• Nenhum resultado encontrado

INCOMPATIBILIDADE ENTRE A VEDAÇÃO À PROGRESSÃO DE REGIME E A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

CAPÍTULO 4 ANÁLISE CONSTITUCIONAL DA VEDAÇÃO À SUSPENSÃO CONDICIONAL DA PENA E À PROGRESSÃO DE REGIME NO CRIME MILITAR DE

4.2. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A VEDAÇÃO À PROGRESSÃO DE REGIME E A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL

Não há a possibilidade de progressão de regime da pena nos crimes propriamente militares, entre os quais se inclui o de deserção.

Tal impossibilidade é incompatível com os preceitos insculpidos na Carta Magna de 1988, uma vez que viola os princípios da dignidade da pessoa humana, da humanização da pena e da individualização da pena.

O primeiro encontra-se insculpido no art.1°, III, da Carta Política de 1988, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, encontrando-se positivado, ainda, no art. 227 da Lex Suprema. Mesmo que não estivesse escrito, tal princípio haveria de ser, sempre, diretriz para todos os intérpretes do direito, orientando o julgador no caso concreto.

O cumprimento de pena em regime integralmente fechado avilta a dignidade de ser humano, pois não permite que ele prove a sua recuperação perante a sociedade, galgando, progressivamente, o cumprimento de sua pena para os regimes semi-aberto e aberto, até alcançar a completa liberdade, com seu retorno à vida social, procedendo-se, assim, a uma reintegração paulatina e progressiva do sentenciado à coletividade, para onde, mais dia, menos dia, ele haverá de retornar.

A ordem constitucional positiva não concebeu o princípio da dignidade da pessoa humana para que um condenado pelo crime de deserção permanecesse até longos dois anos trancafiado em uma cela sem a sua participação no convívio social, razão pela qual a sistemática processual militar, ao proibir tal progressão de regime, ofende o fundamento material da Constituição- a dignidade da pessoa humana-, motivo pelo qual deve ser declarada a incompatibilidade entre tal vedação e a Constituição de 1988.

Já o princípio da humanização da pena, por sua vez, positivado no art.4°, II, da Lei Maior, estabelece que o jus puniendi estatal não pode massacrar até as mínimas garantias

da esfera individual do cidadão, entre as quais a de passar a ser gradativamente ressocializado quando de cumprimento de reprimenda penal.

Ele remonta à Idade Média, quando os criminosos cumpriam penas crueis, como os ordálios ou “juízos de Deus”. Atualmente, porém, o Estado de Democrático de Direito brasileiro não pode conceber que uma sanção penal impinja sofrimento físico ao condenado, garantia que se deflui do art. 5°, XLIX, da CF/1988.

Acontece que o cumprimento integral de até 2 (dois) anos de pena em um minúsculo cubículo, sem nenhum contato significativo com a vida social fora do estabelecimento prisional, é um modo cruel de se punir o condenado, por massacrar exacerbadamente as suas mínimas liberdades, o que justifica a progressão de regime em um crime de pequena monta como o definido do art.187 do diploma repressivo castrense.

Deve-se, portanto, proteger a dignidade da pessoa humana do condenado, motivo pelo qual deve ser declarada incompatível com a Lei Suprema a inviabilidade de progressão de regime no crime de deserção.

Como a legislação castrense proíbe tal benefício processual, em face da não aplicação, via de regra, da LEP às punições no âmbito da caserna, padece tal vedação de incompatibilidade para com a Constituição Republicana de 1988.

No que concerne ao princípio da individualização da pena, vê-se que tal princípio, insculpido no art.5°, XLVI, surgiu como mais uma garantia ao acusado. Tal diretriz impõe a individualização da pena em 3 momentos: cominação, aplicação e execução.

No caso em tela, o vício de incompatibilidade macula todas essas fases, desde a cominação pelo Legislativo até a execução pelo julgador, dado que a vedação da progressão de regime não possibilita que o condenado tenha a sua reabilitação social analisada individualizadamente e reconhecida meritoriamente, por estabelecer que a pena de detenção a ele cominada deve ser cumprida, integralmente, em regime fechado.

