2. AS MULHERES NAS CRÔNICAS DE FERNÃO LOPES E PERO LOPEZ DE
2.2 ALGUNS PERFIS FEMININOS NAS CRÔNICAS DE PERO LOPEZ DE AYALA E FERNÃO
2.2.1 Perfis femininos na Cronica del Rey Don Pedro, de Pero Lopez de Ayala
A crônica elaborada por Ayala a respeito do monarca Pedro I de Castela possui em seu
total 55 referências a mulheres ou grupos de mulheres diferentes (incluindo Maria de Padilha
e Inês de Castro). Sendo que a maioria delas está relacionada ao mundo da corte, às tramas
que envolviam o rei. Muitas delas aparecem como enunciativas em dadas situações da
crueldade do monarca, que tanto o cronista se empenhou em demonstrar. Outras denotam
exemplos das situações sociais comumente conhecidas quando falamos em mulheres no
medievo, tal o caso das alianças matrimoniais estabelecidas entre nobres ou entre a realeza,
por exemplo. Analisaremos aqui alguns perfis femininos da crônica ayalina, selecionados por
denotarem diferentes situações vividas e espaços ocupados pelas mulheres na imagem criada
pelo cronista.
Iniciaremos com a primeira mulher citada no texto e diga-se, uma das mais citadas
68: a
rainha Leonor de Aragão. Esta mulher era tia de Pedro Cruel, irmã de Afonso XI. Ayala
empreende em sua narrativa a atuação direta desta mulher em vários eventos, como por
exemplo, quando D. Pedro após realizar suas bodas com Branca de Bourbon em Valladolid
abandona-a e vai ao encontro da amante, Maria de Padilha. A rainha Leonor, juntamente com
a mãe do monarca, a rainha Maria, chora e implora ao sobrinho para que não cometa essa
atitude e permaneça com sua mulher legítima. No entanto, o rei acaba enganando-as e parte
logo depois
69. Além deste momento, tem-se a descrição em várias passagens da crônica da
atuação dela perante a causa que se fez no reino a favor de D. Branca de Bourbon, pois o rei
pretendia (além de não se estabelecer com a esposa legítima) encarcerá-la. D. Leonor,
juntamente com outras importantes figuras do reino, manda cartas para várias cidades a fim de
que grandes senhores se juntassem a favor da causa de Dona Branca, objetivando fazer o
monarca abandonar a amante Maria de Padilha
70. Em um discurso direto atribuído por Ayala à
Leonor, a personagem diz ao rei várias palavras com relação a voltar com D. Branca, sua
mulher legítima, e para se afastar de homens como Juan Ferrandez de Henestrosa (este, tio de
Maria de Padilha)
71. Observamos, portanto, a importância e o grau de destaque que esta
mulher detém na corte castelhana, conforme Ayala, a ponto de se dirigir e aconselhar
diretamente o monarca.
Em um momento seguinte, porém, Ayala demonstra em sua crônica a mudança de
posição de Leonor de Aragão na causa de D. Branca. O que nos faz perceber uma questão
discutida anteriormente, de como tanto homens quanto mulheres procuravam obter benefícios
com a privança do monarca. Desta forma, a rainha aragonesa irá se afastar da questão de
68 Ela aparece em vários capítulos da narrativa dos anos: primeiro, quarto, quinto, sexto, nono, e décimo. O que pode ser conferido em detalhes no apêndice que se encontra ao final do trabalho, referente à tabela das individualidades femininas em Ayala.
69 AYALA, Pero Lopez de. Crônica Del Rey Don Pedro. In: ROSELL, D. Cayteano. (Org.). Crônicas de los
reyes de Castilla, desde Alfonso el Sábio hasta los catolicos Don Fernando y Doña Isabel. Madrid: Real
Academia Española, 1953. Año Cuarto (1353), Cap. XII, p. 433. 70 Ibidem, Año Quinto (1354), Cap. XXVI, p. 451.
Branca, após obter benefícios de D. Pedro (o rei dera-lhe a vila de Roa)
72. Porém, o destino de
Leonor muda, devido ao conflito que o monarca castelhano inicia com Aragão, em 1358 D.
