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ILÊ TOMIM KIOSISE E AYO: A CAMINHADA DA PEDRA DE XANGÔ

ANEXO X – Ofício CONDER: Atendimento ao Ofício com envio da Base

5 TECENDO REDES DE RESISTÊNCIA

5.1 ILÊ TOMIM KIOSISE E AYO: A CAMINHADA DA PEDRA DE XANGÔ

A Caminhada da Pedra de Xangô é realizada pela sacerdotisa Iaraci Santos Brito mais conhecida como Mãe Iara de Oxum, fundadora do terreiro Ilê Tomim Kiosise e Ayo (1992). Esta expressão tem o seguinte sentido: “Eu saudei no poste ou pilar de sustentação com alegria”. Terreiro da nação Ketu, regido pelo Orixá Oxum; a cumeeira pertence a Xangô. O terreiro situa-se na Rua Flaviano da Apresentação, 29, Loteamento Santo Antônio, Cajazeiras XI (figuras 72 - 73).

Figura 72: Fachada do terreiro Ilê Tomim Kiosise e Ayo

Figura 73: Localização do Terreiro Ilê Tomim Kiosise e Ayo

Fonte: Google Earth, 2016

O Terreiro possui três pavimentos. No primeiro, fica a residência da sacerdotisa; no térreo, encontram-se o quarto do jogo onde se consultam os búzios, casa do Exu, salão de recepção e um banheiro; no subsolo, encontram-se o barracão, o roncó, oito templos destinados a Oxum, Ogum, Obaluaê, Iansã, Oxalá, Penacho de Ouro e Oxóssi, três banheiros, um para os iniciados, a cozinha e o sabagi.

O espaço mato resume-se a um canteiro existente na fachada da casa e, também, a um pequeno espaço interno, (figura 74) que é o assentamento do orixá Ossain - o orixá das folhas sagradas. Neste espaço encontram-se as folhas: akoko, aroeira, palmeira, coarana, espada de Iansã, cana de macaco, folha da costa, ewe e tete.

Figura 74: Espaço mato do Ilê Tomim Kiosise e Ayo.

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2015.

Mãe Iara de Oxum, em matéria publicada no jornal A Tarde relata como conheceu a Pedra de Xangô e porque iniciou a Caminhada.

Em julho de 1991, me dirigi à mata fechada no bairro da Fazenda Grande II – com meus filhos de Santo com a finalidade de arriar uma oferenda para o Caboclo Penacho de Ouro. Ao entrar na mata avistei uma pedra que ao seu redor tinha uma nascente. Encantada, comentei com meus filhos “que coisa estranha, essa pedra dentro d‟água, não é muito linda!” Quando retornei à

roça fui direto ao jogo de búzios, pois pretendia fazer uma oferenda para Oxum nas proximidades da pedra. Oxum não respondeu. Todas as vezes que eu jogava, caiam 12 búzios abertos – representando Xangô. Em 2005, com a abertura da Avenida Assis Valente a pedra ficou exposta e foi ameaçada de ser implodida. Para evitar o seu desaparecimento chamei as Yalorixás da região como, Mãe Rita de Ogum, Mãe de Alá, Mãe Cassuté de Oxalá, Mãe Alda de Ogum, Mãe Branca, dentre outras para fazer uma caminhada em defesa da preservação da Pedra de Xangô. A 1ª caminhada aconteceu em 2010, no segundo domingo de fevereiro, ao som do atabaque, com muitas flores e seiva de alfazema.103

A Caminhada da Pedra de Xangô acontece anualmente no segundo domingo de fevereiro. Antes do ato religioso, Mãe Iara de Oxum realiza o Ossé104 da Pedra de Xangô. O ritual começa sempre ao raiar do dia. Vestidos com roupas brancas, os adeptos do candomblé fazem saudações para Exu, Oxaguian, Oxóssi, Ogum, Oxum, Iansã, Xangô e outros orixás. Um grupo de adeptos sentados na escadaria, com microfone em mãos, dá continuidade aos cânticos, enquanto outro grupo prossegue com os trabalhos de limpeza.

O ossé se faz necessário, primeiro porque antes de qualquer oferenda é preciso limpar o otá; segundo, a ausência de espaço mato nos terreiros de Cajazeiras e adjacências contribui para que um número expressivo de oferendas seja colocado no santuário diariamente. Com instrumentos de limpeza (vassouras, pás, enxadas, sacos de lixo), Ogans, Ekedes e filhos de santo iniciam o ritual. Uns limpam a área do entorno, outros escalam a pedra e, com vassouras em mãos, varrem o monumento, retiram as folhas secas e toda a sujeira da área. Em seguida, é a vez dos jatos d‟água (figura 75). O carro pipa é acionado e começa a lavagem.

