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Capítulo 1 A Casa e o Morar: aspectos determinantes da questão

1.3 Moradia e segurança de posse

A discussão anterior demonstrou que a propriedade da casa exerce na população mais pobre dois efeitos contraditórios. A casa própria pode ser uma segurança e um minimizador dos custos mensais, que elimina do orçamento familiar a despesa com o aluguel. Contudo, a propriedade privada, principalmente no formato de condomínios – em que muitos empreendimentos do PMCMV têm se consolidados – pode gerar uma ambiguidade na ideia de segurança associada ao conceito de propriedade privada, já que, além do financiamento, as famílias têm custos relacionados ao fornecimento de serviços como água, esgoto, energia elétrica e até mesmo as taxas de condomínio as quais, a depender da moradia anterior, se efetivam como um custo adicional.

As linhas a seguir tratam da segurança de posse que outras alternativas podem fornecer à população em suas formas de habitar, além da propriedade privada da mercadoria casa, com base nas discussões promovidas por Engels (ANO), Harvey (1982), Marcuse (2008) e Fernandes (2008). Porém, antes será explanado brevemente o conceito de posse e as suas distinções em relação à propriedade no que diz respeito ao Código Civil Brasileiro.

A discussão sobre propriedade privada da habitação não é recente. A problemática sobre as responsabilidades, custos e a liberdade de mobilidade que um imóvel próprio pode ter na vida de um indivíduo já foi abordada por Engels (1873) no século XIX. Na ocasião, Engels contraria as teorias de Proudhon sobre a habitação para a classe trabalhadora, quando este defende a propriedade privada das casas. Para Engels (1973), dar o título de proprietário ao trabalhador faz com que ele e sua família se fixem em determinado lugar, o que atrapalha a busca por emprego em outras localidades, ou seja, a propriedade da casa pode servir como mais um meio de repressão e ordem social do que um modo de amparar a população mais pobre. Para o autor, o aluguel é um sistema capaz de prover moradia para a população de baixa renda melhor do que a propriedade privada.

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 35 No campo do direito, os conceitos de propriedade privada e posse podem até ser confundidos como termos análogos, porém são distintos. No Brasil, é o Código Civil de 2002 que estabelece o Direito das Coisas (BRASIL, 2002), o qual explicita o que é posse e os elementos da propriedade privada.

O Art. 1.228 dispõe que ao proprietário é possível usar, gozar, dispor e reaver a coisa. Nesse sentido, o proprietário também pode ser o possuidor daquilo de que também é o proprietário, porém esse possui o título de proprietário.

Os artigos de número 1.228 até o 1.232 seguem com as características da propriedade, bem como os direitos e deveres a ela relacionada. Sobre a posse, os artigos de número 1.196 até o 1.224 são os que definem o que se entende pelo termo e quais são os direitos que a ela cabem. Assim diz o Art. 1.196 sobre a posse: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Assim, a lei brasileira demonstra que existe uma distinção entre ter a posse e/ou ter a propriedade. Sobre esse assunto Venosa (2007, p.35) explica que

Como a posse é considerada um poder de fato juridicamente protegido sobre a coisa, distingue-se do caráter da propriedade, que é direito, somente se adquirindo por título justo e de acordo com as formas instituídas no ordenamento. Podemos afirmar que a posse constitui aspecto de propriedade do qual foram suprimidas alguma ou algumas de suas características.

Venosa (2007) explica que a defesa de posse, nas concepções da lei brasileira, se explica pelo fato do bem ter alguma utilidade econômica para quem o possui, porém é necessário se considerar a situação específica do possuidor. Assim, como argumenta o autor, “a posse é, enfim, a visibilidade da propriedade. Quem de fora divisa o possuidor, não o distingue do proprietário. A exterioridade revela a

posse, embora no íntimo o possuidor possa ser também proprietário” (VENOSA,

2007, p.47, grifos nossos).

A partir do entendimento das distinções entre propriedade privada e posse, é possível discutir sobre maneiras alternativas de se ter a posse, que não seja exclusivamente por meio da propriedade privada do imóvel. Peter Marcuse (2008, p.10), ao tratar dos direitos de propriedade e das maneiras encontradas pelos mais pobres de garantirem a segurança de posse, defende a ideia de que a propriedade

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 36 privada não é a melhor forma de assegurar o usufruto de moradia aos que ele nomeia como “despossuídos”. Assim, Marcuse (2008) salienta que a solução para as ocupações ilegais não é fazer do ocupante da terra o seu proprietário. O autor apresenta cinco meios em que é possível se ter a fruição da moradia e que, segundo ele, possuem “suas vantagens e desvantagens”. A seguir, estão listadas as cinco possibilidades descritas por Marcuse (2008).

