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3 INCONSTITUCIONALIDADE DA VEDAÇÃO À PROGRESSÃO DE REGIME

3.1 Progressão de regime e sua constitucionalidade

3.1.2 Imperatividade constitucional da progressão

De acordo com a legislação penal brasileira – Código Penal e Lei de Execução Penal –, na execução da pena privativa de liberdade deve ser possibilitada

95 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo:

ao condenado a progressão de regime mais severo para regime mais brando, quando preencha os requisitos que a autorizam.

Trata-se – a progressão – de regra que, consoante Mirabete, encontra-se em perfeita harmonia com os estudos de penalogia, os quais indicam ser de fundamental importância o retorno gradual ao convívio social para os condenados

que apresentem sinais de recuperação.96

A Constituição Federal não estabelece expressamente a necessidade da aplicação desse instituto no curso do processo de execução penal, não obstante, essa exigência é – como já dissemos acima – facilmente abstraída do sistema de proteção individual que o Diploma Maior encerra. É que a interpretação lógico- sistemática de suas normas e princípios fundamentais conduz à transparente ilação de que a progressividade de regime nela finca raízes, pelo quê deve ser assegurada a todos os reclusos que lhe façam jus.

No sentido de ser a progressão o resultado lógico da interseção de princípios constitucionais é Alberto Silva Franco, para o qual:

Ao adotar, para o cumprimento da pena privativa de liberdade, o sistema progressivo, o legislador não se definiu por uma fórmula vazia e inconseqüente, por algo totalmente desarticulado do esquema conceitual global. O sistema progressivo é, em verdade, o precipitado lógico, a decorrência natural, o resultado prático de alguns princípios inseridos na Constituição Federal.97

Um dos mais importantes princípios – se não o principal – constitucionalmente consagrados dos quais se vislumbra defluir a imperatividade da aplicação da progressão é o da individualização da pena, que garante a todo condenado uma pena pessoal, particularizada de acordo com suas peculiaridades – a saber, personalidade do agente e circunstâncias em que o crime foi praticado.

De acordo com a boa doutrina, essa individualização pode ser observada em três momentos distintos, quais sejam: cominação (fase legislativa), aplicação (fase judicial) e execução (fase executória). E é na última dessas fases que ela encontra sua maior expressão, seu momento de maior concreção, como bem destaca Alberto Silva Franco, quando diz que é aí que o processo individualizador

96 apud AMARAL, Agamenon Bento do. Op. cit.

97 FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. rev. ampl. São

chega à sua derradeira fase, aderindo definitivamente à pessoa do condenado.98 O art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, assegura o direito à individualização da pena, e remete ao legislador ordinário a tarefa de regular sua aplicação. Esta remissão fez com que muitos doutrinadores e juristas nela vislumbrassem uma autorização à lei ordinária para definir o que seja essa individualização, e a seu respeito dispor como reputasse mais conveniente.

Com a devida vênia, equivocam-se os que assim entendem. É que o comando constitucional estabelece que a lei deverá apenas regular a individualização, ou seja, detalhá-la, fornecer condições para que seja colocada em prática, conformar este preceito com a realidade, e a conformação de direitos fundamentais não constitui carta branca ao legislador para que deles disponha a seu bel prazer.

A individualização não é – como muitos pretendem – uma faculdade outorgada pelo legislador constituinte ao Poder Legislativo, mas sim um direito fundamental, que deve ser apenas adaptado pelo Congresso Nacional às exigências específicas da realidade, para então ser posto em prática. Entendimento em sentido contrário – ou seja, de que a norma constitucional declinou competência para o órgão legislativo ordinário – não só revelaria cuidar-se de norma extravagante no catálogo de direitos fundamentais, como daria margem para a arbitrariedade legiferante, o que esvaziaria por completo o seu sentido.

A remissão à lei infraconstitucional significa, desse modo, tão-somente uma autorização ao legislador para adaptar o direito à individualização às peculiaridades da situação a reclamar a regulação. Autorização esta obviamente sujeita a limites, eis que, se o afazer legislativo fosse ilimitado, a disposição constitucional que a garante restaria inócua.

Pontes de Miranda já advertia que:

[...] se a lei, em relação à Constituição, ou o decreto ou regulamento, em relação à lei, reproduz a regra jurídica hierarquicamente superior, com podamento, acréscimo, substituição, ou pontuação deformante, o Poder

Legislativo, que editou tal lei, ou o Poder Executivo, que lançou tal decreto ou regulamento, exorbitou das suas funções, e é nulo o que se afasta do texto inserto, deturpando-o99.

Em sendo assim, força é convir que não é dado ao legislador ordinário, encarregado de regulamentar a individualização, obstar sua realização. A lei pode conferir parâmetros para a atuação judicial, de modo a assegurar a aplicação desse direito, mas não poderá, de modo algum, impedir que se realize a individualização punitiva, a qual, na derradeira fase de execução da pena, tem sua primordial expressão no instituto da progressão de regime.

É a progressão um desdobramento necessário da individualização, na medida em que permite que se confira a cada condenado – no curso da execução – tratamento em conformidade com suas peculiaridades, ajustado à sua personalidade e ao seu comportamento. Não admitir esse entendimento seria esvaziar a atividade individualizadora nessa fase.

