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Capítulo 1 A Casa e o Morar: aspectos determinantes da questão

1.4 Ilegalidade e irregularidade

Condições de vida irregulares, informais e até ilegais estão presentes no cotidiano da população em diversos contextos e, muitas vezes, passam até imperceptíveis no dia a dia. Seja nos modos de trabalho, de aquisição de determinadas mercadorias ou nas formas de moradia, práticas informais/ilegais se fazem presentes e o limite entre o legal e o ilegal se torna quase inexistente. A seguir, será exposto como se dá a ilegalidade na vida da população mais pobre, por meio dos estudos de Telles (2010), observando as práticas que efetivam o ilegal na perspectiva do Estado e da população. Na sequência, serão discutidas as formas de habitação ilegais e informais e a criação da cidade informal em paralelo com a cidade formal, por meio da exclusão socioeconômica. Os trabalhos de Grostein (2001), Ghione (2013), Maricato (2003) e Holz e Monteiro (2008) demonstram que a exclusão social se apresenta como alternativa para a população pobre. Na sequência, Valladares (2000) e Panizzi (1990) trazem resultados de pesquisas as quais demonstram que os ocupantes de áreas ilegais são pessoas inseridas formal e legalmente em outras esferas da vida urbana, como o emprego, por exemplo.

Segundo Telles (2010), as questões que permeiam o campo da ilegalidade são complexas. A autora defende que a cidade ilegal não é algo novo, que já há muito tempo faz parte do cenário urbano, existindo um grande hiato entre “a cidade

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 41 legal e a cidade real”. Porém, sua análise traz as distinções do ilegal num mundo globalizado e com práticas neoliberais e como esses mecanismos, mesmo que no contexto local, estão inseridos em uma conjuntura de dominação mundial. A autora argumenta que, nos anos 1980, embora houvesse a exclusão social, havia também um debate e uma busca no sentido de ampliar o espaço democrático para que fosse mais inclusivo. Esse objetivo, segundo a autora, foi destruído com as finalidades neoliberais que passaram a imperar no globo terrestre nas últimas décadas do século XX. Com isso, os Estados Nacionais enfraqueceram as suas regulações e conquistas no campo dos direitos humanos se desmantelaram. A partir de então, a divisa entre o que é legal e o que é ilegal se tornou incerta e “essas polaridades perdem qualquer sentido”.

Grostein (2001) caracteriza a cidade informal, irregular ou ilegal como uma maneira de exclusão social, na qual a dualidade "cidade formal" e "cidade informal" vai determinar onde se concentrarão os investimentos públicos. Para a autora, a informalidade que existe nas cidades é antiga e está associada à "incapacidade recorrente do Estado em controlar, fiscalizar o uso e a ocupação do solo e atuar como controlador, financiador ou provedor de moradia para as populações com menos recursos" (GROSTEIN, 2001, p. 15). A autora, ao descrever o processo de degradação ambiental causado por ocupações ilegais do solo, elucida a emergência da atuação governamental tanto no sentido de preservar esses ambientes quanto a fim de prover moradia para a população que ali reside pela ausência de opções.

Telles (2010) discute as relações legais/ilegais que se dão nos vínculos de trabalho e na assistência social por meio de programas governamentais e de moradia. A rede de agentes que opera e mantém relações informais não é ampla, seja na movimentação de mercadorias de todo o mundo que chegam à ponta varejista, a qual pode ser um comércio formal ou de pequenos vendedores informais, passando por diversos tipos de agentes (formais/informais, legais/ilegais, lícitos/ilícitos), desde a saída das grandes indústrias globais.

No que tange a moradia, foco desse trabalho, Telles (2010, p.161) trata da luta de habitantes de ocupações de terras mais distantes da cidade por melhorias urbanas, lutas essas que envolvem diversos atores:

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É justamente aí que as coisas acontecem: essa normalidade é muito frequentemente feita ou construída por um jogo de atores que mobiliza indivíduos e famílias, agentes públicos e lideranças comunitárias, ONGs e associações de filiação diversas, inclusive a chamada filantropia empresarial.

Telles (2010) aponta que, para determinadas populações, a ilegalidade faz parte do cotidiano e se torna muitas vezes impraticável estar fora dela, sendo esta condição por vezes até imperceptível. Por outro lado, há uma crítica à função do Estado no que tange as legalidades e regulamentações, servindo em muitos casos para coerção em função dos interesses mercadológicos, com uma falsa justificativa de se manter a ordem.

