• Nenhum resultado encontrado

No capítulo anterior, assumiu-se que haveria sete possibilidades de se problematizar as premissas durante o processo de aplicação. A título de recordação, essa problematização pode ser feita por meio das questões de aferição, relevância, interpretação, classificação, prova, ponderação e discricionariedade.

Para imunizar/defender as premissas contra essas questões ou, ao contrário, para justamente problematizá-las/atacá-las (transformando o processo silogístico em um “caso problemático”), partes da lide e decisores podem invocar os mais diversos argumentos. MacCormick (2008) discorre sobre oito deles. O autor deixa claro que essa tipologia não é taxativa, podendo existir diversos outros. A ideia foi tão somente organizar as espécies de argumentos mais comuns encontrados em decisões prolatas em países de tradição romano-germânica, common law e mista, situados tanto no continente americano como no europeu68. O autor destaca que, destarte a apresentação isolada desses argumentos, na prática jurídica (judicial e administrativa) quase sempre o que se vê é a aplicação articulada desses tipos.

Os argumentos, na visão de MacCormick (2008), são divididos em interpretativos, de exceção (ou defeasibility) e argumentação fundada em consequências. O argumento de exceção e a argumentação fundada em consequências são autônomas, não têm subdivisão, já os interpretativos contam com o argumento linguístico, os sistêmicos e o teleológico-avaliativo. Os argumentos sistêmicos, por sua vez, dividem-se em: argumento a favor da harmonização contextual do conjunto legal; argumento a partir de precedentes; argumento por analogia;

68 MacCormick (2008, p. 165) cita que esses argumentos foram identificados em estudo realizado entre 1980 e 1990, do qual participou. O argumento de exceção (defeasibility), que está incluído entre os oito, não teria sido resultado desse trabalho.

argumento de conceito; argumento a partir de princípios gerais; argumento a partir da história. A seguir, uma breve abordagem sobre cada um deles.

O argumento linguístico é o mais elementar dos argumentos jurídicos e consiste em invocar o sentido ordinário das palavras dispostas nos textos das regras, analisadas no contexto da composição frasal em que estão dispostas.

Entrando nos argumentos sistêmicos, tem-se o argumento a favor da harmonização contextual do conjunto legal, que consiste em invocar que a interpretação de uma regra – legislada ou jurisprudencial – deve ser feita levando-se em consideração as regras legisladas que pertencem ao sistema onde ela está inserida.

O argumento a partir de precedentes procura demonstrar que se uma regra legislada tiver sido submetida à interpretação de uma autoridade decisora, ela terá que ser interpretada da mesma maneira pelas demais autoridades. Claro que o grau de persuasão deste argumento está intimamente relacionado ao grau de autoridade e vinculação do precedente.

O argumento por analogia consiste em arguir a similaridade entre o caso em julgamento e outro já julgado, pleiteando, a partir disso, um tratamento isonômico.

O argumento conceitual seria aquele em que, segundo MacCormick (2008, p. 173), argui que “se qualquer conceito geral reconhecido e elaborado doutrinariamente for usado na formulação da disposição legal, ele deve ser interpretado de modo a manter o uso consistente do conceito por todo sistema jurídico”.

O argumento a partir de princípios consiste em invocar que a interpretação de uma regra legislada se dê em conformidade com o princípio que rege a matéria. Diante da colisão de princípios, segundo MacCormick (2008), o argumento buscará construir as razões que justifiquem a prioridade de um princípio sobre o outro, diante das circunstâncias de determinado caso concreto.

O argumento a partir da história considera que uma regra (jurisprudencial ou legislada) pode ser interpretada de forma diferente ao longo do tempo, portanto, invoca o momento histórico da sua produção e/ou da conduta que se sustentou sobre a regra, apontando, para justificar as assertivas, as mutações sociais, econômicas, políticas, ambientais, jurídicas, entre outras que ocorreram no período em questão. Com o argumento a partir da história, encerra-se a categoria dos argumentos sistêmicos.

