreender a subjetividade individual e a social de forma separada, a tensão e a pressão recíproca entre ambas possibilitam refletir dialeticamente na relação entre esses dois conceitos (SILVEIRA; PALASSI; SILVA, 2013).

Portanto, a “subjetividade não é um produto da cultura, é ela mesma constitutiva da cultura, não pode ser considerada resultado subjetivo de processos objetivos externos a ela, mas expressão objetiva de uma realidade subjetivada” (GONZÁLEZ REY, 2011, p. 28-29). Nota-se, que em todas as instituições os indivíduos comungam dentro do mesmo espaço social determinados códigos explícitos e implícitos, sendo que estes transformam-se em verdades socialmente aceitas e somente são modificadas por meio do agir crítico e diferenciado dos sujeitos que convivem nessa realidade (GONZÁLEZ REY, 2005a). Ou seja:

Os aspectos compartilhados nos espaços sociais em que produzimos sentidos subjetivos em nossa história passam a constituir-se, em seus próprios atributos físicos e ambientais, em sentidos subjetivos que mobilizam nossa produção emocional e simbólica e que se integram à complexidade de elementos psicológicos constituintes de nossa identidade. Esta corresponde àquela produção de sentidos subjetivos que se associa ao “eu sou” e ao “nós somos”, na qual nos podemos encontrar de múltiplas formas diferentes. Quando compartilhamos cotidianamente os aspectos definidores de nossa identidade, esta se naturaliza e não passa pela vivência consciente, porém, ao nos distanciarmos da dimensão objetiva desses espaços, eles tomam uma conotação subjetiva que nos permite apreciá-los e senti-los conscientemente (GONZÁLEZ REY, 2005a, p. 27).

A subjetividade social é repleta de vários princípios e normas, que, por vezes, restringem as pessoas e leva grande parte delas a se subordinarem. Mas há aquelas que, como sujeitos de sua ação, conseguem elaborar alternativas que entram em confronto com o socialmente aceito, tensão essa que ocorre um uma área concreta da vida. Com isso, o tornar-se sujeito está relacionado a manifestar na ação configurações subjetivas singulares, ser capaz de decidir e também de admitir a responsabilidade pela ação (GONZÁLEZ REY, 2007), portanto:

Ser sujeito é construir-se e constituir-se como capaz de autonomia numa relação tal que as coisas e os demais não se ofereçam como determinadores do que somos e fazemos, mas como o campo no qual o que somos e fazemos pode ter a capacidade aumentada ou diminuída, segundo nos submetamos ou não à força e à violência ou sejamos agentes delas (CHAUÍ, 1984).

A elaboração da subjetividade individual ultrapassa as particularidades do sujeito, posto que contempla as peculiaridades dos âmbitos social e cultural e, também, as relações que nele são constituídas (AMARAL, 2011). Há uma relação complexa entre o social e o individual, fazendo com que o sujeito busque tanto adaptar-se ao social quanto segregá-lo e traduzi-lo a partir da reflexão, da emoção e da ação. É nessa complexa relação que o sujeito estabelece a subjetividade individual e, concomitantemente, pressiona a subjetividade social, buscando modificá-la (SILVEIRA; PALASSI; SILVA, 2013).

Desse modo, a subjetividade individual é perpassada de forma constante pela subjetividade social. Esta, “por sua vez, aparece constituída de forma diferenciada em cada um dos sujeitos, o que remete à reflexão de que condições objetivas de existência, meramente, não são suficientes para a busca da compreensão das sociedades humanas” (SILVEIRA; PALASSI; SILVA, 2013, p. 55).

Logo, a subjetividade não se interioriza. Ela é constituída a partir do processo em que o social age como instância subjetiva e, não como instância objetiva sem subjetividade. As situações sociais objetivas se manifestam com sentido subjetivo nas emoções e processos significativos que se formam nos protagonistas dessas ocasiões (GONZÁLEZ REY, 2011). Assim, o sujeito sempre está em um processo de reflexão em relação à subjetividade social e à individual; enfim, e à própria subjetividade e à dos outros sujeitos. A partir dessa análise, compartilhada com outras pessoas, o sujeito trabalha de modo intenso na tensão entre o individual e o social (SILVEIRA; PALASSI, 2011).

É impossível analisar a subjetividade de um espaço social separada da subjetividade dos sujeitos que a ela estão integrados. Também é difícil entender a constituição da subjetividade individual sem avaliar a subjetividade dos espaços sociais que participam de sua produção (MARTÍNEZ, 2005). Nesse sentido, destaca-se a impossibilidade de visualizar os espaços sociais de forma separada. A subjetividade produzida no espaço de trabalho, por exemplo, pode influenciar e também ser influenciada pelos vários espaços que integram o tecido social, tais como, a família, a religião e os estudos (SILVEIRA, PALASSI; SILVA, 2013).

Dessa maneira, não se pode colocar de um lado o indivíduo e de outro a sociedade ou, mesmo, fazer tal divisão entre espécie e indivíduos. Também não faz sentido enxergar de um lado uma organização por meio do diagrama, do programa de produção e dos estudos de mercado e do outro os conflitos de relações humanas, de pessoal, de relações públicas. Esses processos não são inseparáveis ou interdependentes (MORIN, 2011).

Por conseguinte, ao considerar as subjetividades social e individual, González Rey possibilita o estudo da subjetividade nas organizações, visto que “esta simultaneidade da produção subjetiva, estabelece a vida organizacional não somente como campo de controle da subjetividade, mas também como esfera de produção da subjetividade” (PAULA; PALASSI, 2007, p. 215).

