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Os processos de patrimonialização: uma breve análise bibliográfica acerca do

No documento VIÇOSA - MINAS GERAIS 2022 (páginas 69-73)

É difícil datar precisamente quando houve o surgimento dos primeiros processos de patrimonialização, mas, desde a segunda metade do século XX, ocorreu um aumento quantitativo e qualitativo na ativação do patrimônio. Esta ativação é o que chamamos de patrimonialização e está ligada ao esforço de conservar, a longo alcance, aquilo que se considera importante para a nação (PRATS, 1997). Se levarmos em consideração o espaço temporal, podemos dizer que o patrimônio é algo muito recente e, consequentemente, as políticas de preservação cultural também o são.

A patrimonialização ganha força após as duas Grandes Guerras Mundiais, pelo desejo das nações de preservar os restos de um passado materializado em seus territórios e, ainda, não devastados. O ato de consagração patrimonial é orquestrado, assim, pelas potências estrangeiras, onde, a partir das catástrofes mundiais (duas Grandes Guerras), temos o marco simbólico de uma nova ordem de transmissão cultural (COSTA, 2010, p. 136).

Mas do que se trata patrimonializar um bem? O que significa? Para responder a estas indagações, trazemos Roberto Cara (2004), o qual escreveu um artigo intitulado

Patrimonialización de valores territoriales. Aportes y Transferencias. Neste escrito, o autor afirma que a patrimonialização é um processo voluntário que tem como objetivo incorporar valores socialmente construídos, englobados dentro de um espaço-tempo de um determinado grupo social, ou em uma sociedade, transformando-se em parte de um processo de territorialização, o qual baseia a relação entre cultura e território. Além disso, a durabilidade de um bem, seja ele material ou imaterial, está relacionada à valorização cultural, ao significado simbólico que este bem possui, além dos interesses econômicos. A patrimonialização, neste caso, seria a institucionalização de mecanismos que têm como finalidade proteger o então chamado patrimônio cultural, material e imaterial. Ou seja, são os processos e os mecanismos de proteção ao bem cultural.

No Brasil, essas medidas são datadas no início do século XX e ganham força no contexto do movimento modernista, adquirindo força política. Essa prática foi se consolidando no país com a criação de órgãos responsáveis por esta proteção, como: a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais (1933); o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (1937), que mais tarde veio a ser nomeado de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; e por meio do conjunto normativo criado por esses institutos, o qual visa à proteção e à preservação do patrimônio cultural brasileiro. O tombamento foi o instrumento instituído durante o Estado Novo, em 1937, e que se tornou o principal recurso por meio do qual o Estado busca assegurar a proteção de determinados bens culturais. Atualmente, o tombamento é o principal instrumento de proteção que temos no país.

Mas, apesar de se tratar de um processo que visa à proteção dos bens culturais, não devemos romantizar a patrimonialização, visto que é um processo de construção de metadiscursos sobre determinada realidade pautada em experimentações registradas em um livro, mediante as várias regras e critérios que foram estipulados por agentes estatais na área das políticas públicas. Sendo assim, a patrimonialização atribui sentidos, valores e significados ao bem cultural, ao passo que o patrimônio está ligado a um jogo de interesses, de decisões a serem tomadas, simbolismos e ações políticas nas quais os espaços estão sendo ressignificados por meio de estratégias que buscam a preservação e o uso desses espaços. Ao mesmo tempo em que este processo tem contribuído significativamente para a produção social desses espaços, ele também tem contribuído para a ampliação de conflitos de interesses entre os agentes exógenos e as dinâmicas sociais locais, o que resulta em políticas sem eficiência para atender às demandas desses agentes. Como aborda Sandra Siqueira da Silva:

A patrimonialização dos bens culturais busca inserir a comunidade local no caminho do desenvolvimento social e econômico. Ao se agregar valor econômico e simbólico aos bens culturais, há o reconhecimento e identificação da história e cultura da população local, a patrimonialização da cultura deve ser utilizada como meio e fim da valorização dos bens culturais, estes, ao assumirem sua posição simbólica serão canais de desenvolvimento social, econômico e cultural (SILVA, 2011, p. 16).

No entanto, este processo tende a ser lento e demanda passos bem delimitados.

Inicialmente, é feito um inventário de bens patrimoniais materiais e imateriais da localidade, o qual deve passar por um processo de apropriação das comunidades. É necessário que haja sensibilização dos moradores locais, pois é preciso que exista um sentimento de identificação com o patrimônio. Nesse âmbito, além destas questões, ainda é necessário que se tenha uma estrutura institucional que esteja apta a proteger esses bens para que eles possam ter sua existência garantida, de modo que gere um impacto positivo para o local e para as pessoas que fazem parte desta comunidade.

Em grande maioria, estas questões são os aspectos em que mais ocorrem falhas, não sendo realizados como deveriam ser. Na teoria, tudo funciona muito bem, mas, na prática, a realidade é outra. Não basta apenas que haja a patrimonialização do bem: é preciso também que a população seja contemplada e beneficiada com este reconhecimento dos bens patrimoniais, pois, sem se sentir pertencentes a estes espaços, não há identificação com o patrimônio e, consequentemente, ele perde a sua função primordial, que é garantir a manutenção da memória e da identidade dos agentes envolvidos.