Esta determinação constitui, desse modo, uma incompatibilidade com a Carta Política de 1988, ao não permitir que o apenado apresente a sua melhora paulatina à sociedade, progredindo, gradativamente, na sua reinserção social, verdadeiro objetivo da aplicação da reprimenda penal, direito que a individualização da pena lhe assegura, que, por estar sendo violado, deve, por afrontar o texto constitucional, ser declarado incompatível com a Lex Suprema.

O tratamento indiferenciado de todos os apenados, na fase de execução da pena, sem considerar as suas circunstâncias pessoais, o seu comportamento, a sua reabilitação na vida prisional rumo à sociedade, os quais, na maioria dos delitos da vida civil, inclusive de maior gravidade do que o crime de deserção, ensejam a concessão da progressão após o cumprimento de 1/6 da pena, assegurando-se a garantia da individualização da pena, assegurada na Carta Política, não pode ser concebido.

Como a lei castrense proíbe a progressão, malferindo a individualização da pena e, por conseguinte, a Constituição, deve ser declarada incompatível com a Carta Magna de 1988. Ratificando a incompatibilidade da vedação da progressão de regime, colacionamos a seguinte ementa de acórdão:

PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/9041.

É fato que o dispositivo que proíbe a progressão de regime nos crimes propriamente militares não foi recepcionado pela Carta Magna. Isso se dá em virtude de que foi concedida a progressão inclusive para os crimes hediondos, condutas que, sabidamente, são as mais perigosas à vida social, razão pela qual foram consideradas hediondas. Ora, se até para os crimes de máxima gravidade social foi concedida a progressão, por que não se lhe

41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82959/SP. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Data de julgamento: 23.02.2006. Data de publicação/Fonte: DJ de 1°.09.2006.

concederia para o crime de deserção, o qual tem lesividade infimamente menor do que os crimes hediondos?

Não há falar que, pelo fato da conduta ser tipificada como crime militar, tal evolução jurisprudencial ou mutação constitucional não se lhe aplicaria. Ademais, também não é razoável pensar que, pelo fato da Corte Suprema ter definido tal inconstitucionalidade na via difusa, a qual gera, via de regra, efeitos inter partes, não se lhe pode dar aplicação erga

omnes, uma vez que a tendência atual da jurisprudência do STF é a de objetivar os efeitos das

decisões prolatadas no controle difuso de constitucionalidade, a exemplo do decidido em sede de recurso extraordinário.

A primeira ilação é falsa, porque não se pode conceber que, pelo simples fato da deserção ser um crime militar, seu regime deva ser mais gravoso do que um crime hediondo, uma vez que qualquer delito tipificado na lei n° 8072/90 é mais lesivo do que o crime de deserção. O simples fato dele ser militar não pode afastar a aplicação de tal benefício processual, dado que a interpretação jurisprudencial do STF, por definir uma inconstitucionalidade relativa à progressão de regime, deve ser aplicada, sim, a todas as demandas judiciais que versem sobre esta mesma matéria.

Já a segunda também é inverídica, uma vez que o STF, ao dar interpretação mais benéfica à lei penal, deve ter seus efeitos aplicados em relação a todos os réus e condenados que se amoldem àquela interpretação, aplicando-se, mutatis mutandis, o preceito constitucional insculpido no art.5°, XL, além da já mencionada objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Ademais, a lei n° 11.464/2007 positivou o entendimento esposado pelo STF, permitindo a progressão de regime ao condenado por prática de crime hediondo com o cumprimento de 2/5 da pena, em caso de réu primário, e de 3/5, em caso de réu reincidente, consoante dicção do art. 1° do mencionado diploma legal, o qual alterou a redação do art. 2°, §2°, da lei n° 8.072/90.

