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Compreender a essência dos AC 2463/2008 (BRASIL, 2008b) e AC 3381/2013 (BRASIL, 2013a) é fundamental para fixar os limites propostos do que temos denominado aqui de “casos de excessivo rigor”. Este será o objetivo da presente seção.

Esses dois acórdãos julgaram Representações, formuladas por empresas licitantes inconformadas com a saída do certame57. As decisões pela inabilitação/desclassificação foram exaradas pelos agentes responsáveis pela condução do certame, sob argumento das empresas terem descumprido as regras do Edital. As empresas não questionam as exigências do Edital e até admitem que não lhe deram fiel cumprimento, mas contestam a retirada da disputa, por entender que a cobrança de cumprimento das regras do certame não poderia ser tão rigorosa. Em ambos os casos, a Corte não questiona a licitude nem a clareza das regras do instrumento convocatório e reconhece que as empresas, de fato, falharam no seu cumprimento, todavia, considerando que elas apresentaram a oferta de preço mais vantajosa, não poderiam, na perspectiva do TCU, terem sido retiradas da disputa da maneira como foram.

Note que a conduta tomada pelos agentes (retirada das licitantes da disputa), estaria sustentada pelo sentido mais imediato das regras dispostas nos Arts. 41, caput e §4º; 45, caput; e 48, Inc. I, da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993). E isso também foi reconhecido pelo Plenário do TCU. Entretanto, a Corte invocou uma interpretação mais moderada dos dispositivos, em observância a princípios do Direito, associados a uma análise de consequências, como o risco de se contratar preços menos vantajosos.

As Unidades Técnicas que instruíram os processos propuseram, nos dois acórdãos, a aplicação de multa aos agentes envolvidos na condução do certame, entretanto, o Plenário, apesar de reconhecer a reprovabilidade da conduta, decidiu pelo não sancionamento. No AC 2463/2008, o argumento empregado para afastar a punição foi no sentido de que o agente “se amparou na legislação, nas exigências editalícias e em pareceres técnicos” e de que não houve a configuração de dano ao Erário, pois o pregão foi revogado (ainda que em função da atuação

57 No caso do AC 2463/08, a empresa foi inabilitada, e no AC 3381/13, desclassificada. Ainda que se perceba uma certa atecnia no uso dessas expressões na prática administrativa e até em acórdãos do TCU, à luz da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993), elas têm significados diferentes. A “desclassificação” diz respeito à proposta do licitante que é excluída da disputa (desclassificada), por não atender a exigências do Edital. A “inabilitação”, por seu turno, diz respeito à pessoa do licitante, que não reuniu condições suficientes para atender ao objeto da licitação – ou não comprovou adequadamente reunir tais condições. A inabilitação pode ser relativa à capacidade técnica, jurídica ou econômico-financeira da licitante. De toda sorte, a expressão “retirada da disputa” (ou similares) é genérica, portanto, pode se referir tanto à desclassificação como à inabilitação.

da Corte). No AC 3381/2013, o argumento do Plenário foi “que nenhuma despesa indevida se materializou, dada a atuação preventiva deste [daquele] Tribunal”.

Note-se que o TCU enquadrou a conduta dos agentes como irregular58. Portanto, ainda que não tenham penalizado os agentes, esse risco não está afastado em casos futuros em relação a outros agentes, já que, apesar dos acórdãos só terem efeito vinculante para as partes envolvidas (portanto, apenas persuasivo perante agentes públicos e particulares estranhos aos casos julgados), na prática, o que se observa, como já dito em linha anteriores, é um efeito dessas deliberações para além dos envolvidos, na medida em que a Corte utiliza entendimentos consignados, em acórdãos pretéritos, para julgar casos presentes análogos, envolvendo terceiros.

Há ainda um outro ponto interessante tratado pelos dois acórdãos. O Relator do AC 3381/2013, cujo voto foi plenamente acolhido pela Corte, disse que as regras dispostas no Art. 41 da Lei 8.666/93, “devem ser entendidas como prerrogativas do poder público, que deverão ser exercidas mediante a consideração dos princípios basilares que norteiam o procedimento licitatório, dentre eles, o da seleção da proposta mais vantajosa para a administração [sic]” (BRASIL, 2013a, p. 9). Indo mais além, o Relator consigna que

no caso, portanto, caberia ao pregoeiro utilizar-se, zelosamente, da possibilidade de encaminhar diligência às licitantes (art. 43, § 3º, da Lei nº 8.666/1993), a fim de suprir as lacunas quanto às informações dos equipamentos ofertados, medida simples que poderia ter oportunizado a obtenção de proposta mais vantajosa. (BRASIL, 2013a, p. 9; Grifo nosso).

O Revisor do AC 2463/2008, após transcrever o Art. 43, §3º, da Lei 8.666/1993, diz que:

[…] poderia o Pregoeiro ter adotado medidas no sentido de possibilitar a habilitação das empresas [...] antes de se decidir em definitivo pela inabilitação das mesmas, tendo em vista que os preços ofertados pelas referidas empresas eram mais vantajosos para a administração. No entanto, não se pode afirmar que, se promovidas diligências ou adiamento da apresentação dos documentos pendentes, as empresas restariam aptas a serem contratadas. (BRASIL, 2008b, p. 16; Grifo nosso).

58 As hipóteses de irregularidades estão dispostas no Art. 16, da Lei 8.443/92 (BRASIL, 1992). “Art. 16. As contas serão julgadas:

[...]

