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Damas de paus: atravessamentos afetivos sobre representatividade trans e travesti na música brasileira d'as Bahias e a Cozinha Mineira

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA MÍDIA

ANDRÉ ARAÚJO DA SILVA

DAMAS DE PAUS: ATRAVESSAMENTOS AFETIVOS SOBRE

REPRESENTATIVIDADE TRANS E TRAVESTI NA MÚSICA BRASILEIRA D’AS BAHIAS E A COZINHA MINEIRA

NATAL-RN 2019

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ANDRÉ ARAÚJO DA SILVA

DAMAS DE PAUS: ATRAVESSAMENTOS AFETIVOS SOBRE

REPRESENTATIVIDADE TRANS E TRAVESTI NA MÚSICA BRASILEIRA D’AS BAHIAS E A COZINHA MINEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do Grau de Mestre em Estudos da Mídia.

Linha de pesquisa: Estudos da Mídia e

Práticas Sociais

Orientação: Profa Dra Maria do Socorro

Furtado Veloso

Coorientação: Prof. Dr. Juciano de Sousa

Lacerda

NATAL-RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, André Araújo da.

Damas de paus: atravessamentos afetivos sobre

representatividade trans e travesti na música brasileira d'as Bahias e a Cozinha Mineira / André Araújo da Silva. - Natal, 2019.

104f.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019.

Orientadora:Profa. Dra. Maria do Socorro Furtado Veloso. Coorientador: Prof. Dr. Juciano de Sousa Lacerda.

1. Estudos da mídia - Dissertação. 2. Representatividade trans - Dissertação. 3. Música brasileira - Dissertação. 4. Gênero e sexualidade - Dissertação. 5. As Bahias e a Cozinha Mineira - Dissertação. I. Veloso, Maria do Socorro Furtado. II. Lacerda, Juciano de Sousa. III. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316.77:78(81)-055.3 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

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ANDRÉ ARAÚJO DA SILVA

DAMAS DE PAUS: ATRAVESSAMENTOS AFETIVOS SOBRE

REPRESENTATIVIDADE TRANS E TRAVESTI NA MÚSICA BRASILEIRA D’AS BAHIAS E A COZINHA MINEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do grau de mestre em Estudos da Mídia.

Linha de Pesquisa: Estudos da Mídia e Práticas Sociais

Apresentada em: ____/____/ 2019

BANCA EXAMINADORA

Profa. dra. Maria do Socorro Furtado Veloso

Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia – PPGEM/UFRN Orientadora (Presidente da banca)

Prof. dr. Juciano de Sousa Lacerda

Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia – PPGEM/UFRN (Coorientador)

Prof. dr. Itamar de Morais Nobre

Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia – PPGEM/UFRN (Examinador interno)

Profa. dra. Maria Erica de Oliveira Lima

Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará – PPGCOM/UFC

(Examinadora externa)

Profa. dra. Jaqueline Gomes de Jesus Instituto Federal do Rio de Janeiro

(Examinadora externa)

NATAL-RN 2019

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Um dia ainda vou me redimir por inteiro do pecado do intelectualismo. Se Deus quiser. Não vou ter mais necessidade de falar nada, de ficar pensando em termos dos contrários de tudo, pra tentar explicar às pessoas que eu não sou perfeito, mas que o mundo também não é.Que eu não estou querendo ser o dono da verdade… que eu não estou querendo fazer sozinho, uma obra que é de todos nós e de mais alguém, que é o tempo, o verdadeiro grande alquimista, aquele que realmente transforma tudo. (Gilberto Gil)

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“Tem mais presença em mim o que me falta” (Manoel de Barros)

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AO IMPULSO EMBRIONÁRIO DA VIDA: CORAGEM

Mas é que a coragem é assim Rebelde, ousada, Não respeita nada E quando se junta com amor Ela é o que há de mais revolucionária (Pedro Bomba)

A caminhada que se inicia carrega em si um conjunto complexo de referências ancestrais. Para o xamanismo, nosso passado não se esgota, ele se faz presente. É nessa perspectiva que reconheço um ponto de partida dessa obra que atravessa os tempos.

A coragem esteve presente como impulso de vida, desde o dia em que decidi sair prematuramente do ventre de minha mãe. A infância vivida na periferia revelou-me aspectos de um corpo marginalizado socialmente por habitar um espaço, muitas vezes, renegado aos olhos do outro. A sexualização do meu corpo desde criança deixou marcas em minha história que as carrego até hoje. Sou grato a todas elas, pois me proporcionaram olhar atentamente ao redor afim de compreender as dimensões outras da vida.

