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CONSTITUCIONAL

Encetando os caminhos da presente pesquisa, esta seção, além de estabelecer alguns limites da investigação, visa mostrar que as decisões do TCU têm papel importante na orientação da prática administrativa e na conformação do Direito Administrativo, haja vista o forte aparato sancionatório disponível àquela Corte e o hábito dos Ministros invocarem decisões anteriores para justificar o caso presente.

Admitir isso é equiparar as deliberações do TCU a qualquer outra decisão jurídica emanada no contexto do Estado de Direito contemporâneo com potencial de interferência na vida das pessoas. Isso porque, assim como MacCormick (2008), reconhecemos que, no momento vivido pelo Estado de Direito entre as nações ocidentais, as decisões jurídicas22 têm participação ativa na construção do Direito, independente do sistema jurídico (civil law, common law ou misto), da organização normativa adotada (constitucional ou não constitucional) e da natureza do precedente (persuasivo ou vinculante). Portanto, em menor ou maior grau, a depender dos fatores mencionados e da estatura da autoridade julgadora dentro da organização institucional na qual está enquadrada, o Direito jurisprudencial constitui-se como fonte para o julgamento do caso presente e orienta os indivíduos na adoção de condutas futuras. Nas palavras de MacCormick (2008, p. 309):

[…] em contextos em que não há, ou que haja pouco Direito legislado, predomina o Direito jurisprudencial (case-law), e naqueles em há Direito legislado, este é inevitavelmente circundado por uma auréola de precedentes interpretativos [...] Aqui, a esperança por certeza também aparece, tomando a forma de um desejo por decisões jurídicas claramente articuladas sobre os pontos de dúvidas que surgiram. (MACCORMICK, 2008, p. 309).

Esse reconhecimento do papel da decisão jurídica na conformação do Direito é o que justifica a preocupação em controlá-las, por meio do seu discurso de justificação, avaliando seu compromisso com a racionalidade, portanto aferindo seu empenho em equilibrar a

22 A expressão “decisões jurídicas” tem uma concepção bem abrangente dentro da terminologia de MacCormick (2008). Nelas estariam incluídas todas as decisões, com base no Direito, que gozem de alguma autoridade coercitiva imediata de natureza estatal ou supranacional.

previsibilidade e a dimensão argumentativa do Direito. Sendo assim, seria possível dizer que as decisões do TCU – assim como as decisões judiciais – estariam também sujeitas às exigências de equilíbrio entre os ideais do Estado Constitucional, devendo, portanto, atender aos requisitos de consistência, coerência, universalidade e adequação às consequências. Foi buscando desdobrar essas ideias e, ao mesmo tempo, limitar alguns elementos desta pesquisa, que se conduziu a presente seção. Vejamos.

O Art. 67, do Regimento Interno daquela Corte (BRASIL, 2011b), estabelece suas formas de deliberação23. Como foi tratado na Introdução, são os acórdãos relacionados à fiscalização e ao julgamento de contas que têm a possibilidade de intervir, de maneira coercitiva, na vida dos agentes. Portanto, será a essa espécie de deliberação que a pesquisa se dedicará e estará se referindo, quando utilizar o termo “acórdão”, “decisão”, “deliberação”.

A Lei Orgânica do TCU (BRASIL, 1992) disponibiliza à Corte um forte aparato para o sancionamento de irregularidades. O entendimento pela irregularidade do ato do agente pode sujeitá-lo a dois tipos de sanções, por parte da Corte: a multa e a inabilitação para o exercício de cargo ou função de confiança. Cabe frisar que essas serão as penalizações as quais esta pesquisa se referirá, ao considerar os reflexos pessoais e profissionais decorrentes da natureza aflitiva do aparato sancionatório do TCU. Vale dizer, não serão considerados aspectos relacionados à improbidade administrativa e à responsabilização na esfera penal.

A obrigação de reparação do Erário, embora não tenha natureza sancionatória, pode ser considerada como uma repercussão importante decorrente do reconhecimento, por parte do TCU, da irregularidade da conduta do agente. Isso porque a Corte tem a competência legal de assegurar a recomposição do patrimônio público federal24 e tal medida pode ter impactos relevantes na vida dos agentes.

