• Nenhum resultado encontrado

II.2.2 A “TEORIA DA ESTRUTURAÇÃO” DE GIDDENS: A

No documento A criança (páginas 93-98)

POSSIBILIDADE DE MOBILIDADE DO ATOR SOCIAL “POR ENTRE AS NORMAS”

Queremos reafirmar com Giddens (2009) um aspecto fundamental desta teoria: que a recursividade das ações mesmo não sendo criadas pelos atores sociais, são recriadas por eles através dos próprios meios pelos quais eles se expressam, considerando o passado e o presente. Portanto, as práticas precisam se repetir no tempo e no espaço para haver a reflexão das mesmas, no entanto, isto não quer dizer que o ator social seja autoconsciente, mas que ocorre um processo, no momento da ação, de monitoração do fluxo contínuo da vida social; do mesmo modo, o agente não pode ser considerado como possuindo um self atuante simplesmente porque sua ação corporal faz mediação com o meio em que vive, mas é a própria racionalização da ação, referente à intencionalidade como processo, que se torna uma rotina característica da conduta humana exercida de forma reconhecida.

Sem dúvida, o agente se apresenta como possuindo sempre “intencionalidade” em suas ações, se utilizando constantemente da racionalidade e estando apto a elaborar discursivamente as razões de seu agir; assim, a ação humana ocorre como uma durée, um fluxo contínuo de conduta, na qual a reflexividade é exercida por meio

36De acordo com Giddens, citando o exemplo que Goffman oferece: “isso é facilmente demonstrado quando essas habilidades estão ausentes ou comprometidas, genericamente, nos “doentes mentais”, e transitoriamente nos lapsos corporais e verbais. Para Goffman, a “doença mental”, inclusive as mais sérias formas de “distúrbio psicótico”, está exemplificada sobretudo pela incapacidade ou relutância, de aceitar a diversidade de minúsculas (embora nada triviais) formas de monitoração do movimento e do gesto corporais, os quais constituem o núcleo normativo da interação cotidiana”. GIDDENS, 2009, p.92.

da monitoração contínua da ação, tanto de quem pratica a ação como de quem a assiste. Está colocado, desse modo, o conceito de estruturação giddensiano: ontologia de tempo-espaço como constitutiva de práticas sociais a qual começa a partir da temporalidade.

Jà o conceito de dualidade da estrutura reforça o entendimento sobre a divisão que não deve haver entre subjetividade e estrutura, tendo em vista que “a questão não é eliminar um desses tipos de concepção à custa do outro, mas expressar a relação entre eles como uma característica da dualidade da estrutura” (GIDDENS, 2009, p. 18). Por conseguinte, todas as formas de dependência, mesmo as mais rigorosas, oferecem recursos por meio dos quais aqueles que são subordinados podem influenciar as estruturas elaboradas na hierarquia superior.

Então, para o mencionado autor estrutura se refere às próprias regras e aos recursos, ou seja, diz respeito às propriedades de estruturação que permitem a delimitação de tempo-espaço e que possibilitam as práticas sociais discerníveis. Assim sendo, não há regras de transformação porque todas as regras são inerentemente transformacionais, não significando isso um impedimento de conceber as propriedades estruturais como hierarquicamente organizadas em termos de extensão espaço-temporal das práticas que são recursivamente organizadas, de acordo tanto com os princípios estruturais - propriedades estruturais mais profundamente embutidas, implicadas na reprodução de totalidades sociais -, como com as instituições sociais - que se referem às práticas que possuem a maior extensão espaço-temporal, dentro de tais totalidades. Portanto, as regras devem ser sempre associadas aos recursos, os quais se referem aos modos pelos quais as relações transformadoras são realmente incorporadas à produção e reprodução de práticas sociais, para que ocorra a constituição de significados por um lado, e por outro, a prática do sancionamento dos modos de conduta social.

É importante registrar que todos estes principais mecanismos da dualidade da

estrutura expressam interseções da consciência prática com a consciência discursiva.