O uso do argumento teleológico-avaliativo parte do pressuposto de que a regra legislada encerra princípios e escolhas de políticas públicas que visam o atingimento de alguma finalidade. Em um sentido lato, segundo MacCormick (2008, p. 176), a legislação “pode ser vista como algo que incorpora valores socialmente relevantes”. Desse modo, as regras devem

ser interpretadas sob a orientação desses valores, buscando satisfazê-los. Nesse trabalho de interpretação, segundo MacCormick (2008, p. 178), o argumento teleológico-avaliativo pode invocar, inclusive, uma leitura não ordinária da regra legislada, sob a justificativa de que sua interpretação mais óbvia e imediata ensejaria uma situação de “injustiça prática”, ou seja, resultados no mundo da vida que se afastariam dos princípios e políticas que guiariam a norma. O argumento de exceção – ao lado da argumentação fundada em consequências, esta abordada mais à frente – é um dos mais importantes para a presente pesquisa, pois compõe o ponto central dos “casos de excessivo rigor”, seja ele levantado pelas partes (agentes, Administração, Unidade Técnica, MP/TCU) ou Ministros da Corte de Contas da União. Ao tratar sobre esse tipo de argumento, MacCormick (2008, p. 311) supõe a existência de um “arranjo” (ou “fato institucional”) – que pode ser, por exemplo, uma conduta isolada, a celebração de um contrato, a prolatação de um ato administrativo, etc. – que, prima facie, estaria subsumido por determinada regra jurídica (legisladas ou jurisprudenciais). Todavia, verificada que a conduta, aparentemente sustentada pela regra, ensejou (ou seria capaz de ensejar) “circunstâncias anômalas”, assim entendidas aquelas indesejadas à luz dos referidos princípios que sustentam a regra ou outro princípio do sistema, as partes da lide ou o julgador contestam a licitude da conduta. Esse argumento de contestação é a exceção. MacCormick (2008, p. 316) utiliza como sinônimo de “circunstâncias anômalas”, as seguintes expressões: “caso incomum”, “situação especial” e “fator excepcional”, e cita como exemplo o caso do legatório homicida, em que o neto teria alvejado seu avô, o testador69.

MacCormick (2008) fala do argumento de exceção expresso e implícito. No primeiro, a arguição se sustenta em exceção disposta textualmente na própria regra (legislada ou jurisprudencial), colocada ali pelo conformador da regra para evitar a ocorrência de “circunstâncias anômalas”. A argumentação, nesse caso, concentrar-se-á em justificar que os fatos concretos se enquadram na hipótese de exceção da regra, por satisfazer seu(s) princípio(s) subjacente(s). A argumentação de exceção implícita buscará justificar que o resultado de determinado arranjo seria anômalo, diante de determinado(s) princípio(s), ainda que ele – o arranjo – parecesse estar sustentado pelo sentido ordinário da regra. Na argumentação de exceção implícita, como diz MacCormick (2008, p. 314), surge uma “exceção às condições

69 É importante destacar que, na visão de MacCormick (2008, p. 314 e 327), o que é excepcionável não é a regra que aparentemente sustentava o “arranjo”, mas o próprio “arranjo”. Vale dizer, nos termos desta pesquisa, que é a conduta ou a subsunção da norma ao caso concreto que são objetos da exceção.

legais expressas para atribuição de um direito”. No lugar de “exceção às condições legais”, pode-se falar também em ressignificação do fato operativo (FO) 70.

MacCormick (2008, p. 316) entende que a argumentação de exceção implícita está presente em todos os sistemas jurídicos, em face da incapacidade dos conformadores de textos legais e precedentes estabelecerem, previamente, todas as possíveis exceções à aplicação de determinada regra, sobretudo, diante de “casos incomuns” (“circunstâncias anômalas”). Nesse sentido,

A situação especial [leia-se circunstâncias anômalas] ativa algum fator de fundo que vicia excepcionalmente a atribuição de um direito que, não fosse o fator excepcional, não seria problemática. A formulação geral do Direito é adequada se estipular o que é necessário e suficiente para pleitear o Direito nos casos mais comuns, sujeitando-o a qualquer ressalva expressa e a fatores excepcionadores (defeating factores) prontamente previsíveis (ou bem documentados na doutrina, ou estabelecidos no Direito jurisprudencial). A operação de princípios de fundo, porém, pode possibilitar exceções que não podem ser enumeradas taxativamente tendo em vista a possibilidade de casos de um tipo incomum. (MACCORMICK, 2008, p. 316).

