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Como já tratado, a parte de uma lide (judicial ou administrativa) quando elabora seu pleito, o faz construindo seu raciocínio dentro de uma moldura silogística demonstrativa, trabalhando cada uma das premissas do processo de forma que fiquem imunizadas quanto às tentativas de problematização advindas tanto da outra parte, como do decisor.

Quando o objetivo da parte for contestar o pleito da outra ou recorrer de decisão, além da preocupação em imunizar suas premissas, é natural que busque problematizar as premissas do adversário ou da decisão recorrida.

E é neste campo de batalha argumentativa que a decisão é prolatada. Nessa tarefa, o que se espera do julgador contemporâneo é que ele centre suas atenções em reunir argumentos satisfatórios (sejam eles próprios, aproveitados das partes ou do julgador ad quo, no caso de recursos) para enfraquecer, por meio da problematização, as premissas consideradas desinteressantes ao caso e sustentar aquelas que julgar pertinentes. Nessa dinâmica de ataque, defesa, imunização e justificação, o instrumento de manobra é a combinação das sete razões de problematização e dos diversos tipos de argumentação, utilizados para problematizar ou sustentar as premissas contra a problematização, conforme foi visto.

Todavia, como o manejo desses instrumentos poderá resultar em decisões aceitáveis à luz do paradigma do Estado de Direito Constitucional? Em outras palavras, como o uso desses argumentos – seja para problematizar ou defender premissas – poderá se equilibrar com o ideal de previsibilidade do Direito?

Responder essas perguntas é o objetivo da presente seção, cerne deste capítulo. Para isso, a exposição foi conduzida a partir das teorias de MacCormick (2008) e Atienza (2017), por entender que as ideias desses autores oferecem boas contribuições nesse sentido. Vejamos. Para o autor escocês, como já foi mencionado nas linhas introdutórias e no primeiro capítulo da dissertação, a chave para alcançar o equilíbrio entre a dimensão argumentativa e a previsibilidade do Direito é a formulação de decisões racionalmente justificadas, por meio do atendimento dos requisitos da universalidade (retrospectiva e prospectiva), consistência, coerência (normativa e narrativa) e adequação das consequências. Em outras palavras, esses requisitos serviriam para balizar a autoridade julgadora na tarefa de fundamentar sua decisão dentro da exigência de racionalidade do paradigma do Estado Constitucional.

Tais requisitos, como já visto também, estão positivados na ordem jurídica brasileira, em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, como exigências para uma decisão aceitável. Na visão de Atienza (2017), além de servirem ao julgador, os requisitos também

serviriam à sociedade, como critérios de avaliação da qualidade da decisão. Para o autor espanhol, esses critérios fortaleceriam o controle público da atuação dos juízes, aferindo os fundamentos consignados na decisão quanto à aderência ao paradigma do Estado Constitucional de Direito.

Atienza (2017) menciona ainda outros critérios. Um elementar, como o que avaliaria se o decisor justificou as razões de sua deliberação. Isso não ocorrendo, a decisão não teria como ser acolhida pelo paradigma do Estado Constitucional. Outros mais complexos, que teriam sido apontados por outros autores, como o da moral social e o da moral justificada. Entretanto, diante das controvérsias em torno desses critérios, destacadas pelo próprio Atienza (2017), não parece plausível, aos olhos deste pesquisador, incluí-los neste trabalho.

Importante destacar que, embora MacCormick (2008) não apresente os requisitos como critérios para avaliar decisões, essa seria uma ideia implícita em sua teoria. Afinal, a exigência de se construir os fundamentos da decisão guiados por determinados requisitos, que consubstanciariam exigências dos ideais do Estado de Direito contemporâneo, permite que se utilize esses mesmos requisitos como instrumentos para avaliar se a decisão está acolhida pelos ideais do Estado de Direito contemporâneo. Portanto, a proposta de Atienza (2017) é um convite à mudança de perspectiva, a partir desses requisitos, de modo a agregar a eles o viés de controle estatal, presente nas aspirações fundantes do Estado de Direito.

Sendo assim, a pesquisa se restringiu aos seguintes critérios para avaliar as decisões selecionadas: o que trata da exigência de justificação; a universalidade (retroativa e prospectiva); a consistência; a coerência (normativa e narrativa) e a adequação das consequências, este último também com subdivisões, que estão tratadas mais à frente. O primeiro dispensa qualquer apresentação, de modo que, nas próximas seções, somente os quatro últimos critérios estão trabalhados.