Pedro manda prendar a rainha e em 1359 dá a ordem para executá-la ao perceber que não
conseguiria a paz com Aragão. Episódio do qual destacamos o seguinte trecho de Ayala com
relação à morte da rainha:
[...]de lo qual ovo muy grand sentimiento en todos aquellos que amaban servicio del rey, ca era la Reyna Doña Leonor de Aragon muy noble señora, é era su tia, fija del Rey Don Ferrando, hermana del ReyDon Alfonso su padre”73.
Portanto, percebemos como o cronista utiliza o exemplo desta mulher, tão presente na
vida da corte, para ressaltar ao final a crueldade do monarca, que ao não saber como lidar com
a situação de conflito com Aragão, manda matar sua tia.
Passando agora para a discussão de outras duas importantes personagens da crônica,
observemos a rainha D. Maria e sua oponente, a amante do rei Afonso XI, a D. Leonor de
Guzman. Aqui temos a oposição entre a figura da rainha, personagem central do mundo
feminino da corte de finais do medievo
74, e da amante do rei. A rainha Maria era filha de
Afonso IV de Portugal, portanto, irmã de D. Pedro I de Portugal, além de ter se casado com o
monarca Afonso XI de Castela e ser a mãe de D. Pedro I de Castela. D. Maria é, como Leonor
de Aragão, uma mulher muito citada na crônica ayalina, essencialmente por seu papel central
como mãe do Cruel
75. Ela possui também atuação direta em vários eventos, como na tentativa
de convencimento do filho de abandonar Maria de Padilha e viver com a mulher legítima
Branca. Mas um momento fundamental é quando Ayala enuncia que ela teria mandado matar
a mulher que fora a amante de seu marido Afonso, Leonor de Guzman
76. No entanto,
consideramos que a grande função da rainha Maria na crônica também está relacionada com
as crueldades cometidas pelo filho, Ayala demonstra o quanto esta mulher sofria com as
mortes que D. Pedro provocava e como o temia. Sendo fundamental o episódio em que ela
teria desmaiado ao ver vários cavaleiros serem executados por seu filho na sua frente e por
isso teria pedido para voltar para Portugal e viver no reino de seu pai. Lá Dona Maria irá
72 Ibidem, Año Quinto (1354), Cap. XXXVIII, p. 459. 73 Idem, Año Décimo (1359), Cap. IX, p. 493.
74 GOMES, R. Costa. Os indivíduos e os grupos. Os tempos da Corte. [excertos]. In: História e Antologia da Literatura Portuguesa, século XV. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. pp. 17, e 18.
75 Terceira mulher citada na crônica. Aparece em vários capítulos dos anos: primeiro, segundo, quarto, quinto, sexto, sétimo, oitavo, nono, décimo, décimo - terceiro e décimo - sétimo. (Ver apêndice, tabela das individualidades femininas em Ayala).
morrer pouco tempo depois e Ayala levanta inclusive a hipótese de que teria sido envenenada
a mando do próprio pai, “(...)por quanto non se pagaba de la fama que oia della.”
77.
Já Leonor de Guzman, bastante citada também ao longo da crônica
78, aparece como a
amante de Afonso XI, que, antes de sua morte, obtinha uma excelente condição de
estabelecimento no reino, mas que depois sofreu tanto com o filho deste, Pedro I, quanto com
a rainha Maria, mulher legítima do falecido monarca. Episódio fundamental está centrado em
momento próximo de sua morte, do qual citamos o trecho:
E el Maestre de Santiago fué a verla, é Doña Leonor tomo al Maestre su fijo é abrazólo, é bésolo, é estuvo uma grande hora llorando con el, é el con ella, é ninguna palabra no dixo el uno al outro [...] é nunca mas vió el Maestre á Doña Leonor su madre despues de aquel dia, nin ella á el. 79
Notamos a carga emocional que Ayala coloca na construção desta cena, neste
momento se aproximava a morte da mãe do futuro monarca Henrique II, a quem o cronista
serviria fielmente.
