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IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO E EXECUÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

CAPÍTULO 2 COOPERAÇÃO TÉCNICA INTERNACIONAL, PRIVILÉGIOS E IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO

2.3 IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO E EXECUÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

Superada a classificação dos atos da Cooperação Técnica Internacional, o texto enfrenta outra polêmica que norteia os Organismos Internacionais. A globalização trouxe enorme campo de trabalho para nova ordem internacional, rica em desafios, mas que as normas costumeiras e escritas, nem sempre conseguem acompanhar.

As imunidades relativas ou absolutas dos Estados e a possibilidade de execução não está harmonizado nos Direitos das Gentes, suscitando debates doutrinários e que o Supremo Tribunal Federal, ainda hoje enfrenta.

Quando se procurava entender o silêncio das Convenções de Viena, em face da imunidade absoluta que ainda se proclamava nos anos 60 e nos anos 70, em muitos países, entre os quais o nosso, dizia-se: é tão óbvio que o Estado estrangeiro, à luz do princípio par in parem non habet judicium, em honra do qual as imunidades pessoais existem, é, ele próprio, imune também, que não é preciso que os textos de Viena digam isso. Ficou visto que grandes atores na cena internacional desertavam da corrente da imunidade absoluta. Não dava mais para o Tribunal brasileiro sustentar o caráter absoluto imunidade60.

Para tratar do tema, deve-se distinguir imunidade de jurisdição e imunidade de execução, visto que são umbilicalmente ligadas, porém demandam considerações diversas, diante da complexidade do tema.

As imunidades de jurisdição (que dizem respeito às possibilidades de órgãos dos Poderes Judiciários conhecerem e julgarem causas em que são partes, particularmente no pólo passivo, as pessoas imunes) e as imunidades de execução (relativas às possibilidades de os Poderes Judiciários decretarem, de maneira preventiva, acautelatória ou definitiva, medidas constritivas contra aquelas pessoas imunes, ou autorizarem execuções compulsórias contra os bens móveis ou imóveis de que elas sejam proprietárias ou ainda, detentoras, em nome de um Estado estrangeiro)61.

São duas grandes categorias, nitidamente separadas pelas relações de trabalho com o Estado estrangeiro acreditante: pessoas empregadas do Estado acreditante e pessoas do serviço doméstico daquelas e que não sejam “empregados do Estado acreditante”, que a Convenção denomina de “criado particular”. Quanto às pessoas com vínculos de trabalho com do Estado acreditante e que estejam a seu serviço, denominam-se “membros do pessoal da Missão”, e compreendem:

a) Pessoas, na maioria dos casos, estrangeiras em relação ao Estado acreditado, da mesma nacionalidade do Estado acreditante, e com vínculos funcionais unicamente com o

60 REZEK, F. A imunidade das organizações internacionais no século XXI. Brasília: CEDI, 2002. p. 15. 61

este Estado: trata-se do que a Convenção denomina “agente diplomático” e que compreende o chefe da Missão e os diplomatas (art. 1º al. E). Conquanto a Convenção não defina expressamente “diploma”, deixa a entender que tal qualificação é de exclusiva competência do Estado acreditante indicar, no momento em que informa ao Estado acreditado, da chegada de pessoa com tal qualidade;

b) Pessoas nacionais do Estado acreditado ou estrangeiras, membros do pessoal da Missão, empregados no serviço administrativo e técnico da missão, denominados “membros do pessoal administrativo e técnico” (id. Al. F); incluem tanto pessoas de alta confiança do Governo acreditante (como assessores e técnicos em aspectos da realidade nacional do Estado acreditante, criptógrafos, pessoal do serviço de telecomunicações, de malas diplomáticas e arquivistas), quanto pessoas que necessitam conhecer a língua e a realidade nacional do Estado acreditado (secretárias, intérpretes e tradutores, pessoas a serviço de secretaria como mensageiros, auxiliares de escritório);

c) pessoas nacionais ou estrangeiras, empregados no serviço doméstico da Missão, denominados “membros do pessoal de serviço”, como carpinteiros, vigilantes, motoristas, mordomos, faxineiros.

Os funcionários que não estão nesta situação, gozarão de isenção de impostos e taxas sobre os salários se forem nacionais do Estado acreditado e tenham sua residência, se não forem nacionais ficaram com atribuição das imunidades civis e administrativas.

