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Explicar essa escolha passa necessariamente pelos momentos iniciais de descoberta do tema ora pesquisado. Portanto, desde já, pedimos licença ao leitor para fazer esta breve retomada. Vejamos.

Atienza e Manero (2000) dedicam sua obra “Ilícitos Atípicos” à teorização de institutos que, em maior ou menor medida, são velhos conhecidos do Direito: Abuso de Direito, a Fraude à Lei e o Desvio de Poder.83 A inovação da Teoria dos Ilícitos Atípicos foi a reconstrução desses institutos valendo-se dos pressupostos da Teoria dos Enunciados Jurídicos (apresentados no primeiro capítulo) e a partir da prática jurisprudencial, tomada sob uma perspectiva argumentativa e ambientada no contexto do Estado Constitucional de Direito. Os autores analisaram decisões jurídicas sobre esses três institutos, prolatadas pelo Estado espanhol e francês, e apresentam, ao final, uma estrutura argumentativa para cada um deles.

83 Na parte inicial da obra, os autores tratam ainda da Analogia Iuris e da Analogia Legis, entretanto decidem concentrar seus estudos somente nesses três.

Atienza e Manero (2000) descrevem esses institutos como sendo condutas que violam princípios, e não regras postas, na medida em que, prima facie, estariam autorizadas por uma regra e pelo princípio que a sustenta. Todavia, após um raciocínio ponderativo envolvendo outros princípios do sistema jurídico, o julgador entende que estes devem prevalecer perante o princípio subjacente à regra e que ela, em alguma medida, deverá ser interpretada de tal forma que a conduta seja excepcionada de sua cobertura, tornando-se, então, atipicamente ilícita.

A partir desse conceito, este pesquisador enxergou alguns pontos de contato entre os “casos de excessivo rigor” e os ilícitos atípicos, afinal, assim como estes, os “casos de excessivo rigor” também são caracterizados por condutas que, embora aparentem estar autorizadas por uma regra84 e seu princípio subjacente85, são tidas por ilícitas (irregulares) em face de outros princípios86. Aliás, é importante explicar que foi justamente essa proximidade que fez este pesquisador, em 2016, fazer sua primeira leitura da obra “Ilícitos Atípicos”, de Atienza e Manero (2000). A ideia era compreender melhor o que significava, para o Direito, o AC 2463/2008 (BRASIL, 2008b) e o AC 3381/2013 (BRASIL, 2013a), detectados em sua atuação como auditor.

Tal proximidade instigou este pesquisador a tentar encaixar os sobreditos acórdãos – que viemos chamando de “casos de excessivo rigor” – dentro das estruturas apresentadas por Atienza e Manero (2000) para os três institutos de ilícitos atípicos. A ideia era verificar o nível de identificação entre os “casos de excessivo rigor” e os institutos de ilícitos atípicos. Assim, se o encaixe fosse perfeito, seria possível dizer que os “casos de excessivo rigor” seriam um caso de ilícito atípico. Seria uma grande descoberta!

Mas não se encaixou. Enquanto as regras que sustentam as condutas nos ilícitos atípicos são regras de permissão (Abuso de Direito) ou regras que conferem poder (Fraude à Lei e Desvio de Poder), nos “casos de excessivo rigor”, como vem sendo falado, são regras de mandato. Podemos identificar ainda outra diferença. É que, para Atienza e Manero (2000), nos ilícitos atípicos, a reprovação da conduta resulta exclusivamente da colisão entre princípios (o princípio subjacente à regra sobre a qual a conduta se sustentou e outro do sistema) e nunca do conflito entre regras. Nos “casos de excessivo rigor” essa

84 Geralmente, o caput e §4º do Art. 41, a parte final do §3º do Art. 43, o caput do Art. 45; e Inc. I do 48, todos da Lei 8.666/93.

85 Geralmente, os princípios da vinculação ao instrumento convocatório, como a legalidade. 86 Geralmente, o da vantajosidade, economicidade, competitividade, entre outros.

restrição não parece muito certa, já que, a tirar pelo AC 2463/2008 (BRASIL, 2008b) e pelo AC 3381/2013 (BRASIL, 2013a), os decisores constroem argumentativamente um conflito entre a regra disposta no caput do Art. 41 e a da parte inicial do §3º do Art. 43, ambas da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993). Há ainda outros pontos de aproximação e distanciamento que identificamos posteriormente, mas não os exploraremos, para não desviar do objetivo do capítulo.

De toda sorte, foi essa tentativa frustrada que nos revelou que as estruturas dos ilícitos atípicos, apresentadas por Atienza e Manero (2000), poderiam servir de base para, após alguns acréscimos e supressões, serem utilizadas na análise dos “casos de excessivo rigor”. O que fizemos foi uma releitura dos ilícitos atípicos, colocando as estruturas dos autores espanhóis em uma linguagem corrida. Entendemos que isso tornaria as estruturas mais plásticas, capazes de serem misturadas umas com as outras, passíveis de terem alguns de seus termos suprimidos ou receberem novos termos. Assim poderiam ser encaixadas não só nos “casos de excessivo rigor”, mas em qualquer outra decisão jurídica. A ideia foi criar um método que funcionaria como um modelo de raciocínio argumentativamente estruturado, capaz de, ao ser aplicado na decisão, desnudar seus elementos argumentativos, demonstrando a relação entre eles, permitindo assim sua compreensão crítica e comparativa.

E assim fizemos. Portanto, é possível dizer que, a partir de Atienza e Manero (2000), estamos propondo um Método de Análise que, no último capítulo, foi testado nos “casos de excessivo rigor”, mas que pode ajudar agentes encarregados de conduzir certames, assessores jurídicos, auditores e outros a compreenderem e compararem decisões jurídicas, sejam elas administrativas ou do Judiciário.

Para demonstrar os caminhos percorridos até o sobredito Método, elaboramos três seções. A primeira e a segunda são dedicadas ao Abuso de Direito e ao Desvio de Poder, respectivamente. Cada uma dessas duas seções está dividida em duas partes. Nas primeiras partes, apresentamos: as principais características dos institutos; as estruturas apresentadas pelos autores espanhóis; e as aplicações das estruturas em casos concretos, propostos também pelos autores. Nas segundas partes apresentamos: as releituras que fizemos dos elementos argumentativos encontrados pelos autores e as estruturas colocadas em forma de texto corrido; e, então, suas aplicações a casos concretos. A terceira seção é bem curta. Nela, testamos o Método no AC 3381/2013 (BRASIL, 2013a). Foram necessárias algumas exclusões, de modo a não exorbitar o objetivo e tamanho do capítulo. Nesse sentido, considerando que, como os próprios Atienza e

Manero (2000) afirmam, a Fraude à Lei está para o Direito Privado da mesma forma que o Desvio de Poder está para o Direito Público, portanto têm a mesma estrutura argumentativa, assim, optou-se por não incluir a Fraude à Lei nas próximas seções, já que, por proximidade, o Desvio de Poder está mais relacionado ao tema. Escolheu-se o AC 3381/2013, em vez do AC 2463/2008, por ser a mais recente, portanto, alinhado com o problema da pesquisa.