103

. Entrevista concedida por Mãe Iara de Oxum a repórter Juliana Dias do Jornal A Tarde em 15/01/2012, A9

104

Figura 75: Ossé da Pedra de Xangô

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2015

Finda a limpeza, segue-se à alimentação do axé (figura 76). Milhos brancos são arriados em todo entorno da pedra. Água de cheiro e água de amassi levados em pote de barro banham a pedra.

Figura 76: Ossé da Pedra de Xangô

Pombos brancos são soltos por filhas de santo e por crianças que desde a tenra idade aprenderam a cultuar o axé, a natureza, a preservar a cultura e a religião dos seus ancestrais. Alguns pombos voam bem alto e pousam na paisagem composta de árvores de grande e médio porte, remanescentes de Mata Atlântica. Outros pombos permanecem na terra, próximos à pedra. Ritual concluído. Batem paó (palmas) para o Rei Xangô. Com esse ato religioso, os adeptos sentem-se fortalecidos a lutar pelos seus direitos.

A Caminhada da Pedra de Xangô é, sobretudo, um ato político que consegue atrair militantes de várias tendências partidárias, gestores e parlamentares. O seu objetivo é mobilizar a sociedade civil e adeptos das religiões afro-brasileiras na defesa e salvaguarda da Pedra de Xangô enquanto patrimônio cultural.

A concentração da Caminhada da Pedra de Xangô é no campo da Pronaica – Cajazeiras X, onde os participantes são recebidos com lanches à base de frutas, pão e suco. Pessoas de vários cantos da cidade de Salvador e do Estado da Bahia chegam para participar do ato, cumprimentam-se e aguardam euforicamente o início da festa. O clarim toca, os fogos de artifício anunciam que o evento irá começar.

Na sétima caminhada, a oradora oficial agradeceu a todos que contribuíram direta ou indiretamente para a realização do ato ritualístico. Em seguida, fez-se um breve histórico das caminhadas e foram lançadas as seguintes perguntas aos secretários municipais, estaduais e parlamentares presentes:

Por que em sete caminhadas ainda não conseguimos registrar ou tombar a Pedra de Xangô...? O que acontece não é interessante para os órgãos públicos, não é viável...? A nossa ideia de cultura de religião, porque é negra, de matriz africana, impede as construções, os interesses imobiliários em Cajazeiras...?105

105

. Discurso de Juliana Santos na abertura daVIIª Caminhada da Pedra de Xangô, 2016. Audiovisual, colorido,60 min. Acervo Maria Alice Silva.

Em seguida, os sacerdotes e sacerdotisas presentes foram convidados a participar do Padê (rito) para Exu (figuras 77 - 78)

Figura 77: VIª Caminhada da Pedra de Xangô.

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2015.

Figura 78: VIIª Caminhada da Pedra de Xangô.

Iniciou-se o ritual. O músico em cima do mini trio conclama: “Quem é do santo grita axé” e o povo respondeu “axé”. E assim, Xangô vai arrastando multidão, procedente de toda a cidade, em defesa do seu símbolo (figura 79).

Figura 79: VIIª Caminhada da Pedra de Xangô.

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2016

Na caminhada da Pedra de Xangô, a criatividade e espontaneidade do povo afloram. A Avenida Assis Valente transforma-se em um palco: de beleza (o povo-de-santo desfila suas belas indumentárias), de resistência, de entraves políticos, de música, dança e poesia. Um participante diz que fez uma música para a caminhada, solicita o microfone, começa a cantar e pede para que as pessoas o acompanhem:

Eu vim atender ao chamado que a natureza me mandou. Eu vou, eu vou a Pedra de Xangô.Eu vim atender ao chamado que a mãe Oxummandou. Eu vou, eu vou a Pedra de Xangô.Eu vim atender ao chamado que o pai Ogum mandou. Eu vou, eu vou a Pedra de Xangô.Eu vou, eu vou a Pedra de Xangô. Eu vou, eu vou a Pedra de Xangô.106

Uma senhora com dificuldade de locomoção demonstra alegria por ali estar reverenciando o rei. Trata-se de Dona Apolinária Santiago do Nascimento (figura 80), 84 anos, moradora de Vila de Abrantes – município de Camaçari, filha de um dos terreiros mais antigos da região, o Mansão Dandalungua Concuazenza. Dona Apolinária precisou sentar-se em uma cadeira para assistir à cerimônia. Ela comentou: “Foi um momento de muita alegria, minha filha”107

.