Com efeito, iremos examinar a seguir como ocorre o intercâmbio dos dois tipos de consciências citados, como também destes tipos com o inconsciente para fins de interação social, objetivando apreender suas repercussões no processo de produção de significado, sob o efeito da influência da dominação, para a subsequente legitimação das concepções. Importante se fez entender mais claramente sobre esse funcionamento de dualidade “estrutura/agente social”, já que no nosso estudo, há a

inquietação sobre a medida de autonomia/restrição dos atores sociais envolvidos na nossa pesquisa, com vistas as transformações que, com certeza, tal abordagem nos faz entrever.

Referindo-se à “consciência discursiva” como sendo, de certo modo, fugidia à monitoração das ações no processo de interação social, Giddens deixa claro que o nível da racionalização da ação não é alterado por isto, pois a significação da cognoscitividade de atores humanos se baseia fundamentalmente na “consciência prática”, por meio do conhecimento que estes possuem acerca de convenções sociais, de si mesmo e de outros seres humanos, em uma complexidade muito rica, dando-lhe, então, a capacidade de prosseguir na diversidade de contextos da vida social;37 portanto “os atores são capazes não só de monitorar suas próprias atividades e as de outros na regularidade da conduta cotidiana, mas também de „monitorar essa monitoração‟ na consciência discursiva” (GIDDENS, 2009, p. 34). Em razão disto, os esquemas interpretativos fazem parte dos estoques de conhecimento dos atores e são aplicados reflexivamente na sustentação da comunicação, estando eles aptos a justificá-los, apresentar razões, defendê-los, entre outras condutas.

Com vistas a esta compreensão, há uma linha divisória permeável entre “consciência discursiva” e “consciência prática”, não havendo barreira entre uma e outra, como as que se observam entre o “inconsciente” e a “consciência discursiva”. Ou seja, a separação existente entre as primeiras não se apresenta de forma rígida, acontecendo apenas uma distinção entre o que pode ser dito e o que, de modo característico, é simplesmente feito, não se fazendo importantes as verbalizações. De fato, os agentes sociais possuem um entendimento teórico que os tornam habilitados a explicar a maior parte do que fazem, caso sejam indagados. Já na relação entre a “consciência discursiva” e o “inconsciente”, há um impedimento porque este último inclui formas de cognição e de impulsão que estão ou totalmente impedidas de consciência ou somente aparecem na consciência de forma distorcida. Podemos notar que há nesta noção uma alusão à teoria psicanalítica freudiana, a qual postula

37

Em Giddens, podemos sublinhar essa compreensão: “A compreensão de senso comum, ou

conhecimento mútuo, relevante para a teoria da intenção comunicativa envolve, em primeiro lugar, aquilo que qualquer ator competente pode esperar saber (acreditar) sobre as propriedades dos atores competentes, incluindo o próprio sujeito e os outros, e, em segundo, que a situação particular em que o ator se encontra num determinado espaço temporal, e o outro ou outros a quem é dirigida uma expressão, em conjunto, integram exemplos de um tipo específico de circunstância para qual a atribuição de formas de competência definidas é consequentemente apropriada.” GIDDENS, 1996a, p.107.

que os componentes motivacionais inconscientes da ação possuem uma hierarquia interna que lhes é própria e que exprime a profundidade da história de vida do ator individual; mas, apesar de se valer de Freud, Giddens (2009) faz uma alerta para não se transferir este tipo de funcionamento ao que ocorre com as “instituições”, cujo risco é o de equiparar estas como sendo radicalmente repressoras, não dando chances de perceber a operação das forças sociais autônomas. Do mesmo modo, esse equívoco deve ser evitado, quanto a um poder de “forças sombrias” que fogem do controle da consciência, para que possa se apreender adequadamente o nível de consciência que os agentes estão caracteristicamente aptos a manter de modo reflexivo sobre sua própria conduta.