23 “Art. 67. As deliberações do Plenário e, no que couber, das câmaras, terão a forma de:

I – instrução normativa, quando se tratar de disciplinamento de matéria que envolva pessoa física, órgão ou entidade sujeita à jurisdição do Tribunal;

II – resolução, quando se tratar de:

a) aprovação do Regimento Interno, de ato definidor da estrutura, atribuições e funcionamento do Tribunal, das unidades de sua Secretaria e demais serviços auxiliares;

b) outras matérias de natureza administrativa interna que, a critério do Tribunal, devam revestir-se dessa forma;

III – decisão normativa, quando se tratar de fixação de critério ou orientação, e não se justificar a expedição de instrução normativa ou resolução;

IV – parecer, quando se tratar de: a) Contas do Presidente da República;

b) outros casos em que, por lei, deva o Tribunal assim se manifestar;

V – acórdão, quando se tratar de deliberação em matéria da competência do Tribunal de Contas da União, não enquadrada nos incisos anteriores.”.

Portanto, o TCU, seja em sua atividade de julgamento de contas, seja na atividade de fiscalização, poderá sancionar aqueles que cometem irregularidades administrativas com a aplicação de multa e com a inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança. O valor da multa obedece a dois limites distintos. Se a irregularidade tiver ensejado dano ao Erário quantificável, o teto da multa a ser aplicada pelo TCU é fixado em “cem por cento” do valor do dano, conforme o Art. 57, da Lei 8.443/92 (BRASIL, 1992). No caso de irregularidades que não tenham resultado em danos ao Erário ou esse não seja passível de quantificação, o teto é fixado anualmente por meio de portaria do TCU, em face dos indiciadores econômicos25.

A inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança tem duração mínima de cinco e máxima de oito anos e é aplicada em casos de irregularidades graves, conforme preceitua o Art. 60, da Lei 8.443/92 (BRASIL, 1992). O reconhecimento da gravidade da irregularidade, para fins da sobredita inabilitação, deve se dar pela maioria absoluta dos Ministros. Esse entendimento pode ser extraído do já citado Art. 60, e ainda do Art. 270, do Regimento Interno da Corte de Contas.

Segundo o Relatório de Maio e Junho de 2018, do Observatório do TCU, do Grupo Público da FGV Direito SP e da Sociedade Brasileira de Direito Público (GP/FGVDIREITOSP & SBDP, 2018b), ao longo de 2017, por exemplo, a Corte condenou 2.706 pessoas ao ressarcimento de débito, ao pagamento de multa ou à inabilitação para o exercício de cargo em comissão. Segundo o relatório, esse número representa apenas cerca de 0,15% do total de pessoas trabalhando em órgãos ou entidades da União, e se for considerado que entre os condenados também se encontram particulares e servidores de estados e municípios, a porcentagem de agentes da União sancionados pelo TCU seria menor ainda.

Entretanto, a equipe do Observatório destaca que o baixo índice de condenações não significa menor receio por parte dos agentes públicos federais em sua rotina administrativa. Segundo o GP/FGVDIREITOSP e SBDP (2018b, p. 10), autores mais contemporâneos26 “defendem que a percepção do risco de ser punido é mais relevante do que a efetiva probabilidade da sanção”. E acrescentam que essa percepção se agrava mais ainda por conta da forma como o TCU vem se comunicando com a comunidade dos agentes públicos. Segundo o GP/FGVDIREITOSP e SBDP (2018b), a Corte vem se valendo de periódicos como o

25 Art. 58, caput, da Lei 8.443/92; Art. 268, do Regimento Interno do TCU. A título de exemplo, a Portaria TCU nº 44, de 16 de janeiro de 19, fixou o valor da multa em R$ 62.237,56.

26 Citam: GUNNINGHAM, Neil. Enforcement and compliance estrategies. In: BALDWIN, Robert; CAVE, Martin; LODGE, Martin. (Eds.). The Oxford Handbook of Regulation. Oxford: Oxford University Press, 2010.

“Informativos de Licitações e Contratos” – de divulgação quinzenal –, com enfoque majoritariamente em julgados do TCU que resultam em consequências gravosas aos agentes públicos.