Atienza (2017) ressalva que é possível falar em alguma objetividade desses requisitos como critérios de avaliação de decisões, entretanto essa seria uma objetividade moderada. Na perspectiva do autor, assumida neste trabalho, os critérios não apontam a decisão certa para o caso concreto, mas ajudam a excluir aquelas não corretas, a partir da avaliação dos argumentos que as justificaram. Essa é uma consideração importante que se precisa ter em mente para a compreensão dos limites deste trabalho. Aliás, é importante aditar que essa limitação dos critérios de avaliação está em consonância com o espírito que move os autores que vêm protagonizando a teorização da argumentação jurídica a partir dos anos 70 do século passado – movimento que Atienza (2016; 2017) vem chamando de Teoria Standard da Argumentação Jurídica.

Na visão dos argumentativistas standards – que se enquadram MacCormick e Alexy –, entre os propósitos do estudo da dinâmica do discurso desenvolvido no ambiente jurídico, em especial das decisões dotadas de autoridade, está o de colaborar com a ideia de controle do poder estatal que inspira o Estado de Direito. O máximo que a Teoria Standard da Argumentação Jurídica pretende, nesse aspecto, seria apontar as respostas discursivamente possíveis, não necessariamente a resposta certa, embora isto possa acontecer quando só há uma resposta discursivamente possível – o que é difícil, diante dos problemas relacionados à indeterminação própria da linguagem, ao dinamismo social e à dimensão valorativa que marcam o Direito contemporâneo72.

Nessa tarefa de controle das decisões, a Teoria da Argumentação Jurídica Standard tem como pressuposto o reconhecimento de que os mencionados problemas abrem espaço para convicções de ordem subjetiva do decisor que precisam ser controladas. A questão da (i)legitimidade das decisões fundadas em convicções pessoais passa por discussões que não cabem na proposta do presente estudo. Todavia, com fins de delimitar premissas mínimas sob as quais se pretende orientar a pesquisa, parte-se do reconhecimento de que a tomada de decisão é um processo complexo, composto por momentos psíquicos (contexto da descoberta) e momentos de exteriorização (contexto da justificação), e que não é possível garantir que a autoridade julgadora isolará suas experiências e vivências pessoais a ponto de não influenciarem sua deliberação, já que o momento psíquico é intangível e incontrolável. Isso posto, a partir das ideias dos autores que marcam teoricamente esta dissertação, exige-se, ao menos, como forma de aferir a legitimidade das decisões e com isso garantir a própria sobrevivência do Estado de Direito – entendido com todos seus ideais –, que o momento de exteriorização seja preenchido com fundamentos objetivos, de forma a garantir sua controlabilidade. Em resumo, a ideia de decisões fundamentadas em convicções pessoais, aqui mencionada, deve ser compreendida no sentido de decisões sem uma justificação objetivamente aferível73.

Voltando aos propósitos desta parte da pesquisa, é preciso explicar a forma como estão apresentados os critérios de avaliação. As três primeiras seções apresentam individualmente os critérios/requisitos da universalidade (retrospectiva e prospectiva), consistência e coerência. A última seção tem dois objetivos. Um é a apresentação do critério/requisito da adequação das

72 Nesse sentido ver Alexy (2001, p. 29, 201, 260-66 et passim), Atienza (2016, p. 213-216) e MacCormick (2008, p. 23). Este último parece utilizar a expressão “racionalmente defensável” com uma conotação muito próxima da ideia do “discursivamente possível”.

consequências. O outro, a conformação de um Roteiro de Avaliação – dividido em duas partes – passível de ser aplicado não só nas decisões selecionadas, mas em qualquer outra decisão jurídica proferida dentro do paradigma do Estado Constitucional. A opção por reunir em uma só seção esses dois objetivos deve-se ao fato de que a boa compreensão da “adequação das consequências” passa necessariamente pela sua interação com os demais critérios/requisitos. A construção do Roteiro de Avaliação também exigiu um exame apurado de como os critérios/requisitos interagem entre si. Portanto, pareceu ser mais eficiente uma seção que abrigasse tanto o sobredito critério/requisito, como o Roteiro.

Entretanto, é importante destacar que mapear a interação entre os critérios/requisitos não foi uma tarefa fácil. Explica-se. Como foi dito nas linhas introdutórias desta pesquisa, as propostas de MacCormick (2008) e Atienza (2017) destacam-se pelo didatismo com que desdobram esses critérios/requisitos. Entretanto, a integração entre eles não é algo que verte claramente das obras. As interfaces que eventualmente os autores fazem entre esses critérios/requisitos se dá de forma esparsa e desarticulada. O desafio da última seção, portanto, foi organizar e sistematizar a interação entre esses critérios/requisitos de maneira que fosse possível compreender satisfatoriamente a adequação das consequências ao mesmo tempo em que pudesse ser construído um “Roteiro de Avaliação” de decisões. Acredita-se que esse objetivo tenha sido alcançado. Vejamos.