A primeira opção apresentada é o “Direito Pleno de Posse”. Essa modalidade consiste em dar o título de proprietário ao morador da casa. Porém, para Marcuse (2008, p.11), essa forma de garantir a posse para os mais pobres é “fraca e, de fato, autodestrutiva”, porque, neste sistema, na medida em que se garante a propriedade dos “despossuídos”, também se protege a dos grandes proprietários fundiários. O autor argumenta que como a maioria dos “despossuídos” ocupa terra ilegalmente, o Direito Pleno de Propriedade dá vantagem aos proprietários legais da terra que têm então o direito “de expulsá-los, de vender a terra ocupada, de converter o uso da terra em benefício do dono e não do ocupante”. Outro ponto negativo apontado pelo autor contra os Direitos Plenos de Propriedade, são “as relações plenas de mercado”, apontadas por ele como “origem do problema”.

Uma segunda solução listada por Marcuse (2008) são os “Direitos Plenos de Propriedade com Limites Específicos para os Despossuídos”. Nessa alternativa, é dado o título de propriedade ao morador que nela habita, porém, o autor aponta dois problemas que podem decorrer. Um problema decorre da individualização que acontece com a comunidade quando que se “privatizam questões sociais”. Assim, passa a haver dentro daquele meio estratificações que resultam em hierarquias sociais. Esse fator foi verificado por Panizzi (1990, p.204) em suas pesquisas em ocupações da Região metropolitana de Porto Alegre. Segundo a autora, para “alguns moradores, depois de divididos os lotes das áreas invadidas ou garantida a ocupação de uma unidade habitacional, o coletivo desaparece para permanecer muitas vezes somente o interesse individual”. O segundo problema dessa alternativa resulta do que ele chama de “obrigações formais, obrigações que os pobres quase nunca podem assumir” o que inclui “pagamento de impostos, taxas de serviços, aluguel, obrigação pela manutenção, subordinação às regulações ambientais e de construção” (MARCUSE, 2008, p.12).

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 37 Como uma terceira alternativa, é proposto o “Direito Pleno de Propriedade, com Limitações Gerais para as Funções Sociais”. Tal opção pode ser viável se estiver atrelada a um plano diretor que vise muito mais do que crescimento econômico e que tenha como prioridade lidar com problemas distributivos. Porém, Marcuse (2008, p.13-14) destaca que esse sistema pode gerar dificuldades aos governos à medida que se tem que indenizar os proprietários antigos, o que torna a opção difícil de ser praticada.

Como quarta opção, Marcuse (2008, p.15) sugere os “Sistemas Alternativos de Propriedade”, que, ao invés de fornecer o título de propriedade para o indivíduo e sua família, oferece o direito ao uso. Para o autor (2008: 15), esse uso inclui:

 direitos a ocupação, sem incômodos, por toda a vida;

 direitos de usos múltiplos;

 direitos de construir, modificar e expandir;

 direitos de excluir outros e barrar intrusos;

 direitos de transferir os direitos acima descritos para membros da família após a morte;

 direitos de recuperar os investimentos em benfeitorias quando o uso for, por necessidade, terminado;

 direitos à igualdade de tratamento na provisão de serviços e acesso a equipamentos necessários ao uso residencial.

Essa opção de direitos de uso, ao invés de direitos de posse, é, segundo Marcuse, uma boa alternativa para se prover moradia para a população mais carente. No entanto, o autor ressalta que “o sucesso será, sem dúvida, apenas parcial, mas que talvez seja melhor um sucesso parcial numa campanha pelo que realmente se deseja do que um sucesso completo numa campanha que tenha apenas a metade dos objetivos que se pretende alcançar”. Os problemas descritos pelo autor estão presentes tanto para aqueles que serão prejudicados nesse tipo de sistema, ou seja, os proprietários de terras e/ou imóveis, como também diversos aspectos políticos terão de ser reavaliados.

Por último, o autor coloca a questão da falta de clareza e da implementação das leis. Para Marcuse (2008, p.18), muitas leis de direitos de propriedade são “contraditórias e mal formuladas” e o resultado disso é que a segurança de posse dos mais pobres se torna muito mais “uma questão política e não como uma questão técnica legal”.

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 38 Com as alternativas apresentadas, Marcuse (2008) demonstra que é possível haver uma forma de provisão de moradias que atinja os mais pobres, mas não na forma de propriedade privada. A posse da propriedade, em muitos casos, só vai favorecer àqueles que já possuem grandes parcelas de terras e imóveis, pois não será esse o mecanismo que garantirá a moradia da parcela mais pobre da população.

Harvey (1982), quando analisa o “ambiente construído”, defende que a propriedade privada é vantajosa para a camada da população com maior poder aquisitivo e que fazer de parte da população mais pobre proprietária dos imóveis onde moram é uma forma de se manter a ideia de que a propriedade pública de moradia não é o melhor sistema de provisão de moradias para essa população. Harvey (1982) também defende que a propriedade do imóvel estratifica e individualiza a população, deixando-a politicamente mais frágil. O autor chama a atenção para o fato de que “a maioria dos moradores de casa própria não é totalmente proprietária de suas casas. Em geral, eles contraem empréstimos com base numa hipoteca. Isto coloca o capital financeiro numa posição hegemônica” (HARVEY, 1982, p.13).