As imunidades consulares se acham discriminadas na Convenção de Viena sobre Relações Consulares, de 196362, que a doutrina considera menos abrangentes que as imunidades contempladas na sua homônima sobre Relações Diplomáticas de 1961 (na verdade, por vários motivos, dentre os quais se destaca o menor grau de representatividade de Estados estrangeiros que as repartições consulares exercem, frente a autoridades do Estado receptor)63.

A noção do Poder Judiciário controlando atos do Executivo e de outros Organismos Internacionais invoca a força do dualismo e da soberania absoluta, fazendo com que jurisdição absoluta perca força e não busque frear o avanço da integração e cooperação, mas a preocupação de harmonia dos efeitos da globalização.

A Administração na coordenação da Cooperação Técnica Internacional deve submeter seus atos à justiça e aos instrumentos de controle.

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BRASIL. Decreto nº 52.288, de 24 de julho de 1963. Convenção sobre pivilégios e imunidades das Nações Unidas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jul. 1963.

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Na verdade, enquanto era clara a idéia de que o Poder Judiciário poderia e deveria controlar os outros dois e a si próprio, era vigente outra idéia, no que respeita aos cidadãos submetidos à jurisdição do Estado: the king (Queen) can do no wrong, ou seja, existiria uma presunção de legalidade dos atos do Poder Executivo que o tornariam imune à jurisdição de seus tribunais internos. Tal concepção, ancorada no modelo do Estado liberal, não intervencionista, em que este somente emprestaria seu poder jurisdicional para as causas entre particulares, inadmitidas reclamações de particulares contra a Administração, sofreria profundas erosões, a partir do momento em que o Estado passa a intervir cada vez mais na economia, invadindo campos, que no modelo liberal clássico, eram reservados aos particulares64.

Outro aspecto relevante é a execução, pois a relativização da imunidade não leva imediatamente à execução dos Organismos Internacionais, vez que deve buscar o bem não afeto à atividade consular ou diplomática, porque só assim a possibilidade se viabiliza. No caso de não encontrar possibilidade, busca-se arrolar a União como responsável solidária, já que foi ela que criou os compromissos internacionais e permitiu de alguma forma, ativa ou passivamente que as relações de trabalho na Cooperação Técnica Internacional fossem levadas aos Tribunais.

Os autores das ações ficam sem perspectivas de receber seus direitos trabalhistas reconhecidos pelo Judiciário, pois ao vencer a lide, esbarra na impossibilidade de execução da sentença, a ação será possível e muitas vezes extinta sem julgamento do mérito, uma vez que boa parte dos juízes reconhece as convenções de privilégios e imunidades e principalmente os compromissos assumidos pelo País.

A imunidade, portanto, não existe, no caso do processo intentado à conta de uma relação estabelecida com o meio local, o setor privado destacadamente, e regida pelo direito material brasileiro65.

As Convenções ratificadas pelo Brasil sobre imunidades se encontram incorporadas ao ordenamento jurídico e a jurisprudência dos Tribunais Federais recepciona como legislação ordinária federal de nível infraconstitucional e que podem ter dispositivos afastados por norma interna conflitante posterior.

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SOARES, F. S. G. Origens e justificativas da imunidade de jurisdição. Brasília: CEDI, 2002. p. 46.

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Tudo em virtude das violações em Direito do Trabalho sofridas por trabalhadores em Missão diplomática estrangeira ou Repartição consular, pouco importando sua nacionalidade, mas sim o local da assinatura do contrato de trabalho.

O Ministério das Relações Exteriores em Nota Circular às Missões Diplomáticas e Repartições Consulares acreditadas em Brasília, divulgado junto àquelas entidades de Governos estrangeiros, que, em atenção aos reiterados pedidos de informações sobre reclamações trabalhistas em curso na Justiça brasileira e que as envolvia, a posição do Poder Executivo seria no sentido de, respeitada a separação de Poderes, pedir a atenção delas para o fato de que o assunto estava totalmente adstrito à justiça trabalhista brasileira. Face à aplicação pelos tribunais brasileiros da teoria da imunidade restrita66.

O Poder Executivo não teve condições de intervir em prol dos Organismos Internacionais, principalmente em virtude da separação dos poderes e que eles deveriam se atentar para as normas e promover suas defesas nas postulações perante o Poder Judiciário, era o recado da imunidade relativa em questões trabalhistas.