Figura 80: Vª Caminhada da Pedra de Xangô.

Foto: Lúcia Correia Lima, 2014

106. Cantor não identificado –VIIª Caminhada da Pedra de Xangô; audiovisual, colorido,60 min. Acervo Maria

Alice Silva.

107

Mãe Zil (figura 81), do Terreiro Tigongo Muende também, acompanha o cortejo.

Figura 81: V Caminhada da Pedra de Xangô.

Foto: Lúcia Correia Lima, 2014

Outros fazem uma roda e seguem a jogar capoeira (figura 82). O gingado do corpo é uma forma de luta, não mais a luta contra o sistema escravagista, mas contra um sistema que mantém a religião afro-brasileira à margem dos setores de decisões, o que impossibilita a preservação do seu legado cultural.

Figura 82: Capoeira na VI Caminhada da Pedra de Xangô

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2015

Da mesma forma, vemos hoje novas espacialidades de práticas como a capoeira, manifestação cultural engendrada por pocessos de luta dos negros escravizados. A capoeira historicamente se mantém, assume novas conformações e resiste a diferentes “ondas” de repressão (como a imposta pela ditadura de Getúlio Vargas) e de “ modernização” (como a emergência da chamada “capoeira regional”. A capoeira que antes se escondia no espaço urbano (inclusive, criando um toque do berimbau específico para avisar sobre a aproximação da polícia e organizar a fuga dos capoeiristas, o toque da “cavalaria”), se globaliza ocupando formas urbanas pujantes como, por exemplo, academias, ginásios e casas de eventos (como nas festas de batizados e outras), além de praças e outros espaços públicos. (SANTOS, 2012, p.64)

“Que tem fé vai a pé” sacerdotes e sacerdotisas, velhos,crianças e adultos caminham juntos em direção ao grande Otá do Rei (figura 83).

Figura 83: VIIª Caminhada da Pedra de Xangô

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2016.

A Pedra de Xangô representa um símbolo de resistência cultural para aqueles que participam da caminhada. Um retrato vivo de experiências passadas de índios, negros e brancos que deixaram suas marcas gravadas na memória da cidade. A Pedra de Xangô faz parte da história do povo negro.

A Caminhada da Pedra de Xangô surge em um momento crucial. É um marco referencial de luta em defesa da grande pedra em Cajazeiras X. É uma festa em que o sagrado e o profano andam juntos. É uma manifestação coletiva do povo de terreiro que busca garantir o exercício e as práticas dos atos litúrgicos nos diversos lugares sagrados da Avenida Assis Valente, notadamente, no entorno da pedra.

A caminhada é percepção de sentimento (figuras 84 - 85), pertencimento, é o encontro com o mito. Enfim, é a presença da tradição enquanto experiência de vida que se reproduze se traduz como um jogo de força, de correlações de poder, através da música, da dança, da capoeira, do rito, do grito de liberdade.

Figura 84: VIIª Caminhada da Pedra de Xangô

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva, 2016.

Perez sinaliza que “a festa é uma presença constante em nossas vidas individual e coletiva [...] festas marcam os tempos fortes, os momentos culminantes, as alternâncias de ritmo e de intensidade da vida individual e coletiva, a periodicidade das passagens [...]” (PEREZ, 2012, p. 22)

A Caminhada da Pedra de Xangô é uma festa (figura 86). Uma festa que renova que revigora o pacto, a rede em defesa de um lugar sagrado para os adeptos das religiões afro- brasileiras e a caminhada hoje representa o levante social contra todas as formas de opressão, contra um sistema político que insiste em não enxergar a cultura de um povo.

Figura 85: O Amalá da VIIª Caminhada da Pedra de Xangô

Foto: Juscelino Pacheco. Acervo: Maria Alice Silva

O mapa 9 mostra o percurso do terreiro Ilê Axé Tomim Kiosisé e Ayo até a Pedra de Xangô. Situado no Loteamento Santo Antônio, este terreiro não possui espaço mato suficiente para a realização dos seus atos litúrgicos, necessitando colher plantas e folhas nas matas existentes no entorno do rochedo, daí a grande luta em defesa do sagrado.

.Figura 86: VIIª Caminhada da Pedra de Xangô

Mapa 9: Caminhada da Pedra de Xangô, 2015.