III - irregulares, quando comprovada qualquer das seguintes ocorrências: a) omissão no dever de prestar contas;

b) prática de ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou patrimonial;

c) dano ao Erário decorrente de ato de gestão ilegítimo ao antieconômico; d) desfalque ou desvio de dinheiros, bens ou valores públicos.

§ 1° O Tribunal poderá julgar irregulares as contas no caso de reincidência no descumprimento de determinação de que o responsável tenha tido ciência, feita em processo de tomada ou prestarão de contas.”.

A “diligência” destacada nos excertos consta da parte inicial do §3º, do Art. 4359, que, a partir da literalidade da regra, tem caráter facultativo. Nos termos colocados no AC 3381/2013, estaria o Relator mudando a natureza deôntica da parte inicial da regra do §3º, do Art. 43, de facultativa para obrigatória? E como fica, aos olhos da Corte, o cumprimento da parte final daquele dispositivo que veda “a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originariamente da proposta”? No AC 3381/2013, o licitante retirado da disputa deixou de informar, em sua proposta, a marca e o modelo do produto que estava ofertando, exigência obrigatória do Edital e autorizada pelo ordenamento60. Autorizar que o licitante repare sua proposta, incluindo a informação de marca e modelo não estaria proibido pela mencionada parte final da regra do §3º, Art. 43, ou esse tipo de reparação, na visão daqueles ministros, não seria “classificada”61 como “documento ou informação que deveria constar originariamente da proposta”, condição de aplicação (o FO) da regra de proibição, da parte final do dispositivo em tela? Qual o critério utilizado pelos acórdãos para definir que falhas se enquadram na regra final do §3º, Art. 43, da Lei 8.666/93 (BRASIL, 1993)? O agente não poderia vir a ser responsabilizado por favorecimento, caso permita o saneamento de falhas por licitantes que descumprirem o Edital? Qual seria o critério, para o TCU, que definira o limite entre o favorecimento e a ampliação da competitividade?

Não é possível responder nenhuma dessas perguntas a partir das disposições consignadas no AC 2463/2008 e 3381/2013. As indagações em aberto dão espaço para que se questione ainda se as decisões estão justificadas racionalmente quanto aos critérios da universalidade, consistência, coerência e adequação das consequências, afinal, as Decisões, sem maiores explicações, problematizaram a aplicação de “regras legisladas de mandato sem conceitos jurídicos indeterminados”, substituindo-as por regra jurisprudencial com conceitos vagos e imprecisos. Em outras palavras, há de se perguntar se as razões argumentativamente

59 “Art. 43. A licitação será processada e julgada com observância dos seguintes procedimentos: [...]

§ 3o É facultada à Comissão ou autoridade superior, em qualquer fase da licitação, a promoção de diligência destinada a esclarecer ou a complementar a instrução do processo, vedada a inclusão posterior de documento ou informação que deveria constar originariamente da proposta”.

60 Cabe aqui um breve esclarecimento, quanto à exigência de marca/modelo, para os leitores que, por ventura, não tenham familiaridade com o ambiente licitatório. O Art. 7º, § 5º e 15, §7º, ambos da Lei 8.666/93, proíbem que a Administração especifique a marca do produto a ser adquirido, salvo em situações específicas, tecnicamente justificáveis. A ideia é ampliar a competitividade e evitar favorecimentos. Por outro lado, é permitido, e até recomendado, que a Administração exija que o licitante inclua a marca do produto ofertado, como forma de evitar que ele proponha um produto da marca “X” e entregue outro, talvez inferior. É da exigência de se informar a marca/modelo na proposta que se está a tratar aqui.

articuladas para construir o entendimento dessa regra jurisprudencial equilibra-se com o ideal da previsibilidade.

Na busca por dar respostas a essas indagações, pelo menos em relação aos acórdãos mais recentes, foram selecionadas decisões do TCU que empregaram o argumento do “excessivo rigor” e “formalismo moderado” e construções similares, no mesmo contexto e com a presença dos mesmos elementos argumentativos dos Acórdãos 2463/2008 e 3381/2013. Quais sejam:

Contexto:

a) Disputa licitatória, visando a contratação de particular (pessoa física ou jurídica), pela Administração, para a realização de obras, bens ou serviços, mediante contraprestação pecuniária, ou seja, uma contratação administrativa; e

b) As expressões “excessivo rigor”, “formalismo moderado” ou similares utilizadas para se referir a conduta de agentes públicos.

Elementos argumentativos:

a) Existe uma acusação que registra a retirada de licitante da disputa, por decisão de agentes públicos encarregados do certame, sob o argumento de violar regra editalícia;

b) É indiferente para a pesquisa a origem da acusação (denúncia, representação formulada pelo licitante prejudicado, Ministério Público, Unidade Técnica, outros);

c) A Corte, ao julgar o caso, reconhece que: 1) de fato, houve violação da regra do Edital, por parte da licitante; 2) a regra editalícia violada era clara, não dava margem a dúvidas sobre o que exigia do licitante; e 3) a regra do Edital é lícita;

d) A acusação não contesta a licitude da regra do edital;

e) A regra que sustentaria, prima facie, a retirada dos licitantes da disputa é uma “regra legislada de mandato sem conceito jurídico indeterminado”.

Além do contexto e dos elementos argumentativos ora fixados, há ainda um aspecto taxonômico que é bom ficar bem esclarecido. Por tudo o que foi exposto até aqui, parece ter ficado evidente que os “casos de excessivo rigor” são “casos problemáticos” (casos difíceis). É importante ressaltar isso, pois as preocupações teóricas que orientaram o segundo e terceiro capítulos desta dissertação, concentraram-se exclusivamente em casos problemáticos.

Passa-se à seleção das decisões.