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ANEXO X – Ofício CONDER: Atendimento ao Ofício com envio da Base

3 A PEDRA NO CONTEXTO DA DIÁSPORA AFRICANA

3.3 A PEDRA NO CANDOMBLÉ

O candomblé44 é o resultado da mistura das vivências religiosas trazidas para o Brasil pelos mais diversos grupos étnicos (yorubá – banto – ewe-fon e outros) oriundos do continente africano que aqui chegaram na condição de escravizados. Desprovido de seus bens materiais e pessoais, o povo negro da diáspora trouxe apenas no corpo, na memória, as suas crenças, os seus símbolos, mitos, ritos e tradições que foram aqui ressemantizados.

A maioria das sociedades africanas possuía entidades locais. Cada povo cultuava separadamente a sua própria divindade. Na Bahia-Brasil, “a reunião simultânea de cultos de várias divindades num mesmo terreiro surge, [...] durante a fundação do Ilê Iyá Nassô – ocorrida, segundo os cálculos mais arriscados, na última década do século XVIII, ou segundo os mais conservadores, nas primeiras décadas do século XIX”. (PARÉS, 2007, p.271)45.

44. “Candomblé palavra que é oriunda da língua Banto Quicongo, originalmente CANDOMBE, que significa

lugar de oração ou de adoração às suas divindades e que em nossos dias é a palavra que define os cultos aos Nkisi, Orixás e Voduns”. (SANTOS, 2010, p. 70)

45“O processo formativo do Candomblé não respondeu a uma simples réplica de uma ou outra tradição africana,

mas existiu toda uma série de condicionantes socioculturais que obrigaram e estimularam uma “criatividade” que resultou em características institucionais propriamente brasileiras, além, ou ao lado, dos possíveis processos de continuidade. [...] – “princípio da agregação” – baseado na dinâmica de incluir novas divindades num complexo ritual preexistente, princípio que no sistema religioso vodum constitui a regra (em vez de exceção, como parece acontecer nos cultos de orixás pré-coloniais), persistiu como uma influência jeje que ofereceu um modelo organizacional marcante na constituição do Candomblé”. (PARÉS, 2007, p. 277).

Figura 16: Pedra de Xangô / Salvador, Bahia - Brasil

Foto: Juscelino Pacheco – Acervo: Maria Alice Silva, 2014.

Considerado “uma criação genuinamente brasileira”, o candomblé segundo Parés foi “condicionado e moldado pela sociedade colonial e escravista [...]”, e “reproduziu e adaptou os princípios básicos dos cultos de múltiplas divindades e formas de performance ritual seriada característicos do sistema religioso vodum”. (PARÉS, 2007, p.292)

Elemento fundante, microcosmo garantidor da preservação da identidade cultural africana, o candomblé ressignificou as práticas e trocas religiosas exercidas entre as diferentes nações46 e os ameríndios – os verdadeiros donos da terra – dos rios, das matas e florestas brasileiras. Assim, através das divindades orixás47, inquices, voduns e caboclos48, as

46“Nos séculos XVII e XVIII, o termo “nação” era utilizado pelos traficantes de africanos escravizados,

missionários e oficiais administrativos das feitorias para designar os diversos grupos populacionais autóctones (PARÉS, 2007, p.23). O significado do termo “nação foi sendo modificado com o tempo, deixando de designar a identidade coletiva dos escravizados para denominar a identidade coletiva religiosa dos afrodescendentes. Na contemporaneidade, compreende-se por nação de candomblé a denominação atribuída aos grupos étnico- religiosos que, por meio da língua litúrgica, dos ritos e mitos, distinguem os candomblés da Bahia”. (DOURADO, 2010, p. 55-56).

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Orixá – “é a classificação genérica atribuída às divindades do panteão yorubá ou nagô-keto. Os orixás são símbolos vivos, assimilados à natureza e às ações dos homens e que se manifestam também através da corporeidade humana”. (DOURADO, 2010, p. 59).

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manifestações do sagrado e da cultura se perpetuaram e são ritualizados, utilizando-se como símbolos os elementos da natureza: integrantes do reino animal, vegetal e mineral, dentre eles, as pedras consideradas otás – moradas dos deuses.

Òtá é uma palavra de origem africana comumente usada no candomblé para se referir às pedras que fazem parte dos assentamentos, ou seja, dos altares. “São pedras normalmente encontradas em rios de água límpida e cristalina que têm o poder de encantar as divindades, os orixás” (EYIN, 2014, p.6) e são sacralizadas. A cada entidade sobrenatural correspondem “assentos” específicos e os elementos que os compõem expressam os diversos aspectos do orixá (inquice, vodun e caboclo)49 cuja natureza simbolizam. (SANTOS, 2008, p.35).

