3. MARIA DE PADILHA E INÊS DE CASTRO NAS CRÔNICAS DE PERO LOPEZ
3.2 A DAMA E OS CRONISTAS: INÊS DE CASTRO NOS RELATOS DE PERO LOPEZ DE
3.2.2 Inês de Castro na crônica de Fernão Lopes: “elRei Dom Pedro a Dona Enes como se
vista e falla”
150A primeira observação que temos a respeito da presença de Inês de Castro na Crônica
de Dom Pedro I, de Fernão Lopes, relaciona-se à quantidade de citações de seu nome durante
o texto, indo do capítulo I ao último (o XLIV), a aia aparece em oito deles
151, sendo também a
mulher mais citada de toda a obra. Outro aspecto importante é a diferença que se tem entre
Inês de Castro no texto lopeano e Maria de Padilha na crônica de Pero Lopez de Ayala, o
cronista castelhano preenche seu relato de citações da amante de Pedro Cruel como mulher
bondosa, formosa e de bom senso, além descrever ações dela, pois a teria conhecido
pessoalmente; já Fernão Lopes não se arrisca a fazer nenhuma descrição pessoal a respeito de
Inês de Castro, mulher que não conheceu. Ao contrário de outros personagens que aparecem
na crônica de Fernão Lopes e que possuem voz ativa, ou até mesmo discursos elaborados pelo
autor (estes somente são figuras masculinas
152, o que curiosamente não acontece na crônica
ayalina), Inês não aparece com nenhuma fala ou exercendo uma atuação direta em alguma
questão
153. Porém, seu papel nos rumos do reinado de Pedro e logo após este se mostra
149 OLIVEIRA, A. R. Op. Cit. p. 9.
150 LOPES, F. Op. Cit., Cap. XLIV, p. 200. (Ver apêndice, tabela das individualidades femininas em Fernão Lopes).
151 Tais capítulos são: I, XXVII, XVIII, XXIX, XXX, XXXI, XLIII, XLIV.
152 Pelo menos na Crónica de D. Pedro I, pois isto não ocorre do mesmo modo nas crônicas seguintes do autor. 153 Diferentemente do que se dá com Maria de Padilha, pois como observamos anteriormente, esta aparece em determinado trecho como a informante que alertou D. Álvaro de Castro e Álvaro Gonçalves contra a uma armadilha tramada por seu amante contra eles (LOPES, 1965: 75). Tal relato se apresenta de forma muito semelhante ao presente na crônica de Ayala. (LOPES, 1965: 75).
fundamental, conforme o relato do cronista. Sua figura ajuda a compor a representação de
monarca que Fernão Lopes desejava transmitir para D. Pedro I.
Como observado anteriormente, a maioria das mulheres que são nomeadas na crônica
lopeana são ou nobres citadas em trechos relacionados às alianças matrimoniais para manter a
estabilidade dos reinos de Portugal e Castela, ou são mulheres de outros estratos sociais, que
geralmente aparecem vinculadas à aplicação da justiça do monarca e por isso em questões
morais. Já Inês aparece como um caso à parte, relacionada a maioria das vezes às
conseqüências de sua morte, ao suposto casamento secreto com Pedro, à vingança do Cru
contra os seus assassinos, ao seu caso de amor com o monarca e, por fim, o traslado de seu
corpo para o mosteiro de Alcobaça, o qual foi feito a mando do rei como rico e ornamentado
túmulo, construído juntamente com o que seria de D. Pedro.
Dividiremos esta presença da aia na crônica de Fernão Lopes também em conjuntos de
temas. Inicialmente, com relação ao tema do casamento entre Pedro e Inês, há uma citação já
no primeiro capítulo do texto (“Do Reinado del Rei Dom Pedro, oitavo Rei de Portugal e das
comdiçoões que em elle avia”) [o grifo é nosso]:
Este rei nom quis mais casar depois da morte de Dona Enes em seendo Iffamte, nem depois que reinou lhe prouve receber molher; mas ouve amigas com que dormio, e de nehuuma ouve filhos, salvo d’huuma dona natural de Galiza que chamaron Dona Tareija, que pario del huum filho que ouve nome Dom Joham, que foi meestre Davis em Purtugal, e depois Rei [...].154
Neste primeiro momento, o cronista expõe o fato de o rei não querer mais casar depois
da morte de Inês (supondo também o conhecimento dos leitores a respeito de quem fora esta
mulher, pois ao longo da crônica não explica em nenhum momento quem fora a personagem).
