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A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e sua vivência no imaginário

No documento VIÇOSA - MINAS GERAIS 2022 (páginas 82-86)

2.3 Quais bens patrimonializar? Uma análise da escolha dos bens tombados em Piranga. 72

2.3.2 A Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e sua vivência no imaginário

Além do processo acerca do Santuário do Bom Jesus de Matozinhos, nesse mesmo documento também é citada a antiga Igreja da Matriz de Piranga, sobre a qual Cliveland Maciel também solicitava a proteção. Em resposta ao seu pedido, o chefe do 3º distrito do DPHAN, o senhor Sylvio de Vasconcellos, afirmou que:

Embora grande a igreja, reminiscência de sua primitiva forma, sucessivas reformas a prejudicaram a nosso ver irremediavelmente. Em sua feição atual não se recomenda ao tombamento, a menos que se intente considerável obra de restauração, baseada em informes antigos que não possuímos ou que se deseje preservar alguns de seus elementos, como os retábulos.

(VASCONCELLOS, 1959, fls. 2)36.

A efetuação do tombamento da Igreja da Matriz seria o meio de proteção que ela precisava para se manter, mas, como ela não recebeu esta proteção em nenhuma esfera, nem mesmo na municipal, infelizmente foi demolida na década de 1960. Segundo Adriano Lana (2007), moradores da cidade relatam que o pároco da época, o Padre Antônio Teixeira Filho,

36 Carta do Chefe do 3º Distrito da DPHAN direcionada ao Senhor Diretor do IPHAN – Rio, datada de 19 de outubro de 1959, Belo Horizonte. Encontra-se no Protocolo – DPHAN, Nº 1303/59. Of. nº 831

propôs a demolição e a construção de uma nova matriz. Segundo os relatos, ele alegava que a cobertura e as paredes estavam instáveis e que uma das torres apresentava trincas que ameaçavam cair a qualquer momento. Conforme o autor, o arcebispo da Arquidiocese de Mariana, Dom Oscar de Oliveira, concordara com a demolição e, também, inicialmente não houve qualquer manifestação da população.

De acordo com as documentações concedidas pelo IPHAN, consta que em 1999 o DEPROT (Departamento de Proteção) solicitou 46 processos de tombamento que haviam sido sobrestados no DID (Diretoria de Identificação e Documentação). Dentre estes, um deles era o da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Piranga. Em resposta foi informado como havia sido aberto o processo, como ele ocorreu e que permaneceu sobrestado. Neste ponto, o interessante é que, por meio dessa solicitação, o IPHAN se informou acerca de como estava o processo e localizou um artigo de 1972, em um jornal de Belo Horizonte, o qual informava a demolição da Igreja Matriz de Piranga em 1966. Nessa toada, o IPHAN recorreu ao processo relativo ao Conjunto Arquitetonico e Paisagístico do Santuário de Bom Jesus de Matozinhos em busca de confirmar essa informação sobre a demolição da Igreja Matriz. Em um parecer do Conselheiro Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, de 15 de agosto de 1995, ele relatou que:

Apesar do pedido do Dr. Cleveland Maciel, cidadão de Piranga que escreveu ao Dr. Rodrigo Mello Franco de Andrade, em 1959, nesse sentido, o processo aberto naquele ano não foi adiante. Nele acrescentava-se recomendação sobre a Igreja Matriz de Piranga, infelizmente demolida no inicio dos anos 70 para fazer fortuna de antiquários e ensejar a construção de nova matriz, em forma de „disco-voador‟. Portanto,(...) o bem imóvel de que trata o processo 601-T-59A não mais existe, desconhecendo-se outrossim o paradeiro de seu acervo móvel. Em vista do exposto, opinamos pelo arquivamento do processo (Parecer DEPROT/IPHAN/RJ/Nº61/69, 1999, fls.

2).

Mas se a Igreja não existe mais, por que citá-la aqui? Mesmo não existindo fisicamente, a Matriz faz parte da história local e do imaginário da população. De tempos em tempos ela é relembrada e novamente vira motivo de questionamentos para os moradores, que se perguntam por que deixaram que a sua destruição fosse efetuada. Diversos são os motivos apontados: a história oficial alega ser pelo péssimo estado em que a igreja se encontrava, e outros alegam que seria influência da Arquidiocese de Mariana para que não houvesse uma igreja que ofuscasse os templos de Mariana. Ainda, outros alegam que seria em um interesse comercial, visto que grande parte dos objetos da Matriz foi vendida. Contudo, se analisarmos o período em que a demolição foi efetuada e no qual a nova matriz foi construída, podemos

relacioná-lo com a ideia do modernismo37, de trazer algo mais moderno para a cidade, como foi o caso da nova Igreja Matriz da cidade, que é totalmente descaracterizada em relação às outras construções à sua volta.