Como a moradia uma das necessidades básicas para a manutenção da vida humana e não está disponível a todos na forma como dispõem a Constituição Federal, as leis e regulamentos urbanísticos, áreas de ocupação ilegais ou formas irregulares de construção são meios que surgem para dar conta da demanda de uma população economicamente desfavorecida, que é excluída pelo processo de urbanização das cidades (HOLZ e MONTEIRO, 2008).

As formas ilegais e informais de habitação ocorrem/convivem juntamente com a cidade formal e legal. Segundo Ghione (2013, p.1), embora essas duas maneiras de ordenação urbana sejam contraditórias e demonstrem a desigualdade social, existe a “total dependência entre uma e outra”. O autor defende que a “sociedade precisa de ambas para sobreviver”, ainda que as intervenções públicas se voltem a beneficiar somente um lado.

Como descrito por Maricato (2003), as leis são instrumentos utilizados para se justificar a ação ou a inação do Estado e são estabelecidas para favorecer uma classe dominante. No que se refere à propriedade fundiária, a Lei 601, de 1850, no seu artigo 1º, estabelecia que a posse da terra só poderia se dar pela compra desta e não pela ocupação. Segundo Maricato (2003), esse era um instrumento para garantir a continuidade do domínio da produção pelos latifundiários. Estabelecer leis e fazer cumpri-las em determinados lugares são formas de se permitir o uso e ocupação ilegal de outras áreas. Porém, não são quaisquer lugares que são isentos da aplicabilidade da lei, mas os que não são de interesse para os agentes do mercado:

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Muitos são os fatores que determinam quando a lei é aplicada ou não. Um nos parece principal. Quando a localização de uma terra ocupada por favelas é valorizada pelo mercado imobiliário, a lei se impõe. Lei de mercado, e não norma jurídica determina o cumprimento da lei (MARICATO, 2003, p.159).

A informalidade e a ilegalidade nas formas de habitação estão, portanto, presentes principalmente nas grandes metrópoles brasileiras e são caracterizadas, sobretudo, pela ausência de oportunidade que a população mais pobre tem de acesso à moradia. Segundo Panizzi (1990, p.193), a ocupação informal se tornou uma prática de “solução permanente” e não mais “provisória”. Porém, essas formas fora da legalidade, no que tange aos aspectos de moradia, repercutem em outros âmbitos da vida dos indivíduos e reproduzem o processo de exclusão social (MARICATO, 2003). Carvalho (2007, p.13) argumenta que a moradia de grande parte das famílias ocorre em espaços ilegais e irregulares das cidades brasileiras e diz ainda que “a irregularidade no país passou a ser regra e não exceção”.

Segundo Fernandes (2007), as formas ilegais de moradia não são processos exclusivos da população mais pobre, contudo atingem em maior medida a esses, não porque é a melhor maneira de se habitar, mas porque para muitos essa é a única opção. O autor explica que

[...] a única opção de moradia permitida aos pobres nas cidades, não se trata certamente de uma boa opção – em termos urbanísticos, sociais e ambientais – e nem, ao contrário do que muitos pensam, de uma opção barata, já que o crescimento das práticas de informalidade e o adensamento das áreas já ocupadas têm gerado custos muito elevados dos terrenos e aluguéis aí localizados. Em outras palavras, os pobres no Brasil pagam um preço cada vez mais alto – em muitos sentidos – para viverem em condições precárias, indignas e inaceitáveis.

A ilegalidade da moradia, todavia, não é necessariamente acompanhada por formas ilegais, ilícitas ou irregulares de meios de vida, como muitas vezes são rotulados. Valladares (2000), ao estudar as favelas, expõe que as populações residentes nessas localidades se constituem por indivíduos com diversos tipos de ocupação inseridos no mercado de trabalho. Assim também é expresso por Panizzi (1990, p.209) ao examinar populações residentes em ocupações na Região Metropolitana de Porto Alegre, ressaltando que se trata de uma população em que a maioria possui “emprego e carteira de trabalho assinada, contribui para a