Resta, desse modo, configurada, cabalmente, a incompatibilidade entre a Carta Política de 1988 e a vedação à progressão de regime aos crimes propriamente militares, razão

pela qual deve ser declarada sua não recepção ou revogação face à Lex Suprema, porque a ela não se amolda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho intentou analisar a vedação da concessão dos institutos da suspensão condicional da pena e da progressão de regime no crime militar de deserção.

Sob a ótica constitucional, entendemos que tais vedações não se compatibilizam com os preceitos insculpidos na Carta Política de 1988.

Considerando que as disposições do Código Penal Militar são anteriores à data da promulgação da Constituição, não há falar em declaração de inconstitucionalidade, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio não admite a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade superveniente.

Assim, pensamos que as vedações mencionadas são incompatíveis com o espírito da nova ordem constitucional, razão pela qual não foram recepcionadas ou, ainda, foram revogadas com a promulgação da Carta em 5 de outubro de 1988.

Tal revogação haverá de ser declarada, seja pela via do controle difuso, exercível por qualquer magistrado, seja pela via do controle concentrado, exercitável pelo Supremo Tribunal Federal em sede de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, pois não se trata de análise de (in)constitucionalidade, mas, sim, de direito intertemporal, razão pela qual um dos legitimados do art. 103 da Carta Magna poderá iniciar o processo de controle concentrado de constitucionalidade no Pretório Excelso, arguindo a incompatibilidade entre a vedação à suspensão condicional da pena e à progressão de regime e a Constituição Cidadã de 1988, a qual poderia ser deferida em face dos argumentos esposados no presente TCC, mormente quando se tem em mente os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da isonomia, da individualização e da humanização da pena.

REFERÊNCIAS

ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar. 6.ed. Revista e atualizada. Curitiba: Juruá, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil Anotada. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

... O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Tradução e notas do prof. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. 10. ed. São Paulo: RT, 2006, v. 1.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 1.

BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. CHAVES JÚNIOR, Edgard de Brito. Legislação Penal Militar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.

COPETTI, André. Direito penal e Estado Democrático de Direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, v. 3.

FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías- La Ley del Más Débil. Trad. Perfecto A. Ibáñez.

4. ed. Madri: Trotta, 1999.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. 29. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 5. ed. Niteroi: Impetus, 2007, v. 1.

…... Curso de Direito Penal. 5. ed. Niteroi: Impetus, 2007, v. 2.

GUIMARAES, Ricardo Gil de Oliveira (Coordenador). Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar. 3. ed. Belo Horizonte: Líder, 2008.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 28ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1.

LISZT, Franz Von. Tratado de derecho penal. Tradução: Santiago Mir Puig e Francisco Munõz Conde. 3. ed. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1981

.

LOBÃO, Célio. Direito Penal Militar. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2006.

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Teoria Constitucional do Direito Penal. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

MATOS, Jackson Ferreira de. A prisão do Desertor é Inconstitucional? Periódico é Direito. Itabuna, n. 1, 10.06.2007. Disponível em:<http: //www.periodicoedireito.com.br/index.php? option=com_content&task=view&id=127&Itemid=31>. Acesso em 26 de maio de 2009. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

MIGUEL, Cláudio Amin e COLDIBELLI, Nelson. Elementos de Direito Processual Penal Militar. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

PAULO, Vicente e ALEXANDRINO, Vicente. Controle de Constitucionalidade. 8. ed. Niteroi: editora Impetus, 2008.

REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. 2. ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

RODA, Juan Cordoba. Culpabilidad y pena. 3. ed. Barcelona: Bosch, 1977.

ROXIN, Claus; ARZT, Gunther e TIEDEMANN, Klaus . Introducción al derecho penal y al derecho penal procesal. Tradução: Luis Arroyo Sapatero e Juan-Luis Gómez Colomer. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1989.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

TUBENCHLAK, James. Teoria do crime- o estudo do crime através de suas dimensões. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

SARAIVA, Alexandre José de Barros Leal. Comentário à Parte Geral do Código Penal Militar. Fortaleza: ABC, 2007.

SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Manual de Derecho Penal, Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002.