Ou seja, a partir da frase pode-se supor que o rei fora casado com Inês. Em seguida, atenta
para o fato de que D. Pedro teria tido amigas com quem dormiu; conforme Georges Duby em
seu livro Damas do século XII- A lembrança das ancestrais, as amigas eram diferentemente
das damas e das esposas, mulheres que dividiam o leito dos monarcas e senhores e denotavam
não a “desavergonhada”, mas sim a aceitação no período de que a maioria dos homens não se
contentava apenas com uma mulher
155, ainda mais um homem como D. Pedro, que havia
154 LOPES, F. Op. Cit. Cap. I, p. 9.
155 In: DUBY, G. Damas do século XII - a lembrança das ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.p. 84. Apesar de a referência de Duby ser para o contexto do século XII, a permanência deste tipo de relação poligâmica é duradoura e se confirma neste exemplo do século XIV, bem como no de Pedro, O Cruel, para o contexto castelhano, que dormia com uma D. Isabel, após a morte de Maria de Padilha. Tal dona criara o filho de Maria, D. Afonso, e teve com o monarca D. Sancho e D. Diego. D. Pedro queria bem a estes filhos e a esta mulher, por isso em 1363 mandou-os para Carmona. Neste local, já estavam também outros filhos que Dom Pedro havia tido com outras donas. No entanto, esses filhos são apoderados por Henrique Trastâmara, que os
perdido sua grande amada. D. Teresa aqui ocupa este lugar, ela foi apenas uma amiga com
quem D. Pedro dormiu, sua relação com ele não tinha a legitimidade do matrimônio que teve
com Constança e nem a profundidade do amor que nutriu pela dama Inês de Castro, a qual ele
inclusive quis legitimar ao afirmar ter se casado em segredo. No entanto, Teresa foi a
responsável maior do futuro rumo de Portugal ao dar à luz a D. João, filho que D. Pedro
tornou Mestre de Avis e que a despeito de uma maior legitimidade que teriam os filhos de
Inês de Castro com o monarca, foi quem se tornou rei após a morte de D. Fernando e a crise
de 1383-1385.
Inês de Castro só volta a aparecer na crônica lopeana no capítulo XXVII (“Como el
Rei Dom Pedro de Purtugal disse por Dona Enes que fora sua molher reçebida e da maneira
que em ello teve”), após boa presença da matéria de Castela no texto. Voltando à temática do
possível casamento entre Pedro e Inês, é neste capítulo que Fernão Lopes se dedica a relatar a
Declaração de Cantanhede em 1360. No início do texto, o cronista nos diz “Ja teemdes ouvido
compridamente hu fallamos da morte de Don Enes, a razom por que alRei Dom Affonso
matou, e o grande desvairo que amtrelle e este Rei Dom Pedro seemdo estomçe Iffamte ouve
por este azo”
156. Esta afirmação indica a possível existência de uma crônica de D. Afonso IV,
escrita por Fernão Lopes, visto que os principais acontecimentos da vida de Inês e inclusive
sua morte ocorreram no reinado do pai de D. Pedro. Desafortunadamente, se esta crônica
existiu, não chegou até nossos dias. Provavelmente, foi nela que o autor descreveu mais
detalhadamente quem foi Inês de Castro, como se deu seu envolvimento com D. Pedro e
também seu assassinato, o qual não possui descrição detalhada a respeito na Crônica de Dom
Pedro I, entendido nesta como já conhecido do público leitor e existindo somente
informações pós-morte da aia
157.
Na continuidade do relato, tem-se a descrição da declaração feita por D. Pedro I em
Cantanhede [os grifos são nossos]:
Hora assi he que em quamto Dona Enes foi viva, nem depois da morte della em quamto elRei seu padre viveo, nem depois que el reinou, ataa este presemte tempo, nunca elRei Dom Pedro a nomeou por sua molher; ante dizem que muitas vezes lhe emviava elRei Dom Affonsso pregumtar se a reçebera e homrrallahia como sua molher, e el respomdia sempre que a nom reçebera nem o era. E pousando elRei em esta sazom no logar de Cantanhede, no mês de Junho, avemdo já huuns quatro annos que reinava, teendo hordenado de a pubricar por molher, estamdo antelle Dom Joham Affonsso comde de Barcellos
mantêm presos ao longo da vida e ao longo do reinado de D. Juan I. (AYALA, 1953: 590). Portanto, observamos novamente a dada poligâmica afirmada por Duby.