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 44 previdência social, paga impostos e submete às determinações legais e formais todas as suas relações de trabalho”. Fica evidente que a fronteira entre o legal e o ilegal na vida desses indivíduos é muitas vezes imperceptível e as próprias ações de agentes estatais ou privados fazem diminuir ou desaparecer essa demarcação. Panizzi (1990) relata a situação de ocupantes de um território que, após muitas lutas reivindicando acesso a direitos básicos, tiveram suas ligações de energia elétrica instaladas pela concessionária responsável. A fatura da conta de energia é um dos comprovantes de residência. Para a população que habita irregularmente e que não dispõe de meios que comprovem seu endereço, um comprovante de endereço possibilita diversas atuações legais perante a sociedade. Essa contradição também é descrita por Maricato (2003) quando caracteriza a ação do Estado levando alguns serviços de infraestrutura em lugares em que existem ocupações ilegais que comprometem a segurança dos moradores, em vez de efetuar a remoção, o que se tornaria mais oneroso para o poder público. Assim, as ações do Estado, ou mesmo a falta delas, contribuem para promover ou fortalecer tais ocupações e práticas, seja pela tolerância ou pela contribuição para a sua permanência.

Grostein (2001) defende que há um esforço no sentido de se formalizar ou legalizar os territórios ilegais, em maior ou menor grau, dependendo da cidade, e argumenta que:

Construir “cidade” é tarefa social complexa, que requer investimentos públicos e privados, projetos e programas de intervenção e justiça na distribuição dos benefícios urbanos. Não basta abrir ruas e parcelar glebas em lotes, assim como para introduzir qualidade ambiental na cidade informal não basta regularizar loteamentos ou urbanizar as favelas (GROSTEIN, 2001, p.18).

Para que ocorra a "integração da cidade informal na cidade propriamente dita" é necessário haver inserção econômica e social da população residente nessas localidades. Porém, ao se pensar a formalização e legalização das áreas ilegais, é preciso ter o cuidado que destaca Fernandes (2007), pois somente dar o título de propriedade às famílias que habitam de maneira ilegal pode criar outros problemas ou o retorno ao mesmo, à medida que as classes de mais alta renda se apropriam dos benefícios estatais que a princípio favoreceriam aos mais pobres, sem condições próprias de conseguirem habitações adequadas. Nesse sentido, Fernandes (2007) destaca que o próprio termo de regularizar é entendido e

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 45 enfrentado de modo diferente dependendo de cada município brasileiro, seja com obras de infraestrutura e serviços urbanos em áreas informais ou com o título de propriedade imobiliária para famílias que habitam em ocupações informais.

Em vista do que já foi discutido, a ilegalidade, informalidade e a irregularidade estão presentes na rotina da população e principalmente das pessoas mais pobres, sendo para alguns o único meio de sobrevivência. Em se tratando das formas ilegais para a habitação, foi demonstrado que a cidade ilegal cresce juntamente com a cidade legal, pela impossibilidade de acessar a habitação formal nas vias do mercado imobiliário. Contudo, conforme argumentado por Telles (2010), Valladares (2000) e Panizzi (1990), existe uma junção entre as formas legais e ilegais de se morar e viver, demonstrando que muitos indivíduos que moram em áreas/moradias irregulares possuem vínculos formais de emprego ou possuem faturas que formalizam abertura de conta em instituições formais.

Em resumo, esse capítulo visou discutir desde as principais características inerentes ao bem casa até as formas de produção desta. Assim, foi discutida a sua utilidade na vida de quem a habita, como também as variáveis que definem o seu valor como um produto no mercado imobiliário. Evidenciou-se que a casa é, para a classe mais pobre, uma mercadoria de difícil obtenção, em que muitas vezes a habitação só consegue ser realizada nas localidades mais afastadas, em virtude da valorização das áreas de melhor localização e acesso à infraestrutura e serviços. A legislação, que a rigor deveria cumprir o papel de promover a igualdade e justiça social, como destacado, acaba por reforçar essa inserção do pobre nas periferias das cidades. Foi discutida também a questão da casa própria e como a sua ideologia é alimentada como a melhor forma de acesso à habitação, seja ela para a população de qualquer estratificação de renda. Assim, foi refletido que muitas vezes o título de proprietário não é a única e nem a melhor alternativa de se garantir o “Direito à Moradia”, principalmente para a população com menor renda. Por fim, destacou-se que as formas ilegais e irregulares de habitação são praticadas pelos mais pobres como modo de sobrevivência, dada a insuficiência de suas rendas. Essa discussão é basilar para compreender como as lógicas mercadológicas que regem o Programa Minha Casa Minha Vida, na Faixa 1, retroalimentam a lógica de ilegalidade, dadas às dificuldades de inserção dos mais pobres no âmbito da legalidade/formalidade e regularidade.

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Capítulo 2 – O Programa Minha Casa Minha Vida: da informalidade