No mesmo sentido, Fernandes (2008, p.28) reflete sobre os direitos de propriedade e a forma como essa alternativa tem atingido as populações mais pobres. Segundo o autor, a partir do início dos anos 2000, tem havido um movimento no sentido de legalizar áreas de ocupação ilegal. A prática, que a princípio pode parecer uma boa resposta ao problema de moradia é, no entanto, “a grande falácia do momento, que é essa redução do direito de moradia ao direito de propriedade”. Segundo Fernandes (2008), essa tendência tem sido defendida principalmente nas teorias do peruano Hernando de Soto. De Soto (2001), o qual argumenta que legalizar as áreas ilegais e conceder títulos de posse para essas pessoas é uma maneira de integrá-las na economia urbana e resolver os problemas sociais que o Estado em crise não consegue mais resolver. Para De Soto (2001, p.38), à medida que a população se torna proprietária de sua moradia, ela é incentivada a buscar recursos para investir em suas propriedades. Assim, esse autor alega que é necessário abolir as formas ilegais de moradia ou de comércio, ou seja, "sem a apropriada titulação da propriedade, os mercados não funcionam". O autor

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 39 ressalta que as formas de trabalho e moradias sem a devida titulação são formas que debilitam o bom funcionamento do mercado.

Para Fernandes (2008, p.27), a alternativa de dar às pessoas mais pobres o direito de propriedade não soluciona o problema de moradia. O autor argumenta que existem “conjuntos de fatores políticos, institucionais e sociais” que são capazes de fornecer segurança a moradores e incentivá-los a investir e conseguir créditos, tanto informal quanto formal. Acrescenta ainda que somente por meio do título de propriedade não é possível dar segurança a essas famílias. Segundo o autor, “a legalização formal, por si só, [...] acaba por provocar efeitos inesperados e até mesmo perversos”. Na visão de Fernandes (2008), a opção de dar o título de propriedade para a população mais pobre que se encontra habitando em áreas ilegais beneficiará o que ele chama de “velhos interesses”:

A atribuição de títulos individuais de propriedade pode até dar segurança de posse individual, mas não leva ao objetivo fundamental dos programas de legalização, ou seja, garantir a permanência das pessoas no espaço que elas ocupam, bem como promover a integração sócio espacial daquelas áreas daquelas comunidades no contexto da estrutura urbana e da sociedade urbana. A legalização pode até dar segurança individual legal a uma pessoa, mas, dados a dinâmica do mercado, o peso da formalização, da taxação, da tributação, etc., em muitos casos as pessoas acabam vendendo as propriedades legalizadas e invadindo outras áreas, em outro lugar, sobretudo áreas públicas (FERNANDES, 2008, p. 27).

Portanto, para Fernandes (2007, p.46), o próprio processo de legalizar as áreas ilegais por meio de títulos de propriedade privada pode gerar novos processos de ilegalidades e colaborar com ações especulativas do mercado. O autor aponta que esse movimento pode, então, favorecer em maior medida populações de maior rendimento e gerar áreas gentrificadas, e enfatiza que “no Brasil e internacionalmente, as experiências baseadas na transferência de títulos plenos de propriedade individual não têm sido bem-sucedidas” (FERNANDES, 2007, p.44).

Esse tópico discutiu como a solução da questão da moradia para a população mais pobre não deve fundamentar-se exclusivamente da adoção da propriedade privada. Essa adoção implica na inserção de novos problemas, como a apropriação dos “benefícios” pelas classes de mais alta renda (HARVEY, 1982; FERNANDES, 2008), e pelo abandono de reflexões pertinentes a outras formas de garantir a segurança de posse, a privacidade, a liberdade de uso, dentre outros (MARCUSE,

Quanto vale a minha casa? CHAVES, Carina Aparecida Barbosa Mendes 40 2008). Mostrou-se com isso que a propriedade privada nem sempre é a alternativa capaz de solucionar a questão da moradia para os mais pobres, pois como enfatizado por Fernandes (2007; 2008), o direito social de moradia não está reduzido ao direito à propriedade privada. Assim, podem ser adotadas outras possibilidades que garantam a posse e o direito de habitação da população mais pobre, tais como o direito de uso, que contempla inúmeros itens de segurança que a propriedade privada garante, como direito de modificar, deixar por herança, dentre outros. Além do direito de uso, outras opções como aluguel social, arrendamento residencial e legislações de regulamentação de aluguéis (como a Lei do Inquilinato) podem ser formas de se amparar os pobres na questão da moradia. O próximo tópico tratará das formas ilegais e irregulares que estão presentes na sociedade, com foco particular na produção da cidade ilegal através de habitações.