156 LOPES, F. Op. Cit., Cap. XXVII, p. 125.
157 Esta ausência da Crónica de D. Afonso IV também é enunciada por Maria do Rosário Ferreira em seu artigo já citado: Onde está Inês posta em sossego? ... p. 9.
seu mordomo moor, e Vaasco Martins de Sousa seu chamçeller, e meestre Affonso das leis, (...) e outros muitos que dizer nom curamos, fez elRei chamar huum tabeliam, e presemte todos jurou aos evangelhos per el corporalmente tangidos, que seendo Iffante, vivemdo aimda elRei seu padre, que estando el em Bragamça podia aver huuns sete anos, pouco mais ou meos, nom se acordando do dia e mez, que el reçebera por sua molher lidema per pallavras de presemte como manda a samta igreja Dona Enes de Castro, filha que foi de Dom Pero Fernamdez de Castro, e que essa Dona Enes reçebera a elle por seu marido per semelhavess palavras, (...), a tevera sempre por sua molher ataa o tempo de sua morte, vivendo ambos de consuum, e fazemdosse maridança qual deviam.158
Fernão Lopes enuncia então como se deu a declaração, quatro anos após a morte de D.
Afonso IV. D. Pedro até o momento nunca havia declarado ter ser casado com D. Inês e
sempre negava quando questionado por seu pai, temendo a reação que este teria. De forma
diversa do relato de Pero Lopez de Ayala (o qual afirmou ter sido um dos motivos da morte
de Inês a chegada aos ouvidos de Afonso IV de que Pedro teria dito a alguns de seus privados
que casara com ela
159), Fernão Lopes ressalta apenas o fato de o infante sempre negar que
havia se casado com a aia. Em seguida, o cronista cita os que estavam presentes em
Cantanhede e foram testemunhas do dito casamento, passando para o juramento sobre os
Evangelhos que teria feito Pedro de tal testemunho, bem como o fato de o rei não se lembrar
ao certo da data em que o matrimônio havia sido realizado, e depois a descrição da
concretização do ato em conformidade com as normas da Igreja. D. Pedro, portanto, ao fazer
esta declaração (assim como Pedro I de Castela faria posteriormente com Maria de Padilha),
ansiava colocar sua relação com Inês de Castro dentro da ordem estabelecida no período
(mesmo que de seu modo), vide a importância do imaginário em torno do religioso no
momento e sociedade; além disso, teria o monarca vivido com a aia, como se fossem casados
legitimamente. Outro fator que vem a corroborar esta visão é a existência dos túmulos
ricamente ornamentados de Pedro e Inês, presentes na igreja do Mosteiro de Alcobaça até
hoje, sobre os quais nos deteremos mais adiante.
No capítulo seguinte, XVIII - “Do testemunho que alguuns derom no casamento de
Dona Enes, e das razoones que sobrello propôs o comde Dom Joham Affonso”, tem-se o
relato de duas testemunhas (D.Gil, bispo da Guarda e Estevão Lobato, criado do rei) sobre o
casamento, as quais lembram de detalhes da cerimônia, mas não de sua data. Em seguida há o
testemunho do Conde de Barcelos, D. João Afonso, citado em discurso direto por Fernão
Lopes, o qual aborda a questão do parentesco existente entre Pedro e Inês [os grifos são
nossos]:
158 LOPES, F. Op. Cit., Cap. XXVII, pp. 125 e 126.
<o gram divedo que amtrelles avia, seemdo ella sobrinha delRei nosso senhor, filha de seu primo com irmaão,; porem me mandou que vos certificasse de todo, e vos mostrasse esta bulla que ouve em seemdo Iffamte, em que o papa despenssou com elle, que podesse casar com toda molher, posto que lhe chegada fosse em parentesco, tanto e mais como Dona Enes era a elle>.160
Inês seria, portanto, sobrinha de Afonso IV, na medida em que era filha de um primo
coirmão do monarca. Existiria assim, um impedimento de parentesco definido pela Igreja para
o casamento da aia com o infante Pedro, que poderia ser corroborado por outro fator não
citado por Fernão Lopes: a dama era madrinha de um filho do infante com Constança Manuel,
o que caracterizava parentesco espiritual segundo a norma canônica vigente no período. No
entanto, sabe-se que as normas não implicam necessariamente execução na vida prática,
quanto mais de forma perfeita. Conforme observamos no primeiro capítulo de nosso estudo,
negociações eram estabelecidas entre as autoridades laicas e eclesiásticas. Um exemplo disto
seria a carta que D. Pedro I teria enviado ao Papa de Avinhão, João XXII, para que este
emitisse uma bula autorizando seu casamento com qualquer mulher que lhe prouvesse,
mesmo que esta lhe tivesse parentesco. A dita bula do Papa, apresentada pelo Conde de
Barcelos, continha em dado trecho:
<[...] queremdo condescender a tuas prezes e delRei Dom Affonso teu padre, [...] pera casardes com qualquer nobre molher, devota a samta egreja de Roma, aimda que [...] sejaaes divedos e paremtes, [...] que a geeraçom que de vos ambos nascer, seer legitima sem outro impedimento [...]>.161
Observamos, portanto, que a importância do parentesco poderia ser retirada,
prevalecendo somente a condição de ser a mulher escolhida por D. Pedro devota da Santa
Igreja. Esta bula papal teria sido apresentada em Cantanhede como prova da real possibilidade
do casamento entre Pedro e Inês, retirando-lhe um importante impedimento a partir de uma
concessão oficial. No entanto, não será essa visão da concretização do casamento de Pedro e
Inês que Fernão Lopes legará à história, como veremos adiante.
Antes de passarmos ao tema maior da presença de Inês na crônica lopeana, que se
refere à legalidade do casamento de Inês e Pedro por Fernão Lopes e o enfoque maior no
sentimento amoroso em si, abordaremos um tema intermediário: a perseguição e morte dos
conselheiros de Afonso IV que teriam influenciado o assassinato da predileta do infante. O
tema está presente em dois capítulos da crônica, o primeiro é o XXX - “Como os reis de
Purtugal e de Castella fezerom amtre si aveenças que entregassem huum ao outro alguuns,
que amdavom seguros em seus Reinos”. Fernão Lopes aborda com muito mais detalhes o fato
160 LOPES, F. Op. Cit., Cap. XXVII, pp. 132. 161 Ibidem, p. 133.
que Pero Lopez de Ayala. O cronista português inicia com um julgamento moral contra a
atitude de D. Pedro I de trocar prisioneiros com D. Pedro I de Castela, pois o rei de Portugal
não se manteve fiel à sua própria verdade, sendo capaz de atitude indigna como esta [os grifos
são nossos]:
ouveram as gentes por mui gram mal huum muito davorreçer escambo, que este ano antre os Reis de Purtugal e de Castella foi feito; em tanto que posto que escripto achemos delRei de Purtugal que a toda gente era mantenedor de verdade, nossa teemçom he nom o luvar mais; pois contra seu juramento foi comsentidor em tam fea cousa como esta.162
O rei no exagero de seu amor por Inês, ao querer vingá-la cometeu excessos muito
graves, o que vem a coincidir quando lembramos de uma noção presente no imaginário
medieval, já trabalhada no início de nosso estudo: o homem não deveria dedicar tanto amor a
uma mulher, o sentimento amoroso masculino em desmedida poderia gerar conseqüências
graves, o homem diferentemente da mulher deveria manter sua racionalidade, a qual
naturalmente já seria superior a de sua companheira. A descrição empreendida no relato de
Fernão Lopes, impregnada da presença de sua própria voz (como no exemplo do julgamento
moral em que decide não louvar mais D. Pedro I), faz também uma ressalva retirando a culpa
de Diego Lopes Pacheco no assassinato de Inês:
Omde assi aveo segumdo dissemos que na morte de Dona Enes que elRei Dom Affonsso, padre delRei Dom Pedro de Purtugal seemdo entom Iffamte, mandou matar em Coimbra, forom mui culpados pello Iffamte Diego Lopez Pacheco, e Pero Coelho, e Alvoro Gomçallvez seu meirinho mor, e outros muitos que el culpou, mas assiinadamente contra estes tres teve o Iffantre mui gramde rancura; e fallando verdade Alvoro Gomçalvez, e Pero Coelho eram em esto asaz de culpados, mas Diego Lopez nom, por que muitas vezes mandara perçeber o Iffamte per Gomçallo Vaasquez seu privado, que guardasse aquella molher da sanha delRei seu padre. Pero depois de todo esto foi elRei dacordo a estes e a outros em que sospeitava; 163
Teria Diego Lopes Pacheco alertado o infante para que escondesse aquela mulher da
sanha de Afonso IV, informação esta não presente no texto de Ayala, o que pensamos
dever-se ao fato de à época de Fernão Lopes já dever-ser conhecido o destaque posterior de Diego Lopes
Pacheco em Portugal, que após obter o perdão do rei Pedro no final da vida deste, ainda veio a
servir e exercer influência no reinado de D. João I (fundador da dinastia à qual nosso cronista
servia).