A respeito do evento da demolição, pensar que os moradores assistiram a demolição de braços cruzados é um caminho errôneo. As pesquisas apontam que um tardio abaixo-assinado foi feito pela população contra a demolição e que foi dirigido ao Bispo Dom Oscar de Oliveira. Entretanto, a reclamatória não teve efeito, visto que o próprio pároco só teve conhecimento do abaixo-assinado muito tempo depois. Essa informação consta em um registro no Livro de Tombo da Paróquia de Piranga38 e nesse mesmo registro o Padre Antônio realiza uma declaração sobre o ocorrido. Parte do acervo da antiga Matriz foi para o acervo do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Maria e, segundo os moradores, outras partes teriam sido vendidas para colecionadores e antiquários, nacionais e internacionais. Já o conjunto de imagens encontra-se na Capela de Nossa Senhora do Rosário.

Figura 4 - Antiga Igreja Matriz da cidade de Piranga em duas perspectivas

Fonte: José Marcondes Borges (03/09/1949). Disponível em: https://atom.ufv.br/index.php/jmb-286

A antiga Igreja Matriz de Piranga é um objeto interessante de ser analisado tanto pela sua história, por ser considerada uma das mais antigas de Minas Gerais, quanto pelo seu processo de desaparecimento físico e reaparecimento constante no imaginário popular.

Sempre que o assunto patrimônio é abordado na cidade, a Igreja é relembrada por muitos piranguenses, demonstrando que o sentimento de perda ainda hoje é muito forte na população.

37 Segundo o arquiteto Lúcio Costa (1995), o modernismo trouxe uma nova concepção de estética e técnicas de construção, na qual os materiais, como o concreto armado, o aço e o vidro eram peças relevantes nas edificações da época.

38 Livro de Tombo da Paróquia de Piranga, MG. 1968, p. 80-81. Assentamento realizado por Pe. Antônio Teixeira Filho (LANA, 2007, p.59).

Por mais que as pessoas não compreendam de fato o termo patrimônio, elas compreendem o sentimento de identidade, se sentem pertencentes a essa história e sentem que parte dela foi retirada de si e que hoje só pode existir por meio dos trabalhos de memória, por meio do ver fotos e de lembranças ou vivências que tiveram com aquele bem. Aqueles que nem chegaram a conhecê-la ou a ter experiências com essa igreja somente podem experimentar de sua existência e significado por meio da memória coletiva.

Esse ocorrido permite refletir sobre a noção de perda e sobre as discussões existentes acerca desse sentimento de perda. Nos discursos patrimoniais brasileiros, alguns intelectuais defendem a ideia de que o patrimônio é percebido a partir de uma condição de possível perda, e que seria função das instituições de preservação resgatar esse patrimônio de um suposto processo de desaparecimento. Nessa ótica, esses discursos relatam o patrimônio como um dado individualizado, “um objeto que pode ser nitidamente identificado, definido juridicamente e, portanto, preservado, embora sob a perene condição de possível perda de sua forma original ou de sua autenticidade” (GONÇALVES, 2015, p. 216). Esses intelectuais percebem o presente como uma fonte de destruição do passado e que essa destruição seria o campo de possibilidades para fundar o futuro. Muitos piranguenses possuem essa visão de que é necessário abrir mão de coisas relacionadas ao passado, como imóveis, para dar lugar ao novo, ao moderno, o que garantiria o progresso.

Esses intelectuais citados anteriormente defendem a ideia da existência de um objeto de desejo cuja busca revelaria a face autêntica, ou seja, a igreja demolida é considerada a autêntica e a perda dela implicou na perda de parte dessa autenticidade. Sendo assim,

[...] a “retórica perda”, em seu declínio no atual contexto marcado pelo regime “presentista”, mostra-se como uma modalidade entre outras de representação do patrimônio, originalmente acoplada a um contexto institucional e a um certo regime de representação do tempo. Desse modo, é possível pensar o patrimônio não apenas como algo situado num tempo ou num espaço distante e inalcançável, mas também como um processo presente, incessante, conflituoso e interminável de reconstrução. Assinale-se que no coração desses discursos, juntamente com a noção de “perda”, insinua-se o espectro da “destruição”, contra a qual se posicionam os esforços coletivos no sentido de proteger e preservar os bens culturais ameaçados (GONÇALVES, 2015, p. 220).

A perda desse bem em Piranga provocou em muitos o medo de novos prejuízos, mas, principalmente, relacionado aos bens de natureza religiosa, os quais possuem um maior valor afetivo entre os demais. Segundo o autor supracitado, essa perda pode assumir diversas formas, desde aquelas relacionadas a desastres naturais quanto às relacionas a fatos sociais e

históricos, como é o caso de alguns bens piranguenses que estão desaparecendo pelo simples abandono dos bens culturais ou devido à indiferença da população ou dos governantes.

A preservação desses bens levaria a manter também preservada a memória e a identidade, ao passo que a destruição implicaria no esquecimento. Nesse sentido, associamos a memória aos seus suportes materiais, os quais devem ser preservados para que ela permaneça. Por outro lado, “[...] muitas vezes, a destruição de objetos e espaços materiais pode ser o elemento gerador de identidades e memórias” (GONÇALVES, 2015, p. 223), como é o caso do sentimento compartilhado entre muitos piranguenses.

No documento VIÇOSA - MINAS GERAIS 2022 (páginas 82-86)