Passemos agora ao perfil de Branca de Bourbon
80, sobrinha do rei da França que teve
seu casamento negociado com Pedro I de Castela. No texto de Ayala ela aparece basicamente
como mais uma vítima das crueldades do monarca, mas diferentemente de Leonor de Aragão
ou da rainha Maria sua voz não está tão presente, ela é mais representada por outros que
dizem defendê-la de Pedro. No entanto, há uma referência fundamental, ao temer ser presa
por D. Pedro, refugia-se na Igreja de Santa Maria, da qual ninguém se atreveu a tirá-la, pois se
tratava de um lugar sagrado. Depois disso, começou a união empreendida pela rainha Maria,
pela rainha Leonor e outros nobres senhores para fazer D. Pedro voltar para Branca e largar a
amante Maria de Padilha. Outro ponto importante é a descrição do cruel fim destinado à
Branca na crônica: a morte em 1361, a qual é narrada desta forma por Ayala:
É Iñigo Ortiz fizolo asi: despues que fué en poder del Ballestero mandola matar. É pesó mucho dello á todos los del Regno despues que lo sopieron, é vino por ende mucho mal á Castilla. É era esta Reyna Doña Blanca del linage del Rey de Francia, é una vanda colorada por el escudo: é era en edad de veinte é cinco años quando morió: é era blanca é ruvia, é de buen donayre, é de buen, é de buen seso: é decia cada dia sus horas muy devotamente: é paso grand penitencia en las prisiones do estovo, é sufriólo todo con muy grand paciencia.81
77 Ibidem, Año Séptimo (1356), Cap. II, p. 470 e Año Octavo (1357), Cap. II, pp. 476 e 477.
78 Quarta mulher citada na crônica. Aparece em vários capítulos dos anos: primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo, décimo e décimo - primeiro. (Ver apêndice, tabela das individualidades femininas em Ayala).
79 Ibidem, Año Segundo (1351), Cap. III, p. 412.
80 Vigésima – segunda mulher citada na crônica. Aparece em vários capítulos dos anos: segundo, quarto, quinto, sexto, sétimo, nono, décimo, décimo – segundo, décimo- terceiro, décimo- quarto e décimo - sétimo. (Ver apêndice, tabela das individualidades femininas em Ayala).
Percebemos, portanto, o pesar com que o cronista descreve a sua morte, ressaltando
em seu discurso as qualidades de Branca (tanto físicas, quanto psíquicas - como ter bom
senso), sua alta linhagem (desprezada pelo monarca castelhano, ação que rendeu a este
problemas diplomáticos com a França), bem como a juventude com que morreu, finalizando
com a grande penitência que teria sofrido nas mãos de Pedro Cruel.
Outra mulher nobre que gostaríamos de destacar é a rainha Juana de Nápoles
82. Ela é
descrita como a mulher que reinava em Nápoles e fora esposa do rei Andrea, irmão do rei da
Hungria. Seu nome é citado no contexto em que Ayala aborda a morte do rei castelhano
Afonso XI, no qual o cronista situa o falecimento do monarca na época, citando quem era o
papa no momento e os governantes dos principais reinos, bem como o imperador do Sacro
Império Romano
83. Já num momento quase ao final do reinado de D. Pedro de Castela (no
ano décimo - oitavo), Juana de Nápoles aparece novamente, desposada com D. Jaymes, o que
garantiu a este ser chamado de rei de Nápoles. D. Pedro pediu ajuda ao monarca de Nápoles,
o qual por isto foi a Burgos, tendo Henrique Trastâmara entrado na cidade, aprisiona D.
Jaymes no castelo de Curiel. No entanto, a rainha Juana vem em seu socorro, pagando o
resgate e libertando o marido
84. A rainha de Nápoles é, portanto, um exemplo na crônica
ayalina de mulher que exercia o poder, comparada em importância a outros grandes
governantes, como o rei Henrique da Inglaterra e ao Imperador Carlos do Sacro Império
Romano. Sua atuação também é importante, na medida em que consegue decidir o destino de
seu marido, pagando seu resgate e conseguindo libertá-lo.
Analisaremos agora dois perfis femininos que não aparecem tanto na crônica ayalina,
mas que demonstram tanto situações possíveis à vida feminina no medievo, como
representações envoltas pelo imaginário do período. O primeiro caso é o da décima-nona
mulher presente na crônica, D. Margarita, provinda de uma família da alta nobreza castelhana,
filha de Dona Juana de Lara com Dom Fernando de la Cerda. Ayala a cita duas vezes e da
seguinte forma: “(...) morió monja em Caleruega.” e “É estuvo aquel dia de las bodas á las
espaldas de la Reyna Doña Blanca, segun sesuele usar en Castilla, Doña Margarita de Lara,
hermana de Don Juan Nuñez, que era Doncella é nunca casára.”