Como vimos, por via da patrimonialização são atribuídos novos significados ao patrimônio. Nestes processos, os especialistas são peças fundamentais, sobretudo enquanto responsáveis por criar uma legitimidade patrimonial seletiva, como os historiadores, arqueólogos, antropólogos, arquitetos, entre outros. São eles quem vai certificar o valor dos elementos culturais para decidir se são cabíveis ou não de serem patrimonializados e quem vai reconhecer como bem de tutela pública o que antes não era intitulado como tal.

Segundo Alois Riegl (1997), são atribuídos ao patrimônio cultural valores como: o valor histórico, o valor artístico e estético, o valor de antiguidade e o valor de contemporaneidade, ou seja, como esse bem tem utilidade para servir às necessidades do presente. São estes valores que tendem a nortear os processos de proteção para definir critérios que serão usados para selecionar quais bens serão patrimonializados.

Mas é importante salientar que, na atualidade, estes valores não são mais suficientes para atender aos processos de atribuição de valor ao patrimônio público. Por mais que a ação

dos especialistas seja importante, ainda sim é importante estarmos cientes de que tais processos estão associados a conflitos, tensões e negociações. Desse modo, não é suficiente estudar apenas o papel e a atuação dos especialistas, mas também dos diversos outros agentes sociais inseridos neste meio e que fazem parte deste processo. Por esse motivo, devemos estar atentos às questões identitárias, aos seus diversos níveis e ao seu papel na hora de categorizar determinado bem. Como aborda Françoise Choay (2008), a reutilização do patrimônio é um processo minucioso e complexo, pois não basta levar em consideração apenas o “valor” do bem, mas também os usos originais deste, a comunidade na qual está inserido e à qual pertence, sempre com vistas à sua proteção, para que não haja a degradação pelo mau uso.

O fato é que, nos últimos anos, vem ocorrendo um grande aumento das iniciativas de patrimonialização e museificação com o intuito de utilizar a cultura como uma forma de fomentar a revitalização urbana. Nesse ínterim, de acordo com Paola Jacques (2008), a valorização da cultura e a revitalização de espaços e bens são vistas como um instrumento de desenvolvimento econômico para as regiões, característica comum do mundo globalizado capitalista. Desse modo, tais objetivos se tornam possíveis por meio da institucionalização da patrimonialização, visto que ela é apontada como um mecanismo importante de afirmação e legitimação das identidades, reafirmando a identidade de um grupo, assim contribuindo para atribuir valores, significados, usos e sentidos por meio de um processo de ativação das memórias, as quais estão sempre correndo o risco de caírem no esquecimento.

O que acontece geralmente é que, em um mundo capitalista onde o caráter econômico é sempre colocado como prioridade, o patrimônio também passa a ser visto como uma fonte de capital por meio da mercantilização do patrimônio cultural. Os mecanismos utilizam como estratégia para a afirmação da patrimonialização perspectivas voltadas para a mercantilização do patrimônio cultural. Sobre isso, Françoise Choay (2006, p. 211), “os monumentos e patrimônio históricos adquirem dupla função – obras que propiciam saber e prazer, postas a disposição de todos; mas também produtos culturais, fabricados, empacotados e distribuídos para serem consumidos”, além de servirem como meios para atrair o capital gerado pelo turismo. O turismo, por um lado, impulsiona a preservação e a divulgação do patrimônio, mas ele também pode se tornar um risco quando causa danos ao patrimônio, quando afasta os grupos identitários dos seus lugares de memória, ou quando banalizam o verdadeiro significado desses bens quando o seu valor cultural não é atribuído.

Mas é fato que o turismo tem despertado interesse nos gestores municipais, pois o patrimônio das cidades cada vez mais tem sido visto como um meio de atrair público consumidor, seja pelas manifestações culturais, seja pelas festas tradicionais ou pela beleza

dos bens patrimoniais materiais. De fato, a patrimonialização da cultura pode auxiliar no desenvolvimento econômico, cultural e social das sociedades, mas o desafio passa a ser selecionar o que deve ou não ser patrimonializado. Surge, então, a indagação: quais critérios serão usados nessa escolha? Em relação ao patrimônio cultural de Piranga, existe uma gama diversificada de bens, mas o turismo não é o forte da cidade até então, embora haja projetos tentando explorar essa área.

Com o intuito de entender melhor como se dá esse processo e como são selecionados os bens patrimonializados do município é que nos dedicamos a analisar os dossiês de tombamento, observando quais justificativas foram dadas para a escolha destes bens e para efetuar o tombamento. Além disso, buscamos relacionar essas fontes com outras documentações e com as entrevistas com agentes relacionados, como veremos a seguir.

No documento VIÇOSA - MINAS GERAIS 2022 (páginas 69-73)