Os assentamentos, por sua vez, são corpos formados por um continente50 e um conteúdo. É o conteúdo que determina a entidade e o tipo de axé que ela regula. O assento de Oxalá, por exemplo, dentre outros elementos, é constituído de uma grande cuia de porcelana branca, igbá, simbolizando a matéria que corresponde aos elementos are água, e, principalmente, de uma pedra, chamada òta. (SANTOS, 2008, p.202).

Quase todos os “assentos” contêm um òta, uma pedra de característica particular e única. A presença do orixá na terra é a pedra. O òta é o corpo, ou seja, o núcleo central do “assento”. (SANTOS, 2008, p. 202) É ela que receberá, durante os rituais e as oferendas, os elementos do reino vegetal, mineral e animal portadores de axé.

Os assentos de Oxum e Iemanjá, por exemplo, são conchas e pedras encontradas nas águas, uma vez que estas são os elementos desses orixás, rio e mar, e eles têm uma cor correspondente às cores destesorixás (amarelo ou ouro para Oxum, branco ou prata para Iemanjá). As pedras de Xangô supõe- seterem caído do céu, já que Xangô é o deus do trovão. (SANSI-ROCA, 2010, p.9).

Depois de sacralizada, a pedra constitui o vínculo entre a divindade, o iniciado (filho de santo) e a mãe (ou pai) de santo responsável por zelar e mediar a relação. A pedra não é

africanos falantes de línguas do tronco banto [...] Voduns são as divindades cultuadas pela nação de tradição ewe-fon composta por africanos falantes das línguas ewe-fon ou gbe a saber: (jejes, minas, ardras ou aladas, uidás, mahis, mundubis, savalus e etc) [...] Caboclos são entidades do panteão afro-indígena, nobres espíritos indigenas que passaram a ser cultuados principalmente pelos candomblés de nação angola. (DOURADO, 2010) p. 57 - 61).

49 Grifo nosso inclui-se nesta afirmativa os inquices, voduns e caboclos.

50“Distinguem-se três tipos de materiais para os continentes: 1) vasilhas feitas de cuias e cabaças – igbá-

substituídas por vasilhas de porcelana ou louça: bacias, sopeiras ou pratos brancos para os Funfun ou enfeitados com motivos de cores apropriadas para os outros òrisá; 2) vasilhas de cerâmica ou de cor natural: potes, quartinhas, kòlòbó, panelas, alguidares ou pratos; vasilhas de madeira ao natural:gamelas”. (SANTOS, 2008, p. 201).

confeccionada, não é comprada, ela deve ser encontrada. É submetida ao oráculo (ifá – búzios) que dirá se é masculino ou feminino e a que divindade corresponde; o tipo de material: pedra ou argila. Se argilosa, é bem provável que seja uma pedra de Nanã ou Obaluaê. Tudo pode ser substituído no “assento”, exceto o òta.

Por um procedimento litúrgico, o orixá se transporta e se condensa em um

otá, pedra ritual característica e diferenciada para cada divindade, em ritual

chamado vulgarmente de “assentamento do santo”. Esta pedra, este otá no meu entender, é um acumulador e depósito de energia ,sendo, por conseguinte, uma pequena porção individuada da energia do orixá assentado, assim como a pessoa o é. Orixá, otá e iniciado, estão, pois, em inter-relação identitária, na medida em que, cada pessoa é também uma porção individuada do seu orixá, de sua seleção de consciência, de sua faixa de energia cósmica. A pedra de per si, em seu estado, já era uma diminuta e concentrada porção de energia do orixá. (TAVARES, 2008, p.99-100).

A pessoa e o otá estão unidos, intimamente ligados, pelo processo de iniciação. O otá ganha vida sagrada, ou seja, deixa de ser pedra e será o Orixá responsável pela guarda do axé, do destino do iniciado. (EYIN, 2014, p.6).

No assentamento do orixá, é como se a energia da cabeça da pessoa fosse transferida qualitativamente, e numa intensidade renovável para a pedra, para o otá que está constituído de energia correlata. Esta pedra é, portanto, capaz de assimilar, conservar, e renovar com ossés e com o sangue dos sacrifícios, a energia de ambos que é, em última análise, a energia do orixá comum. Se essa energia do ori, da cabeça do iniciado atende pelo nome de Xangô, ele estaria ipso facto assentando o seu Xangô. (TAVARES, 2008, p.101-102).

Fonte mágica de grande expressão para o rigor dos cultos afro-negros [...] as pedras sagradas atuam como marca, morada ou como a própria divindade, verdadeiro objeto síntese, natureza, mito, homem. (LODY, 1980, p.12)

Em todos os lugares do mundo podem ser encontradas pedras sacras que foram tocadas pelo divino ou são os próprios divinos. Elas são objetos de culto e adoração. Os mitos contam as histórias desses deuses, suas cortes, seus feitos e façanhas. Aqui nos reportaremos apenas às cosmovisões africana e afro-brasileira pelo fato de a Pedra de Xangô se constituir o objeto deste estudo.