Visível é relativização do caráter absoluto da imunidade, no entanto o Estado investiu em ações em que não foram tomadas as devidas cautelas, pois promoveu a ampliação da cooperação internacional de forma quase que irresponsável.

A propalada diminuição do tamanho do Estado, que é a perspectiva do tempo, leva a refletir sobre o que será o futuro da imunidade, instituto jurídico indispensável nas relações interestatais. Não se trata de tema de direito adjetivo, uma processualidade como se poderia antever equivocadamente. Com desdobramentos importantes, é certo, da área penal à trabalhista, do direito tributário ao direito civil, porém sempre e inexoravelmente direito internacional público67.

Brasília contém uma quantidade expressiva de Embaixadas e Organismos Internacionais, mas o problema não se resume ao Distrito Federal, visto que vários acordos de cooperação estão sendo realizados nos Estados Federados e em Municípios, o que remete a reclamação para a residência do obreiro, tema que complica cada vez mais a questão, então quem vai fazer a defesa desses Organismos?

A União acaba sendo arrolada solidariamente no processo, já que muitas vezes, resultam em processos que se arrastam por anos ou em meses na Justiça do Trabalho.

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SOARES, F. S. G. Origens e justificativas da imunidade de jurisdição. Brasília: CEDI, 2002. p. 64.

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FONTOURA, J. Imunidade de jurisdição dos Estados Estrangeiros e de seus agentes: uma leitura ortodoxa. Brasília: CEDI, 2002. p. 78.

Relevante questão que deve ser encarada de forma racional, pois a imunidade não deve ser relativa a ponto da Cooperação Técnica Internacional e a atuação dos Organismos perderem a credibilidade construída através de excelentes trabalhos realizados.

No momento presente, pode-se dizer que em assunto trabalhista, e no processo de conhecimento, o Estado estrangeiro está submetido à jurisdição brasileira. Portanto, “o silêncio implica revelia e os problemas encontráveis na prática não podem ser evitados simplesmente com a invocação da imunidade relativa68” (tradução livre do autor).

Novamente, doutrina e jurisprudência vêm em socorro do abrandamento do princípio da imunidade absoluta. Dessa feita, cuida-se da imunidade de execução. Argumenta-se que é possível eventual execução sobre bens ou contas bancárias não afetas à função pública do Estado faltoso. Assim, os bens inequivocamente destinados pelo Estado estrangeiro ao desenvolvimento de atividades industriais ou comerciais não estariam isentos. O problema aqui está na comprovação de que tal ou qual bem pode responder pela condenação69.

Essa situação em matéria trabalhista requer um comentário apurado, uma vez que a legislação brasileira dá prioridade aos créditos trabalhistas e tributários e no caso concreto, os consultores acionam o Poder Judiciário pedindo o reconhecimento do vínculo e durante este tempo não recolhe Imposto de Renda, se por outro lado irá receber ou executar os Organismos Internacionais, estará exposto à Receita Federal que vêm cobrando esses tributos.

Se o processo de conhecimento der ganho de causa ao obreiro, o juiz da execução não verá óbice para executar os bens do Organismo, pois a matéria de imunidade já foi ventilada e discutida, não sendo cabível a sua argüição. O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas possui repasse de verbas e contas bancárias que podem ser bloqueadas e possui máquinas e equipamentos para serem levados à penhora. É obvio que este não é o caminho a ser tomado e sim uma renovação dos critérios para contratação de consultores, tema que será abordado no terceiro capítulo.

Instituto da Imunidade não é novo e pelos estudos já realizados, muita teoria tem sido invocada, transformando-o em criticado, odiado, mas sempre presente e necessário nas relações internacionais e principalmente na relação do Estado Receptor e as Organizações Internacionais. O problema reforça a questão dos critérios levantados na pesquisa, visto que os problemas surgem de todos os lados e as leis estão sendo criadas para equacionar a ausência de limites dando margem a uma enorme discricionariedade na contratação de consultores e funcionários para trabalharem na Cooperação Internacional.

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GARCIA, M. Imunidade do Estado: quem disse que o rei não erra? Brasília: CEDI, 2002. p. 93.

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Sobre o tema trabalhista, pensamos que deveria prevalecer a jurisdição do Estado receptor tanto para o processo de conhecimento quanto para o de execução, em benefício da parte mais fraca na relação laboral70.

