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A presente seção mostra concepções distintas das apresentadas no presente capítulo e os contrapontos que entendemos pertinentes.

Nesse sentido, Torres (2011), a partir das ideias de Antonio-Enrique Pérez, afirma que a segurança jurídica, no contexto do Estado Constitucional de Direito, significa assegurar a concretização dos valores constitucionais que concorrem para a continuidade axiológica do próprio Estado contemporâneo e cita, como exemplo, “as garantias de liberdades, propriedade e igualdade, os direitos fundamentais, a jurisdição constitucional, a separação de poderes, a sujeição à legalidade dos atos administrativos, as garantias em relação ao Estado”, entre outros (TORRES, 2011, p. 164).

Indo mais além, o mencionado autor afirma que

a segurança jurídica corrobora o postulado do Estado submetido integralmente à ordem jurídica e à Constituição e seus valores. Um domínio cuja evolução confunde-se com a própria passagem do Estado Absoluto ao Estado de Direito, deste, ao Estado Constitucional de Direito (TORRES, 2011, p. 164).

E continua dizendo,

Nesse modelo, a segurança jurídica não é uma simples derivação do princípio do “Estado de Direito”, mas uma garantia de direitos e liberdades fundamentais e, ao mesmo tempo, proteção do Estado, na sua maior amplitude, como garantia de todo o sistema normativo. (TORRES, 2011, p. 165).

As colocações do autor demonstram uma noção de segurança jurídica que aparentemente difere da que assumimos nesta pesquisa. Entretanto, se visto mais de perto, ao considerarmos que a previsibilidade é ferramenta da promoção da liberdade e igualdade, pilares da fundação do Estado de Direito, é possível encontrar uma convergência com as ideias de Torres (2011) e de Antonio-Enrique Pérez.

No que diz respeito à concepção argumentativista, assumida nesta pesquisa, de que o controle do discurso decisório pode, em alguma medida, contribuir para a garantia dos valores e ideais do Estado de Direito, Enrique Haba faz algumas oposições. O autor da Universidad de Costa Rica é um dos críticos mais combativos da Teoria da Argumentação Jurídica (TAJ) da atualidade.

Por meio de dois artigos publicados na Revista Doxa, em 2010 (HABA, 2010a; 2010b76), o autor critica o posicionamento dos autores que nos referimos como enquadrados na Teoria Standard da Argumentação Jurídica (TSAJ). Em linhas gerais, pode-se dizer que Haba (2010a; 2010b) acusa a teoria standard de elaborar modelos argumentativos que não correspondem à realidade da prática jurídica.

Haba (2010a) sustenta seu posicionamento sobre diversos pontos, entre os quais se destacam três. O primeiro seria que a TSAJ ignoraria elementos de ordem extrajurídica que inevitavelmente influenciam a atuação de juízes, como a pré-compreensão a respeito de temas a serem julgados, a opinião pública, a sobrecarga de processos, entre outros. O segundo ponto levantado por Haba (2010a) seria que a TSAJ confundiria elementos normativos e descritivos, de modo que, muitas vezes, apresenta como prática dos juristas aquilo que, na verdade, é uma aspiração. O terceiro ponto da crítica do professor da Costa Rica seria que a TSAJ evitaria enfrentar um problema grave e muito presente na rotina dos debates jurídicos, a “Síndrome

Normativista”. Segundo o autor (HABA, 2010a, p. 334-335), este fenômeno consistiria em sete “vícios de argumentação”77 comuns nos discursos jurídicos e que corresponderiam ao que se conhece por falácias, erismas e paralogismos.

No que diz respeito ao primeiro ponto, tem-se que a relação entre o contexto da descoberta e o da justificação, assumida pela TSAJ, e mencionada em seção anterior deste capítulo, parece demonstrar que os argumentativistas não ignoram os elementos extrajurídicos, apenas pressupõem controlá-los no momento em que ele é exteriorizado, vale dizer, na prolatação das decisões.