Por fim, a argumentação fundada em consequências, como o próprio nome diz, é aquela que invoca as decorrências que a adoção dessa ou daquela premissa poderia resultar. Pode-se indicar consequências práticas, comportamentais ou jurídicas. Esse argumento, ao lado do argumento de exceção, como já dito, compõe o núcleo central do processo argumentativo dos “casos de excessivo rigor”. Portanto, será desdobrado com mais atenção no decorrer da pesquisa.

Se lembrarmos as circunstâncias em que MacCormick (2008) vislumbrou o emprego desses argumentos e cotejarmos com as ideias da Teoria dos Enunciados Jurídicos e Dworkin (2002), mencionados no capítulo anterior, talvez seja possível identificar perspectivas diferentes para o mesmo problema. Explica-se.

A partir das ideias de Dworkin (2002), seguidas e complementadas por Atienza e Manero (1996; 2000), viu-se que, quando as regras se mostram “insuficientes” para solucionar os problemas levados a julgamento, são aos princípios que a autoridade decisora recorre. Foi visto também que, aos olhos de Atienza e Manero (2000), essa “insuficiência” das regras ocorreria quando não existissem regras específicas para regular o caso, ou, ainda que existam, mostram-se vagas ou conflitantes com princípios que permeiam o problema posto à decisão. Esses seriam os casos difíceis, na terminologia utilizada pelos autores.

70 Alexy (2017, p. 93-96, 104, 287, 571) aborda essa questão do argumento de exceção, tratando-o como “cláusula de exceção” que também pode estar expressamente prevista em uma regra posta ou advir de um princípio (o que corresponderia à modalidade implícita da qual estamos tratando).

Cotejando essas ideias de Dworkin (2002) e Atienza e Manero (1996; 2000) com a teoria de MacCormick (2008) e Atienza (2017)71, seria possível chegar a algumas conclusões. Veja. Foi visto que a “insuficiência” das regras corresponde aos “casos difíceis”. Foi visto também que a problematização das premissas torna o processo silogístico um “caso problemático”. Foi dito ainda, no capítulo anterior, que a expressão “casos problemáticos” foi uma opção terminológica de MacCormick (2008) para se referir ao mesmo fenômeno dos “casos difíceis”, portanto, “casos difíceis” e “casos problemáticos” seriam a mesma coisa. Logo, a “insuficiência” das regras (casos difíceis) ocorreria quando as premissas fossem problematizadas no processo silogístico (casos problemáticos).

Se estivermos certos até este ponto, pode-se dizer então que, para resolver um caso difícil/problemático, há uma divergência entre Dworkin (2002), Atienza e Manero (1996; 2000) e MacCormick (2008)? Afinal, o americano e os espanhóis depositam suas fichas nos princípios, como recurso para solucionar esses casos, já MacCormick (2008) atribui aos inúmeros argumentos possíveis, entre os quais os oito ora sistematizados, a missão de imunizar/defender as premissas do processo?

A resposta parece ser no sentido de que MacCormick (2008), embora tenha ampliado a forma de solucionar os casos problemáticos/difíceis ao tratar dos diversos tipos de argumentos, na verdade não difere muito do que Dworkin (2002) e Atienza e Manero (1996; 2000) disseram. Isso porque, sob um olhar mais atento, é possível perceber que a maioria dos argumentos mencionados por MacCormick (2008) – pelo menos os mais relevantes –, de alguma forma, contará com princípios e valores na sua construção.

Note que, se estivermos certos, então se pode dizer que, se para MacCormick (2008) a tipologia de argumentos serve não só para imunizar/defender as premissas, mas também problematizá-las, tornando o caso problemático/difícil, então seria correto dizer que o julgador pode invocar princípios não só para solucionar o caso difícil/problemático trazido perante ele, mas também para problematizar os casos fáceis/claros na busca por uma solução mais adequada, no sentido moral, justo, de correção.

Feita essa rápida exposição (e digressão), é possível passar aos critérios de avaliação da justificativa de uma decisão judicial.

71 A menção ao autor espanhol, nesse caso, diz respeito às causas de problematização propostas por ele e assumidas nesta pesquisa (problemas de ponderação e de discricionariedade).

2.3 OS CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO DA JUSTIFICATIVA DE UMA