Não acreditamos que a perda da ação trabalhista comprometa a situação econômica do Estado ou Organismo que viola as regras trabalhistas, primeiramente que a atuação da Justiça Trabalhista não seja mitigada e o cumprimento fiel da legislação trabalhista seja respeitada. A Secretaria de Fiscalização do Trabalho do Ministério do Trabalho, por exemplo, editou cartilha de orientação para as legações.

O Brasil em virtude do Princípio da Reciprocidade, quando condenado cumpre as decisões estrangeiras em matéria trabalhista no plano externo ou os Organismos Internacionais, especialmente o PNUD que possui décadas de atividade no País não conhece as leis trabalhistas ou será preciso aditar os acordos de cooperação para inserir cláusulas de cumprimento de normas trabalhistas.

A União deveria arcar com o ônus na eventualidade de o Estado condenado não cumprir a decisão. Cuida-se de matéria vinculada a alimentos. A boa razão, o espírito humano assim recomenda. Como operacionalizar, no entanto, semelhante proceder? Os assessores responsáveis pelo orçamento da união saberão encontrar rubrica própria para fazer frente a tais desembolsos que, insistimos, não são, salvo para os interessados, de grande dimensão. E mais, tais despesas poderiam ser compensados mais adiante.

Situação que consideramos inaceitável, pois os Organismos Internacionais não estão adstritos ao orçamento de Estados e nesse caso não existe possibilidade de se contabilizar as despesas em dívidas trabalhistas para posterior cobrança de outro Estado e mesmo as Agências Especializadas, não se busca o acirramento dos ânimos e nem defender unilateralmente os Organismos Internacionais, porque houve a contratação com anuência da União e ágüem deve arcar com os ônus das ações trabalhistas e encontrar uma solução humanitária e justa para os trabalhadores e para o prosseguimento da Cooperação Internacional no Brasil.

A situação não é simples, já que a maioria quase que absoluta de demandas judiciais envolvendo os Organismos Internacionais, a maioria esmagadora é de natureza trabalhista em dados fornecidos pela Divisão jurídica do Ministério das Relações Exteriores.

É que o mesmo art. 114 da CF, ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, acabou por eliminá-la (a imunidade), dizendo que os dissídios individuais e coletivos entre

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trabalhadores e empregadores, pode abranger, entre estes últimos, os entes de direito público externo71.

Assim não há como falar em imunidade de jurisdição em causa trabalhista, nem para o Estado e nem para os Organismos Internacionais em face ao Direito Constitucional superveniente legitimando as ações, seu conhecimento para análise dos casos concretos pela justiça especializada (trabalhista).

O Poder Judiciário ainda reconhece a renúncia da imunidade de forma expressa como previsto na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, em cujo artigo 32, § 2º, dispõe: “A renúncia será sempre expressa”, não acatando a renúncia tácita, problema que afetou várias ações trabalhistas72.

Posteriormente, em 1987, o STF volta a analisar o problema da renúncia tácita à imunidade de jurisdição sob o pálio da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, no caso Achiles Arino Teixeira v. Consulado Geral da Suíça no Rio de Janeiro. Nesse caso, numa reclamação trabalhista, a Suíça teria aceito tacitamente a jurisdição ao discutir o mérito da ação, sem invocar a exceção de imunidade. Houve uma divergência na corte quanto à legalidade dessa renúncia tácita, frente à exigência de renúncia expressa na Convenção de Viena73.

A quebra da imunidade inicialmente foi aceita pelos juízes principalmente de primeiro grau no período de 2000 e 2001, mas imediatamente, os Organismos Internacionais liderados pelo PNUD promoveram diversos debates que fizeram com que as imunidades e privilégios fossem novamente respeitados pelo Tribunal Regional Federal da 10ª Região.

Deste modo o debate sobre imunidades veio para nortear o tamanho do problema e as peculiaridades do objeto de pesquisa e, quais e tantos caminhos podem tomar as questões que estão sendo enfrentadas.

71 BASTOS, C. E. C.; MADRUGA FILHO, A. P. A prática da imunidade dos Estados: perspectiva brasileira.

Brasília: CEDI, 2002. p. 137.

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BRASIL. Decreto nº 52.288, de 24 de julho de 1963. Convenção sobre pivilégios e imunidades das Nações Unidas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jul. 1963.

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