Nesse contexto, verifica-se também uma distinção entre a “monitoração reflexiva”, “racionalização da ação” e “motivação”. Nesta última, se percebem uma relação com as necessidades do agente social, necessidades estas que, por sua vez, estão imbricadas em seu processo inconsciente. Com efeito, a motivação seria mais intrínseca ao potencial para a ação, aos planejamentos globais, do que propriamente ao modo como a ação é monitorada pelo agente, por isso os motivos atuam com mais propriedade em circunstâncias que saem da rotina. Visto de outro ângulo, este modus

operandi do inconsciente aparece de forma indireta na ação consciente e intencional

através das consequências impremeditadas; em razão disto, Giddens traz a contribuição de Freud quanto aos deslizes comportamentais, como é o caso do lapsus

linguae, que são inconscientemente motivados. Mas, este autor deixa claro que esse

efeito não retira o status do agente em atuar racionalmente, sempre com independência de “agir de outra maneira”, com sua interferência em qualquer fase de uma sequência da ação, se assim lhe prouver, sendo este o conceito giddensiano de

“agência”.

E, para o nosso propósito, na perspectiva de valorizar o efeito inconsciente para o processo identitário rumo à mudança social, interessa-nos selecionar o que Giddens (2009, p.16) discorre:

As consequências impremeditadas da ação formam as condições reconhecidas de ação ulterior num ciclo de feedback não reflexivo. [...] Como acontece, então, que ciclos de consequências não intencionais realimentem-se para promover a reprodução social por longos períodos de tempo? [...] As consequências não intencionais são regularmente “distribuídas” como um subproduto do comportamento regularizado reflexivamente sustentado como tal por seus participantes.

Finalizando essa discussão, em suma, constatamos que a atuação do agente com consequências intencionais e não intencionais, onde está embutida a questão da influência tanto do consciente como do inconsciente, leva-nos a explicação sobre o que o autor em tela entende por poder, sendo definido como a capacidade de “atuar de outro modo”, de intervir no mundo ou não, de acordo com a intenção do agente em influenciar um processo ou estado específico de coisas, podendo, assim, “criar uma diferença”. Vale registrar aqui a alerta que Giddens faz quanto ao reconhecimento que se deve ter no que se refere às circunstâncias de extrema coerção social, nas quais os indivíduos estão muito imobilizados, dizendo que, mesmo nessas condições, a sua ação não é invalidada em termos de sua reflexividade, não devendo-se tomar ao “pé da letra” o significado mais abrangente de poder, no qual está incrustado àquele entendimento sobre a separação entre o sujeito e o objeto. Assim, em consonância com as três dimensões estruturais dos sistemas sociais: significação, dominação e legitimação, quando uma deve ser apreendida em conexão com as outras, é assinalado que os signos apenas existem como veículo e resultado que são de processos comunicativos em interação, havendo sempre um embasamento recursivo. Na sequência deste estudo, no próximo Capítulo, seguiremos com uma abordagem sobre a família e a infância, objetivando trazer à tona o debate acerca de como a criança foi ocupando o lugar no seio familiar e, consequentemente, como foi sendo concebida pelos membros familiares adultos, de acordo com as normas sociais e as modificações destas neste âmbito; igualmente pretendemos suscitar o debate sobre o complexo, e muitas vezes penoso, percurso para o estabelecimento da identidade, com vistas às questões psicossociais que podem levar a sérias problemáticas neste sentido, podendo chegar ao extremo de a criança se tornar vítima de um processo social de estigmatização, como é o caso das que fazem parte deste estudo. Por tudo isso, continuaremos a enfocar a importância da abordagem

gindessiana, na perspectiva de sublinhar sobre uma melhor perspectiva para as

crianças por nós consideradas, rumo a mudanças em termos do processo social de estigmatização. Assim, nossa intenção é aprofundar acerca dos entraves e impossibilidades para o exercício de autonomia que os indivíduos tendem a galgar frente às normatizações sociais e assim, a partir disto, poder enfatizar sobre o “projeto vida” por nós destacado.

CAPÍTULO III

DO ESTUDO SOBRE A FAMÍLIA, A INFÂNCIA E O DESENVOLVIMENTO DA

No documento A criança (páginas 93-98)