A confusão entre a natureza descritiva e prescritiva que constituiu o segundo ponto da crítica de Haba (2010a), de fato, ocorre, sobretudo se considerada a TAJ alexyana. As vinte e duas regras e seis formas de argumentar do discurso prático geral de Alexy (2001) carregam uma natureza híbrida. Ao mesmo tempo em que apontam a lei, os precedentes, a dogmática, os cânones de interpretação e os argumentos especiais de argumentação, como institutos que já fazem parte da prática jurídica, como argumentos de justificação externa, também revelam um tom prescritivo quando tratam da estrutura do discurso jurídico, parecendo apresentar o modelo de justificação interna e a externa como condição indispensável para a racionalidade e correção do discurso jurídico.

Apesar da sobredita confusão, é coerente o posicionamento de Atienza (2010c), quando, ao responder as críticas de Haba (2010a; 2010b), afirma ser equivocada a busca por uma distinção precisa do caráter descritivo ou prescritivo da TSAJ, como pretendeu o professor da Costa Rica. Sem desmerecer a importância da distinção em certas ocasiões, o autor espanhol entende que o estudo da argumentação jurídica deve se pautar por uma natureza “reconstrutiva”, i.e., combinando os elementos descritivos e prescritivos (ATIENZA, 2010b, p. 408). O autor espanhol parece ter levado este entendimento a cabo, quando, em sua obra “Curso de Argumentação Jurídica”, (ATIENZA, 2017), publicada originalmente em 2013, teoriza a análise e avaliação dos argumentos jurídicos, destacando o caráter híbrido dos mesmos78.

Chega-se, por fim, ao terceiro ponto de sustentação da crítica de Haba (2010a) – a omissão da TSAJ no enfrentamento da Síndrome Normativista. Esta parece realmente ser uma falha dos argumentativistas. Havia certo “silêncio sepulcral” – valendo-se da expressão utilizada por Haba (2010a) – em torno da questão das falácias, erismas e paralogismos. Atienza (2010c), numa tentativa de justificar essa falta, colocou em dúvida as afirmações do autor da Costa Rica, quanto à frequência massiva com que os sobreditos vícios de argumentação

77 “vicios de razonamiento”, conforme Haba (2010a, p. 334). 78 Pressupostos utilizados nesta pesquisa.

ocorreriam na prática jurídica diária, ventilando, inclusive, a ausência de elementos empíricos que comprovassem esta afirmação79.

Ainda que uma eventual investigação concluísse que os vícios em comento fossem raros no dia a dia da prática jurídica, isso não diminuiria a importância de detectá-los. A controlabilidade dos argumentos jurídicos é a proposta mestra dos principais teóricos da argumentação jurídica standard. Desse modo, torna-se inafastável a necessidade de identificar a presença de erismas, paralogismos ou falácias, já que se tratam de elementos retóricos com potencial para induzir o interlocutor ao erro, ameaçando a racionalidade do discurso. A mera potencialidade da ocorrência de uma ameaça à racionalidade já é suficiente para justificar seu controle. Não se faz necessário aferir a quantidade de ocorrência desta ou daquela ameaça para, só então, preocupar-se em controlá-las.

No “Curso de Argumentação Jurídica”, como visto, publicado três anos depois dos referidos artigos, Atienza (2017) dedica-se, de forma um pouco mais detida80, aos estudos dos vícios de argumentação. Entretanto, diante dos riscos que tais vícios podem oferecer à racionalidade do discurso, os instrumentos teóricos oferecidos naquela obra ainda parecem modestos para o enfrentamento do tema. Na verdade, ainda que a valorização da concepção pragmática da argumentação, promovida Atienza (2017), tenha contribuído para o aprimoramento da TSAJ, é evidente a posição secundária que o autor destinou à retórica, se comparada à dialética, ponto que revela oportunidade de melhoria para o futuro da teoria.

79 Atienza (2010b, p. 407) aponta ainda que Alexy e Aarnio enfrentaram o tema, porém de forma superficial. 80 Se comparado à obra “Razões do Direito” (Atienza, 2016).