Já no capítulo XXXI, “Como Diego Lopez Pacheco escapou de seer preso, e forom emtregues
os outros, e logo mortos cruellmente”, o cronista afirma como o rei castigou Álvaro
Gonçalves e Pero Coelho: “sanha cruel sem piedade lhos fez per sua maão meter a
162 Ibidem, Cap. XXX, p. 141. 163 Ibidem, p. 142.
tromento”
164. O monarca teria também, ao não obter confissão dos acusados da morte de Inês,
dado um tapa no rosto de Pero Coelho, que lhe respondeu “em desonestas e feas pallavras,
chamamdolhe treedor, fe perjuro, algoz e carneçeiro dos homeens”
165. E logo em seguida, D.
Pedro manda lhe trazerem cebola e vinagre para a carne de coelho que iria comer, mandando
também que matassem os dois conselheiros. A estranheza e crueza da cena descrita por
Fernão Lopes gerou diversas repercussões em temas literários, pois o rei enquanto comia,
mandou matar de forma exageradamente cruel Pero Coelho e Álvaro Gonçalves [os grifos são
nossos]:
A maneira de sua morte, seemdo dita pelo meudo, seria mui estranha e crua de comtar, ca mandou tirar o coraçom pellos peitos a Pero Coelho, e a Alvoro Gomçallvez pellas espadoas; e quaaes palavras ouve, e aquel que lho tirava que tal officio avia pouco em costume, seeria bem doorida cousa douvir, emfim mandouhos queimar; e todo isto feito ante os paaços omde el pousava, de guisa que comendo oolhava quamto mandava fazer. Muito perdeo elRei de sua boa fama por tal escambo como este [...]166.
Tal descrição, segundo Maria do Rosário Ferreira, diverge em determinado ponto da
versão recolhida na refundição do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro de 1383. Nesta,
Pero Coelho ao invés de ofender o rei como disse Fernão Lopes, exibe compostura, dizendo
que perdoava a todos aqueles que lhe sentenciaram e pedia que Deus os perdoasse também
167.
Disto, denota-se a diferença que o relato lopeano estabelece ao construir uma nova versão do
assassinato de um dos conselheiros de Afonso IV. Como conclusão deste tema, percebemos
como o cronista português se utiliza de um relato repleto de uma carga emocional negativa de
crueza para destacar um ponto negativo de D. Pedro: a vingança cruel e imoral pelo amor
desmedido à Inês de Castro; pois um mau monarca era aquele que ia contra sua própria
verdade. D. Pedro teria sido injusto ao matar aqueles homens, desprezando a justiça que tanto
prezava.
Passando agora ao tema do questionamento do casamento de Pedro e Inês por Fernão
Lopes e seu enfoque no aspecto amoroso da relação, observamos no capítulo XXIX
(“Razones contra esto dalguns que hi estavom duvidamdo muito em este casamento”) como o
autor constrói seu discurso de modo a colocar em grande dúvida a legitimidade do
matrimônio do casal. Já no início, temos a reflexão que o cronista faz neste sentido [os grifos
são nossos]:
164 Ibidem, Cap. XXXI, p. 148. 165 Idem.
166 Ibidem, p. 149.
[...] aquelles que de chaão e simprez emtemder eram, nom escodrinhamdo bem o teçimento de taaes cousas, ligeiramente lhe derom fé, outorgando seer verdade todo aquello que alli ouvirom. Outros mais sotiis demtender, leterados e bem discretos, que os termos de tal feito mui delgado investigarom, buscamdo se aquello que ouviram podia seer verdade, ou per o contrario; nom reçeberom isto em seus emtendimentos, pareçemdolhe do todo seer uito contra razom. [...] o prudente homem que tal cousa ouve que sua razom nom quer conceber, logo se maravilha duvidando muito. 168