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CAPÍTULO 3 O PROJETO DE MUNDO DE PERÓN: A QUESTÃO AMBIENTAL

3.5 Ilha ideacional ou valorização demasiada?

Não há como negar a exponencialidade de Perón nas discussões preambulares sobre o ambiente na Argentina e na América do Sul e não reconhecer a audácia da Mensagem, direcionada primordialmente “aos povos do Terceiro Mundo - despossuídos de produção e consumo”, que sofrem com a desigualdade e as injustiças sociais (dentre elas, a ambiental). Na carta, o líder político, ainda do exílio, não apenas denuncia a contaminação sistêmica, a lógica do desperdício e o esgotamento dos recursos naturais promovidos, sobretudo, pelos países do Primeiro Mundo, como também empreende um alerta, aos países subdesenvolvidos, de que

criação da Academia Argentina de Ciências do Ambiente, em 1981 e a Fundação de Defesa do Ambiente (FUNAM), em 1982 (ESTRADA OYUELA, 2007).

123 Perón não cunhou sua perspectiva ecológica fundamentalmente no exílio, como supõe Mendoza (2018), mas foi no exílio que teve contato com as discussões que Peccei e King realizavam sobre a possibilidade de países subdesenvolvidos reinventarem a lógica do capital via desenvolvimento ‘sustentável’, assim como é crível que Perón tenha estado presente em debates do Clube de Roma, antes da divulgação do Relatório Meadows.

as questões ambientais globais eram demasiadamente importantes, mas que a autodeterminação soberana das jovens soberanias deveria ser preservada a todo custo. E, para que esse direito adquirido, após séculos de exploração, fosse edificado e legitimado, uma revolução mental (a tomada de consciência) deveria ser iniciada pelo Sul global, com o reconhecimento de que o multifacetado terceiro mundo poderia alterar e até subverter a lógica econômica internacional, uma vez que a cooperação fosse um fim.

Além de se autodeclarar como “pai” da nação argentina (obviamente, uma declaração controversa e não aceita), Juan Perón almejava tonar-se o líder das nações do Terceiro Mundo, cuja solidariedade dar-se-ia via ideologia justicialista (que ele havia criado) e questão ambiental, ou seja, via superação da desigualdade econômica e social latente e apropriação devida do núcleo econômico potente de cada sociedade, o ambiente. Nesse sentido, o convite-alerta representava não um quadro ambiental que começou a ser cunhado politicamente na Conferência de Estocolmo e pelo relatório Meadows, de uma preocupação com o ambiente global “sem pátria” (ou de muitas pátrias).

A divulgação da Mensagem dias antes da Conferência de Estocolmo, como afirma Mendoza (2018), decorrente do diálogo entre Peccei e Perón e da possibilidade que Peccei via na Conferência, em relação à adesão dos países aos ideais do CoR, no qual Perón poderia ser um representante do Terceiro Mundo, é uma leitura que esvazia a capacidade do líder político (Perón) em articular uma ação política, além de desconsiderar que a questão ambiental já era uma questão para Perón, mesmo antes do exílio. Isso não significa, porém, que Perón não tenha tido diálogos contínuos com Peccei e que isso não o tenha influenciado. Contudo, a

Mensagem não é uma simples releitura do relatório Meadows124, mas uma

construção ideológica consciente de Perón, em diálogo (e não em decorrência) com o idealizador do CoR (Peccei) e com diversos intelectuais, políticos e apoiadores125.

124 O relatório Meadows et al. (1973) foi lido na América Latina como um projeto ideológico do Norte que visava a inviabilizar o crescimento econômico dos países da região (uma vez que não problematizava a desigualdade latente entre as nações, como expresso no capítulo anterior) e de forma equivocada, associado ao Programa Alianza para el Progresso, implementada pelo governo de John Kennedy em 1961, a fim de frear a expansão do socialismo na região (MENDONZA, 2018). 125 Havia na época (década de 1970) um debate regional sobre desenvolvimento, política, ciência e tecnologia, denominado Pensamento Latino-americano sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS). Esse debate era composto por intelectuais significativos, como Almícar Herrera (um dos

Logo, se o peronismo (e sua natureza plasmática) ainda hoje se faz presente na Argentina como um sentimento público (CAMPBELL, 1998) que constrange, de certo modo, o que é legítimo e aceitável em termos de alternativas públicas para problemas diversos (principalmente os econômicos), a questão ambiental, posta pelo quadro peronista na década de 1970 como parte do projeto de desenvolvimento econômico, de política externa e de reformulação de políticas científicas e tecnológicas, que poderia modificar a realidade econômica política das nações subdesenvolvidas, além de ser elemento essencial da própria política econômica do país, foi abandonada pelos programas peronistas subsequentes e pelos governos de facto. Os governos de facto, por não pressuporem públicos ou legitimidade em suas ações, mas comandos e obediências, de forma implícita tratam a natureza e/ou os recursos naturais como consequência de seus desejos, de seus projetos supostamente modernizadores, portanto, sem agentes (sem processos democráticos e livres).

Isso revela duas situações. A primeira, inegável, diz respeito ao fato de o Estado argentino ter sido pioneiro no tratamento da questão ambiental como um problema político-econômico, na região da América do Sul, sendo um exemplo a institucionalização de normas jurídicas (controle de contaminação, preservação de recursos naturais, incentivo financeiro a pesquisa sobre a temática, dentre outros) e a edificação da primeira secretaria (SRNyAH) especializada no tratamento do problema, dentro da ótica da política econômica (sob o comando do Ministério da Economia) a fim de gerar um “desenvolvimento saudável e autônomo”.

Em segundo lugar, essa articulação ideacional e institucional (à frente de seu tempo), promovida por Perón em relação à questão ambiental, não influenciou o seu núcleo político, devido à forte e solidificada filosofia pública de impossibilidade de promoção do desenvolvimento econômico e sustentável. De acordo com essa filosofia pública, políticas de redistribuição de renda, efetividade de direitos elementares, incentivos e usos científico-tecnológicos, melhoramento de técnicas e processos (na extração, produção e venda de produtos) não são observados como

principais autores do MMLA), Oscar Varsavsky (que participou dos Comandos Tecnológicos Peronistas, coordenados por Julián Licastro, mesmo sem adesão ao peronismo) e Josué de Castro (considerado um dos pioneiros nas reflexões sobre ecologia política e história ambiental latino- americana).

parte constitutiva do processo sustentável, mas como consequência de um modelo de desenvolvimento (modernização-industrialização).

Esse pioneirismo nacional e efêmero da Argentina (de Perón) no tratamento da questão ambiental, em âmbito internacional aliava-se à política da “terceira via”,126 realizada pelos países não alinhados à perspectiva política e econômica, tanto da URSS, quanto dos Estados Unidos. Perón observava o alinhamento argentino à terceira via como uma possibilidade política de enfrentamento à estruturação econômica promovida pelos países desenvolvidos (principalmente, pelos Estados Unidos) a partir dos anos de 1950. Por meio de uma política externa cooperativa e alinhada entre os países do “sul global” (dos continentes asiático, africano e latino americano) e do acesso “negociado” aos recursos naturais do mundo subdesenvolvido pelos países desenvolvidos, acreditava-se ser possível alterar a lógica econômica internacional, o que se mostrou inviável nas décadas seguintes, devido a natureza das diferenças e dos objetivos (políticos, econômicos e ambientais) de cada país que formava o movimento dos países não alinhados.