Agradeço às minhas e aos meus ancestrais maternos, que carregam em suas correntes sanguíneas as tradições indígenas, deixando-me heranças de uma identidade que se traduz em meus traços físicos e na forma de me relacionar com o mundo. À negritude de minhas e meus ancestrais paternos, gratidão pelas reflexões acerca das identidades raciais em um país majoritariamente negro. Ao privilégio de ser criado por minha mãe Jaqueline e meu pai Manoel, que me proporcionaram a possibilidade de aprender e experimentar, mesmo quando as dificuldades impuseram seus entraves, meu amor eterno. Ao irmão Anderson que me mostra, mesmo à distância, nossas diferenças como seres singulares que compartilham as mesmas origens, o meu respeito e admiração. Às medicinas da natureza que me possibilitaram acessar outras dimensões do Universo por meio da consagração da ayahuasca, revelando-me como força latente que tudo pode e tudo transforma, minha eterna gratidão.

Os caminhos percorridos desde o início do processo dessa pesquisa envolvem relações com um número significativo de pessoas que compuseram com afeto e acolhimento cada passo dado. A curiosidade de experimentar novas possibilidades de ser e estar no mundo compartilhada com as/os amigas/os Henrique Rego, Lucas Carmona e Íguia Telita da Smoking Haus alimentaram minha sede pelo desconhecido, minha admiração e amor. Ao amigo Tiago Landeira que com sua delicadeza traduz pra mim um olhar diferenciado da vida, minha eterna gratidão e amor. Todo o meu respeito e gratidão pelo Grupo de Incentivo à Vida (GIV), em

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nome de Andrea Ferrara, Mabson Ferreira, Vinicius Uchoa, Carlos Bernardo, Ramon Soares, Davi Oliveira, Gugã Thaylor, Jéssica Oliveira, Maitê Cortêz e todas e todos que, ao compartilharem suas histórias de vida, alimentaram em mim o desejo de celebrar nossas existências – estamos vivas e vivos, sigamos. Amor e carinho compuseram as conexões potiguares em terras paulistas – Juão Nyn, Paula Medeiros, Rodrigo Silbat, Lua Menezes, Ramilla Souza, Paulo Fuga, Flavio Rodrigues, Ana Carolina Marinho, Ana Zepa, Luisa Nascim, David Costa. Obrigado pelo afeto e pela poesia traduzida em amor. À luz Bárbara Santos que irradia sua energia solar em sorrisos que acolhem, minha admiração e carinho. Às amigas Samy Loiola e Aline Nalon por estarem sempre por perto e serem como irmãs constantemente dispostas a compartilharem as dores e alegrias de viver uma relação potente, meu amor genuíno – estejamos sempre juntas e nos fortalecendo. A todas e todos as/os jovens do Grajaú, que ao abrirem as portas de suas vidas, compartilharam comigo experiências semelhantes às já vividas por um corpo também vindo da periferia e que está em constante movimento, minha admiração por suas coragens. Ao Coletivo Contágio, criado por mim, Leandro Noronha e Rodrigo Silbat, a mola propulsora que me fez acessar as dimensões do fazer artístico e alimentam o desejo de estar vivo, o meu respeito, admiração, gratidão e amor – vamos juntos reescrever nossas histórias. A todas as pessoas trans e travestis vivas e as que morreram para outras viverem, minha admiração, respeito e amor por suas existências e trajetórias. Meu carinho e admiração pela conexão com Larissa Ibúmi e Renato Gonçalves, que me apresentaram outras perspectivas de afeto com a música. Ao movimento misterioso do Universo que conecta pessoas, minha contemplação, admiração e amor por promover o encontro com a professora Jaqueline Gomes de Jesus e suas ideias que causaram reflexões sobre apreensões do viver, esse mistério.

As palavras são a ponte de travessia daquela criança nascida na periferia e que hoje ocupa um lugar na academia. Relembrar as primeiras leituras na infância me fazem refletir sobre como a leitura e a escrita foram importantes para as minhas compreensões de mundo. O conhecimento tem sido o combustível essencial de vida e, consequentemente, o seu compartilhamento. Serei sempre grato por acessar essa camada da existência – a do pensar. Respeito, admiração e profunda gratidão a todas/os educadoras/res que atravessaram caminhos junto a mim, em especial, nesse momento da vida, à sensibilidade e empatia de minha orientadora, professora Maria do Socorro Furtado Veloso; ao afeto transcendente do professor Itamar Nobre: à delicadeza doce e firme da professora Maria Angela Pavan; ao olhar singular da professora Maria Érica de Oliveira Lima; à confiança e apoio do professor Juciano de Sousa Lacerda. Obrigado a todas e todos por compartilharem a construção desse sonho comigo. Sigamos construindo novas utopias.