Portanto, apesar das decisões do TCU estarem sujeitas a revisão judicial e do baixo índice de condenação, assume-se, para fins desta pesquisa, que o risco de desgaste emocional e impacto pecuniário27, resultantes de eventual ação sancionatória da Corte de Contas da União, aliada à invocação frequente, por parte da Corte, de precedentes como fundamento para o julgamento do caso presente, envolvendo pessoas diferentes da decisão invocada28, são fatores suficientes para impelir os agentes públicos a se orientarem pelas decisões do TCU. Desse modo, é possível reconhecer nas decisões da Corte de Contas da União um caráter normativo voltado para dentro da prática administrativa.

Todavia, seria possível falar que as decisões do TCU teriam uma função conformadora do Direito, no caso, o Direito Administrativo? Segundo Sundfeld et al. (2017), a possibilidade de revisão judicial das decisões do TCU, com base no Art. 5º, Inc. XXXV, da CF/88 (BRASIL, 1988), permite dizer que a Corte de Contas da União, quando julga processos de fiscalização ou contas, apesar de prolatar decisões de natureza jurídica (técnico-jurídica), não “diz o Direito”, apenas o “interpreta”, já que caberia ao judiciário a primeira função. Sem discordar desse posicionamento é possível dizer que, enquanto não for revista pelo Judiciário, a jurisprudência do TCU contribuiria para a conformação do Direito Administrativo, na medida em que, pelos fatores mencionados relacionados ao seu aparato sancionatório e à invocação de precedentes para decidir o caso presente envolvendo outras partes, condiciona as condutas dos agentes públicos, sob sua jurisdição.

Se estivermos certos, confirma-se então a ideia lançada nas palavras iniciais da seção, no sentido de que as decisões do TCU se encaixariam na terminologia de MacCormick (2008) de decisões jurídicas, portanto, submetidas aos requisitos da universalidade, consistência, coerência e adequação às consequências.

Sobre esse ponto, Atienza (2017, p. 122, 123, 158, 163 et passim) parte do pressuposto de que esses requisitos, vistos como critérios de avaliação, só se aplicariam às decisões emanadas por “juízes”. Essa colocação do autor espanhol poderia dar a impressão de que não caberia avaliar as decisões do TCU, por não fazer parte do Judiciário. Ocorre que Atienza

27 Despesas com advogados, pagamento voluntário da multa, impossibilidade de acréscimo remuneratório em face da inabilitação para cargos em comissão ou função de confiança, por exemplo.

28 Essa afirmação pode ser constatada por uma busca rápida em acórdãos do TCU. Inclusive, entre os acórdãos avaliados, as Decisões nº 7 e 17 citam decisões precedentes para sustentar as premissas do caso em julgamento (Ver Lista de Anexos e os respectivos Fichamentos).

(2017) se refere aos “juízes” no contexto de uma distinção entre a argumentação desenvolvida por eles (em suas decisões), pelos legisladores (nas justificativas dos projetos parlamentares) e pelos advogados (em suas peças). Todos esses segmentos, na visão do autor, desenvolvem suas razões com base no Direito, portanto, consistem em “argumentações jurídicas”. Entretanto, o uso que advogados e legisladores fazem do Direito e os limites aos quais estão submetidos são diferentes dos “juízes”, repercutindo na forma de avaliar seus argumentos. Nesse sentido, a argumentação dos “juízes” (que o autor chama de “judicial”29) é a que deve guardar o maior “compromisso com o Direito” (ATIENZA, 2017, p. 122). Isso pode ser explicado em razão da natureza coercitiva das decisões judiciais – já que têm potencial de interferência direta na vida das pessoas – e do seu papel na conformação do Direito. Esses fatores justificariam os limites impostos à atuação dos juízes pelo ordenamento jurídico das nações que aderem ao paradigma do Estado Constitucional, que não são cobrados – pelo menos não na mesma medida – da argumentação legislativa e dos advogados. Por decorrência, essas mesmas características exigem o controle público da atuação dos juízes e, nesse contexto, justifica-se a avaliação das suas decisões, quanto aos requisitos da universalidade, consistência, coerência e adequação às consequências.

Portanto, considerando, como visto, que as decisões da Corte de Contas da União também gozam de natureza coercitiva e, do mesmo modo que as decisões dos juízes, também devem se submeter aos requisitos da universalidade, consistência, coerência e adequação às consequências, nada mais óbvio que elas – as decisões do TCU – possam ser também avaliadas quanto ao atendimento desses requisitos.

Sendo assim, passa-se à próxima seção.

1.2 AS CATEGORIAS DE NORMAS, PROBLEMATIZAÇÃO, ESFORÇO