85. Ao contrário dos outros
perfis trabalhados até o momento, ela não aparece como mais uma vítima do Cruel, o objetivo
82 Segunda mulher citada na crônica. Aparece em dois capítulos presentes nos anos: primeiro, e décimo - oitavo. (Ver apêndice, tabela das individualidades femininas em Ayala).
83 AYALA, P. L. Op. Cit. Ano Primeiro (1350), Cap. I, p. 404. 84 Ibidem, Año Décimooctavo, Caps. XXXIV e XXXV, pp. 577 e 578. 85 Ibidem, Año Segundo (1351), Caps. X e XI, pp. 417 e 432.
de citá-la se insere apenas no fato de ter pertencido a uma grande linhagem e por fazer parte
dos acontecimentos do período, no entanto, podemos perceber nestes trechos outras
informações importantes referentes ao período. Margarita é referenciada pelo cronista como
uma donzela que nunca se casara e havia morrido monja. Tal exemplo pode estar relacionado
a tantos outros no mundo medieval, no qual muitas mulheres não conseguiam encontrar um
bom casamento e como bem atentou Georges Duby, em seu livro Damas do século XII – A
lembrança das ancestrais, acabavam indo para abadias femininas, onde ficavam até o fim de
seus dias
86.
Já a outra mulher é denominada por Ayala não como uma “dona” como as outras, mas
simplesmente por como era conhecida: Caba
87. Esta mulher é citada da seguinte forma por
Ayala:
[...] el Rey Don Rodrigo le tomará una su fija que se criaba en su palacio, á la qual decian la Caba, é era fija del Conde [Conde Don Illan, “[...] non de linage Godo, sinó de linage de los Césares, que quiere decir los romanos”] é de su muger Doña Faldrina, [...].88
E depois, é citada na carta de aconselhamento de um mouro de Granada, tido como
sábio e que era Conselheiro do rei de Granada, quando este critica a fornicação, dizendo que
esta era a pior das vontades. Caba é citada em um mau exemplo: “<E las ocasiones que
acescieron á los Reyes por el fornicio públicas son, é una dellas fué quando el Conde Don
Illan metió los Mores en el Andalucia por lo que el Rey fizo á la su fija>.”.
89A fornicação e o
desejo que as mulheres despertam nos homens é visto como algo negativo, na visão do sábio
mouro de Granada, que aconselha D. Pedro através de uma carta, mas este não segue suas
recomendações, indo à ruína pouco tempo depois. D. Pedro fora um homem de muitas
mulheres, que nunca deixou seu desejo de lado. Percebemos aqui o exemplo de Caba usado
para criticar o caráter pervertido de Pedro Cruel, o qual seria (em consonância com o
imaginário medieval) mais um dos motivos de sua derrota final e fracasso no reinado.
Por fim, temos como importante exemplo do feminino na crônica de Pero Lopez de
Ayala não uma mulher específica, mas um conjunto representativo de uma situação
específica: as donas de Córdoba que não queriam ser cativas dos mouros. A presença dos
86DUBY, G. Damas do século XII - a lembrança das ancestrais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.p. 134.
87 É a vigésima – quarta mulher apresentada na crônica. Aparece brevemente em um capítulo do ano segundo e em um capítulo do ano décimo- oitavo.
88 AYALA, P. L. de. Op. Cit. Año Segundo (1351), Cap. XVIII, p. 420. 89 Ibidem, Año Décimoooctavo (1367), Cap. XXII, p. 569.
mouros na Península Ibérica envolveu intensas situações de conflito entre cristãos e
muçulmanos. Um exemplo disso foi a invasão de Córdoba por numerosos mouros. Em um
trecho Ayala descreve a situação desta forma [os grifos são nossos]:
E ovo tan grand desmayo en los de la cibdad, que cuidaron que eran entrados: é las Dueñas é Doncellas que y eran, que era muchas é muy buenas, salieron á andar por las calles todas en cabello, pidiendo merced á los Señores é Caballeros é Omes de armas que eran en la cibdad, que oviesen duelo dellas, é non quisiesen que fuesen ellos é ellas en cativerio de los Moros enemigos de la Fé de Jesu-Christo: é tales lagrimas é palabras é cosas facian é decian, que todos los que lo oian cobraron grand esfuerzo, é luego aderszaron para las torres é el muro del alcazar viejo que los Moros avian entrado, é pelearon con ellos muy de recio como bueno, en guisa que mataron pieza dellos, é á los otros ficieronlos salir fuera de la cibdad [...].90