Nas palavras do preclaro Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal:

Dizer-se que o regime de progressão no cumprimento da pena não está compreendido no grande todo que é a individualização preconizada e garantida constitucionalmente é olvidar o instituto, relegando a plano secundário a justificativa socialmente aceitável que o recomendou ao legislador de 1984.100 (grifo nosso)

Com efeito, a progressividade de regime não só efetiva a individualização, mas também é o meio que possibilita alcançar a tão almejada finalidade ressocializadora da pena, o que levou à sua adoção pelo Código Penal e pela Lei de Execução Penal, que assim o fizeram em sintonia com a moderna concepção de que a sanção penal, mais do que apenas retribuir o mal causado, deve também buscar readaptar o condenado para o retorno ao convívio social.

Mas não é só desses diplomas penais que sobressai a necessidade de aplicação da pena com finalidade social e não com caráter meramente retributivo; o próprio Texto Constitucional também aponta nesse sentido, embora não o faça expressamente, como o fazem as Constituições italiana – que em seu art. 27 dispõe que as penas não podem comportar tratamentos contrários ao senso de humanidade

99 apud PINTO NETO, Moysés da Fontoura. Op. cit. 100 apud AMARAL, Agamenon Bento do. Op. cit.

e devem visar a reeducação do condenado – e espanhola – que assinala, em seu art. 25, que as penas devem orientar-se em direção à reeducação e reinserção social.101

Nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da humanidade – já abordados no capítulo primeiro – vislumbra-se, sem maiores esforços, a exigência de aplicação da resposta penal com finalidade social, uma vez que, caso a segregação do homem do convívio social tivesse o caráter de puro e simples castigo – como costumava acontecer nos primórdios da civilização –, restariam patentemente afrontados. Na lição de Jescheck, este último princípio impõe que:

[...] todas as relações humanas que o Direito Penal faz surgir no mais amplo sentido se regulem sobre a base de uma vinculação recíproca, de uma responsabilidade social frente ao delinqüente, de uma livre disposição à ajuda e assistência sociais e de uma decidida vontade de recuperação do condenado.102

A expiação da culpa centrada na finalidade unicamente repressiva e de caráter retributivo não só atenta contra os princípios que fundamentam os direitos humanos, como também vai de encontro ao objetivo fundamental de promoção do bem de todos – insculpido no art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988 –, eis que, ao impedir um tratamento direcionado à ressocialização, não está a prejudicar somente o recluso, mas a própria sociedade, que – quando do retorno deste ao convívio social – receberá um indivíduo revoltado e embrutecido.

Por fim, é de se dizer que o Pacto de São José da Costa Rica – tratado internacional assinado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, e promulgado em 09 de novembro do mesmo ano, pelo decreto nº 678, que determinou seu cumprimento tão inteiramente como nele se contém –, determinou expressamente que as penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e readaptação social do condenado. Se nos basearmos no fato de que a doutrina nacional, respaldada no art. 5º, §2º, da Constituição, consolidou entendimento no sentido de

101 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 34.652/PR (2004/0046014-4). 6ª Turma.

Impetrante: José Luiz Gugelmin. Paciente: Hélio Rubens Barbosa de Souza. Impetrado: Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná. Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. Brasília, 21 de outubro de 2004. Diário da Justiça, 1° fev. 2005.

que os tratados de direitos humanos contam com status constitucional,103 a conclusão não é outra senão a de que a aplicação da pena com finalidade social – determinada por esse Pacto, que é posterior à Lei nº 8.072/90 – é uma garantia constitucional.

Vê-se que tudo está a indicar a exigência constitucional de que a pena também deve ter caráter ressocializador, e não é difícil perceber que, na execução da pena privativa de liberdade, essa prescrição só pode ser atendida se se conferir tratamento individualizado ao condenado, que lhe possibilite retornar ao convívio social de forma gradual, o que ocorre com a progressão.

Esse tratamento individualizado mediante a progressão é, ainda, uma forma de prestigiar o princípio isonômico, eis que varia de acordo com as particularidades – ou desigualdades – de cada um dos reclusos, que, por óbvio, não devem nem podem ser identicamente considerados. Mais ainda, encontra-se em perfeita consonância com o princípio da proporcionalidade, uma vez que a exigibilidade de cumprimento de lapso temporal mínimo e de bom comportamento é absolutamente razoável para autorizar a concessão de tratamento diferenciado que implique permissão ou não à progressão.

De tudo quanto se expôs, o que se verifica é que a progressão nada mais é do que uma garantia decorrente da conjugação sistemática dos princípios da individualização da pena, da dignidade da pessoa humana, da humanidade, da igualdade e da proporcionalidade, bem como da exigência – assinalada pela Lei de Execução Penal e pelo Pacto de São José da Costa Rica, e abstraída dos princípios constitucionais – de que a pena deve ter finalidade social. Em razão disso, norma legal que vede a possibilidade de concessão de progressão no curso da execução penal é inaceitável do ponto de vista constitucional.

103 Nesse sentido é Luiz Flávio Gomes, para o qual: “[...] se os direitos e garantias do texto

constitucional ‘não excluem’ outros provenientes dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar outros direitos e garantias, a Constituição ‘os inclui’ no seu catálogo de direitos protegidos, ampliando o seu ‘bloco de constitucionalidade’.” (GOMES, Luiz Flávio. Tratados de direitos humanos: nível supralegal. Revista Juristas, João Pessoa, a. III, n. 92, 19/09/2006. Disponível em: <http:www.juristas.com.Br/mod_revistas.asp?ic=2698>. Acesso em: 27 jun. 2007.)

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