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“Bato palma para as travestis que lutam para existir e a cada dia batalhando conquistar o seu direito de viver, brilhar e arrasar” (Linn da Quebrada)

O armário está quebrado. A senzala foi arrombada. A luz acendeu. Estejamos todas e todos fora dele e dela, sob a nitidez que ilumina. Como se finaliza uma obra? Não pretendo esgotar a discussão. O ponto aqui não é de chegada, nem de partida. É de atravessamento.

Essa obra é, sobretudo, sobre o amor. O amor transforma. No entanto, precisamos descobrir os diversos significados dessa palavra, desvencilhando-nos dos sistemas que nos aprisionam a mente e, por consequência, nossa existência. Descolonizar o pensamento é um caminho de travessia possível para borrar as fronteiras de conceitos sobre o viver – movimento em contínua construção. Quando a/o bebê percebe que não precisa mais do peito da mãe como energia vital para estar vivo no mundo, ela/ele abjeta o corpo materno e sente-se desamparada/o, ao mesmo tempo em que recria, nesse momento, mecanismo sinápticos de sobrevivência, reajustando esquemas e perspectivas de vida. Talvez, a abjeção, nesse momento, seja nossa libertação. Não ela em si, mas o reconhecimento do seu sentido – pulso de vida. É reconhecendo e escavando as entranhas dos sentimentos hostis e sombrios que acessamos outras dimensões da existência.

O processo e período da pesquisa me fizeram caminhar por percursos, por vezes, dolorosos. A sensação angustiante de sentir-se frágil e vulnerável entranhou minha existência. Foi desafiador reordenar as trilhas. Ao saber da impossibilidade de acompanhar intimamente um fragmento da vida d’As Bahias, peguei-me em um mergulho fantasmático da incapacidade de cumprir uma perspectiva para mim e por mim imposta, como se não houvesse mais possibilidade de caminhada. Estanquei. Escavei o ócio, o desamparo e a dor. E, num movimento súbito, percebi a roda da vida girando. Olhei para os lados, reajustei a rota, segui. Reconheci a potência do afeto que me atravessa a vida em suas diversas linguagens e dimensões: a música, uma delas. Precisei deslocar-me do caminho familiar e me entranhar no estranho-familiar.

Nesse impulso, de acessar a arte como expoente de liberdade, em um processo metodológico que antecede a pesquisa e imbrica-se em caminhos incertos, a descoberta da sorologia positiva para o HIV também emerge como possibilidade de mudança. A arte transfigura-se como possibilidade e fortalece minhas identidades. Acessar a obra da cantora e compositora trans não-binária da baixada Santista, Maria Sil, que traduz em poesia cantada a

vivência de um corpo positivo, em “Olhos amarelos”50, foi como reaprender a respirar. Seria

isso representatividade. Seria essa a dimensão da comusicação. Foi por meio da música e de nossa conexão sanguínea positiva que nos afetamos e nossos corpos se encontraram, fortalecendo nossas caminhadas e compartilhando o amor pela vida uma da outra.

A música nos traz a possibilidade de conexão, perturbando nossos sistemas cognitivos, promovendo mudanças de perspectivas, fortalecendo nossas redes de afeto. Ela é poderosa e nos permite impulsos de vida. Se a música é também meio, é através dela que sou atravessado por sua mensagem e simbolismo, promovendo a conexão com Assucena, Raquel, Maria Sil e tantas outras pessoas trans e travestis que compartilharam suas vivências.

Por que tenho a impressão de que não acessamos a plenitude de relacionar-se com a música como possiblidade de se conectar com experiências e reflexões acerca das visões de mundo? Foi por meio dela que pude ser afetado pelo amor. A cada vez que ouço uma música, esse movimento vibracional promove em meus sistemas sensações que pulsam em uma frequência de vida, transportando-me, por vezes, a uma revisita ao passado ou projeção de futuro. A representatividade de corpos trans e travestis na música brasileira possibilita que a presença desses corpos seja normatizada, numa tentativa simbólica de atravessar os conceitos hegemônicos de uma sociedade com pensamento colonizado, como o Brasil. Estar do lado de lá é também estar do lado de cá, quando o olhar parte desse eu que enxerga além de si próprio. Acredito que a comusicação de artistas como Assucena e Raquel é célula promotora de fricções em nossos sistemas cognitivos, pois elas ecoam suas vozes numa tentativa de comunicar ao mundo suas existências. E, para que essa comunicação seja realizada, não necessariamente elas precisem compor suas canções com discursos diretos de militância – falar sobre o amor e qualquer outra dimensão da vida, a partir de um corpo trans ou travesti, por si só, é um movimento de empoderamento.

A indústria fonográfica vem moldando seus esquemas com o passar dos tempos, percebendo a importância dessa construção artística frente às práticas sociais. Fato é que As Bahias iniciam sua carreira como artistas independentes, gravando os discos “Mulher” (2015), pelo selo Galeão, “Bixa” (2017) pela YB Music e, recentemente, “Tarântula” (2019) pela gravadora Universal Music. Apesar de continuarem com a produção artística independente, a banda passa a fazer parte também de um conglomerado da indústria fonográfica hegemônica, não deslegitimando a potência de sua arte. Se ao refletir sobre a relação com as marcas, Assucena e Raquel compartilham a ideia de que é preciso ocupar os espaços que,

majoritariamente, são de pessoas cisgêneras, em sua maioria branca e de classe alta, a presença de corpos trans e travestis no “catálogo” de uma gravadora de renome internacional é a possibilidade de normatizar as relações com essas pessoas.

Percebo que o movimento de pensar a representatividade vem escavando novas rotas, pois não é mais tão somente reconhecê-la, é preciso colocá-la em prática e refletir sobre. Se até pouco tempo atrás as pessoas trans e travestis eram retratadas pelos espaços midiáticos de forma estigmatizante, recorrendo ao apelo do caricato e do cômico, o movimento emergente da cena artística atual revela a necessidade de reconhecer a existência dessas vidas e representá-las a fim de acabar (ou, pelo menos, minimizar) o preconceito e a discriminação social dessas pessoas. Assucena e Raquel emergem como expoentes de mudanças.

Reconhecer que a música carrega em si o imaginário coletivo, podendo comunicar algo por meio de um conjunto de melodia e canção, configurando-se como meio, mensagem e mídia, emerge como resultado desse relacionamento com a pesquisa a conceituação embrionária de comusicação, que não se esgotada nessa obra, pois está em construção. A representatividade aqui importa, pois é ela a responsável por mostrar ao mundo que existe uma multiplicidade de vidas ocupando os espaços, todos eles – ou, pelo menos, deveria. Apesar da obra d’As Bahias não atingir toda a população do Brasil, ela é essencial para que corpos semelhantes aos de Assucena e Raquel sintam-se representados pela presença dessas artistas em espaços que, muitas vezes, cessam o acesso de pessoas trans e travestis. A celebração dos corpos marginalizados também responsável por reajustes nas esferas sociais que permeiam nossas existências em relação com o outro.

É no mal-estar do desejo em acabar algo, que metaforizo como deixar o “texto em aberto”, numa tentativa de expor que a procura vale mais a pena do que o achado.