Observa-se que os espaços sociais não possuem vida independente dos sujeitos que neles estão envolvidos. No entanto, produzem formas de subjetivação que se estabelecem nas distintas ações partilhadas pelos sujeitos, transformando-se, com sentidos subjetivos diferentes, na parte da subjetividade individual daqueles que compartilham esses espaços (GONZÁLEZ REY, 2005a).

Durante a produção de sentidos subjetivos, ocorre a naturalização dos espaços e dos fenômenos socialmente construídos. Desse modo, quando os fenômenos da subjetividade social são institucionalizados e naturalizados tornam-se realidades que se antecipam e atribuem aos protagonistas das relações concretas que estes possuem lugar em um espaço social. Nota-se, entretanto, que a constituição da subjetividade social não é decorrente apenas de “uma intencionalidade determinada dos agentes sociais, institucionalizados ou não, mas também dos complexos de estruturas organizacionais e instituições, relações, tradições e normas instituídas historicamente na sociedade” (HERNANDEZ, 2005, p. 87).

Destaca-se, também, que o aspecto subjetivo dos fenômenos sociais não é definido pelo ato instantâneo do social sobre a população. As reações subjetivas, sociais e individuais são compostas pela história e são manifestadas perante os fatos sociais atuais somente como um dos modos prováveis de expressão da complicada trama desse momento singular (GONZÁLEZ REY, 2011).

Sublinha-se aqui que a ideologia é uma das formas de expressão social que possibilitam a perpetuação e legitimidade de processos institucionais dominantes. A ideologia como manifestação da subjetividade na vida social possui intensa mítica e apoia-se em conjuntos de crenças de enorme valor afetivo (GONZÁLEZ REY; MARTÍNEZ, 2017a). Assim:

A ideologia é uma produção subjetiva que permite a integração social ao redor de um culto, um mito, num projeto social. É parte dos processos de subjetivação de eventos sociais e, por natureza, só acontece por intermédio da ação coletiva. O problema é que, no início, nesses projetos, os indivíduos participam, em grande medida, pelos seus valores, pelas suas decisões individuais, mas à medida que esses projetos se institucionalização, vão exigindo [...] que o pensamento perca rigor para aumentar sua eficácia, a qual sempre é avaliada pelo que os representantes da ideologia, frequentemente figuras mitificadas, demandam (GONZÁLEZ REY; MARTÍNEZ, 2017a, n.p.).

Logo, em termos de ideologia, o que distingue a visão desses estudiosos dos demais é a capacidade do sujeito de romper com os processos ideológicos a partir da elaboração reflexiva de sentidos. Assim, a ideologia é configurada pelo sujeito, não sendo apenas algo externo ao indivíduo. Portanto, esta não é estruturante, apesar da existência de formas hegemônicas de subjetividade social (GONZÁLEZ REY; MARTÍNEZ, 2017a).

Os projetos que estão apoiados em ideologias exercem forte invasão e repressão sobre a individualidade, com o intuito de contestá-la, em busca de objetivos sociais imaginários e irrealizáveis, mas que possuem enorme importância para aqueles que o integram, configurando- se de variados modos na subjetividade individual dos atores. Nesse sentido, em termos ideológicos, destaca-se que a racionalidade humana, entendida como produção subjetiva, está subordinada aos imperativos de lucro e poder que direcionam o mundo na atualidade (GONZÁLEZ REY; MARTÍNEZ, 2017a).

Assim, a subjetividade individual é estabelecida em um indivíduo que age como sujeito em virtude de sua condição subjetiva. A constituição subjetiva presente é a síntese subjetivada da história pessoal do sujeito e também do social. Nesta também são elaborados outros sentidos e significados, sendo que, ao serem estabelecidas subjetivamente, transformam-se em constituintes de novos momentos de sua construção subjetiva (GONZÁLEZ REY, 2011).

Para González Rey (2005a), romper com a perspectiva de que a realidade é um sistema externo e entender as práticas dos indivíduos como constitutivas e constituintes dos campos estudados possibilita estabelecer um espaço da realidade como conhecimento a partir das práticas científicas, visto que estas são criadoras de campos de realidade. Nesses campos, a ilimitada complexidade da realidade pode multiplicar-se em distintas formas de compreensão. No entanto, embora seja possível visualizar a realidade, isso ocorre dentro de certos limites devido aos próprios meios utilizados pelos estudiosos. Assim, é necessário afastar a ideia racionalista de que é possível conhecer o mundo de modo completo e progressivo por meio da razão humana. De outro lado, segundo o autor, a racionalidade é a maneira que o pesquisador possui para construir inteligibilidade em sistemas, que devido a suas complexidades, não podem ser apreendidos pelos meios usados para conhecê-los.

Assim, a partir do entendimento de que a subjetividade individual está em constante interação com a subjetividade social é que esta tese foi construída, observando a interlocução entre a subjetividade individual e o espaço social do trabalho. Lembra-se que buscar a compreensão dos sentidos do trabalho para aqueles que estão inseridos nas organizações atuais e suas implicações na composição do sujeito é um desafio fundamental não somente para os administradores, mas também para aqueles que possuem alguma relação com as organizações, especialmente quando se nota que as mudanças no mundo do trabalho são paradoxais (ARAÚJO; SACHUK, 2007).

Neste ínterim, corrobora-se com González Rey e Martínez (2017a, n.p.) quando sustenta que “a subjetividade social não é um suprassistema que atua como determinante de suas múltiplas configurações parciais singulares”. Essa é o modo pelo qual as diversas configurações de espaços sociais e ordens distintas se organizam subjetivamente em cada um dos espaços sociais, em seus processos constituintes e nas pessoas que estão interagindo nesses espaços.