3 UM MÉTODO DE ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DE DECISÕES

Como dito nas linhas introdutórias desta pesquisa, a avaliação de uma decisão pressupõe uma etapa anterior: sua análise. E é este o objetivo deste capítulo, propor um Método de Análise capaz de servir não só às decisões selecionadas de “casos de excessivo rigor” mas para qualquer decisão judicial ou administrativa.

Como já mencionado nas linhas introdutórias desta pesquisa, a análise de uma decisão pressupõe – na perspectiva de Atienza (2017), assumida neste trabalho – compreender que a dimensão argumentativa do Direito abarca, de forma integrada, os componentes (ou enfoques) inferencial, material e pragmático.

O componente inferencial refere-se à estrutura silogística que emoldura – valendo-se da expressão de MacCormick (2008) – o processo argumentativo jurídico. Foca-se na relação de justificação interna81 entre as premissas. Sob este enfoque, a inferência tem natureza dedutiva e indutiva. Na dedutiva, sendo as premissas verdadeiras, necessariamente a conclusão também o será. Na indutiva, a passagem das premissas para a conclusão se dá por meio de um juizo de probabilidade. Citando Alchourron (1995), Atienza (2017) diz que a lógica dedutiva é reflexiva, monótona e transitiva. Reflexiva porque a conclusão não contém nada que já não estivesse na premissa. Transitiva, pois as conclusões advêm exclusivamente das premissas. Monótona, pois, mesmo que se adicionem novas premissas, a inferência seguirá até a mesma conclusão. Todavia, o raciocínio jurídico e a vida cotidiana não são monótonos, e nem sempre reflexivos e transitivos. Lacunas, antinomias, indeterminações da linguagem e valorações são fatores que, como já mencionado e reconhecido por Atienza (2017), tornam o componente inferencial insuficiente para dar conta argumentativamente da solução jurídica.

O componente material leva em consideração o conteúdo das premissas do discurso jurídico, sejam as fáticas ou as normativas82. O enfoque material se debruça sobre a validade da premissa, aferindo a qualidade dos argumentos apresentados para sustentá-la (justificação externa). É em relação ao enfoque material que ocorrem as problematizações mencionadas no primeiro capítulo da pesquisa, onde os envolvidos lançam dúvidas sobre questões de relevância, aferição, classificação, etc.

81 Segundo Atienza (2016), a concepção e a terminologia relativa às justificações interna e externa (esta última mencionada mais à frente) foram esculpidas por Wróblewski (1971; 1974), sendo amplamente acolhidas pela comunidade jurídica.

82 De natureza autoritativa, onde se inclui as regras; e valorativa (ou substantivas), onde entram os princípios.

O componente pragmático, segundo Atienza (2017), centra-se nos atores da argumentação jurídica e seus papéis na disputa pelo Direito a ser aplicado. Aqui, o enfoque é no objetivo – ainda que presumido – do acusado (defender-se dos ataques), do acusador (por meio do ataque, buscar seus interesses – pessoais ou institucionais, estes últimos, no caso de entes públicos, como Unidades Técnicas do TCU, Ministério Público, etc.) e do julgador (promover a justiça). Sob esse aspecto, atenta-se ao uso estratégico da linguagem.

Portanto, ao analisar (e também avaliar) o discurso de justificativa de uma decisão, o pesquisador deve fazê-lo, integrando esses três enfoques. Mas como proceder essa análise? Existe alguma método próprio?

Atienza (2017) aborda essa questão afirmando que qualquer método é válido, desde que permita identificar os elementos argumentativos presentes no discurso decisório, isolá-los, mapear a relação entre eles e então organizá-los dentro de uma estrutura que viabilize compreender a decisão de forma crítica e comparativa.

Na busca por um ponto de partida para a elaboração de um método de análise que servisse para os “casos de excessivo rigor”, este pesquisador o encontrou na Teoria dos Ilícitos Atípicos, de Atienza e Manero (2000). Na seção seguinte explicamos as razões desta escolha.