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Aos sonhos que cultivo e construo continuamente, o meu eterno desejo de saborear a felicidade de realizá-los alimenta meu corpo, mente e alma: gratidão – que vocês nunca se esgotem.

À poesia que traduz o amor em palavras, minha eterna gratidão por revelar novos olhares sobre o mundo.

À música que esteve presente em muitos momentos da vida. Ela é a ponte de travessia que possibilita-me percorrer os caminhos aqui imbricados. Suas melodias e acordes embalam a história e, por ela, tenho sentimentos intraduzíveis em palavras. Sua potência ecoa em mim.

À coragem traduzida em amor, movimento embrionário da latência de vida, que continue compondo as trajetórias. Coragem, amor, coragem.

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“[...] Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento, Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade. Mas, como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada, Assim é a essência da realidade o existir, não o ser pensada”. (Fernando Pessoa)

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RESUMO

A presente pesquisa busca discutir e compreender o papel da música brasileira, sob uma perspectiva comunicacional, frente às questões de representatividade trans e travesti na sociedade. Nesse sentido, essa obra apresenta-se como uma proposta de pesquisa qualitativa exploratória dos temas imbricados na problemática, por meio de um percurso metodológico chamado de Imersão Sistemática Afeto-analítica, inspirada nas inquietações de Jota Mombaça (2016), com o objetivo de responder: como a emergência de um cenário musical dissidente centrado na representatividade LGBT, mais especificamente a representatividade trans e travesti, afeta as demandas do movimento e, consequentemente, contribui para normatização social coletiva desses corpos, o debate político e a legitimidade dos direitos da população LGBT no Brasil? A pesquisa tem como interagentes a banda “As Bahias e a Cozinha Mineira”, buscando entender como as pessoas trans agenciam suas vivências a partir da representatividade em diálogo com as discussões de gênero e sexualidade de Jaqueline Gomes de Jesus (2012; 2015; 2018), Guacira Lopes Louro (2016) e Amara Moira (2017); as reflexões acerca do mercado fonográfico de Marcia Tosta Dias (2008) e da representatividade LGBT midiática, a partir das ideias de João Silvério Trevisan (2017; 2018) e Flávia Péret (2011). Percebe-se, a partir das reflexões acerca das ideias de Muniz Sodré (2006), Ruth Finnegan (2008) e João Fernando de Araújo (2013), aqui, o poder que a música tem de desconstruir os muros e barreiras que efetivamente segregam, comunicando, sendo meio, mensagem e mídia, carregando em si essas imbricações que chamo de comusicação. A visibilidade de pessoas trans e travestis não é suficiente para tirar essas pessoas da marginalização, mas é uma importante forma de compreender que as identidades e presenças desses corpos precisam ser humanizadas e naturalizadas na ocupação dos espaços. Representatividade, aqui, é o ato desses corpos trans de se fazerem presentes.

Palavras-chave: Estudos da mídia. Representatividade trans. Música brasileira. Gênero e

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ABSTRACT

The present search seeks to discuss and understand the role of Brazilian music, from a communicational perspective, facing the questions of trans and travesti representativeness in society. In this sense, this work presents itself as a proposal of exploratory qualitative research of the themes imbricated in the problematic, through a methodological path called the Affect- analytic Systematic Immersion, inspired by the concerns of Jota Mombaça (2016), aiming to answer: How the emergence of a dissident music scene centered on LGBT representativeness, specifically trans and transvestite representativeness, affects the demands of the movement and, consequently, contributes to the collective social normalization of these bodies, the political debate and the legitimacy of LGBT population rights. in Brazil? The research has as interactors the band “As Bahias e a Cozinha Mineira”, seeking to understand how people transience their experiences from the representativeness in dialogue with the discussions of gender and sexuality of Jaqueline Gomes de Jesus (2012; 2015; 2018), Guacira Lopes Louro (2016) and Amara Moira (2017), the reflections on the music market of Marcia Tosta Dias (2008) and LGBT media representation, based on the ideas of João Silvério Trevisan (2017; 2018) and Flávia Péret (2011). From the reflections on the ideas of Muniz Sodré (2006), Ruth Finnegan (2008) and João Fernando de Araújo (2013), we can see the power that music has to deconstruct the walls and barriers that effectively segregate, communicating, being medium, message and media, carrying within them these imbrications that I call comusication. The visibility of trans and transvestite people is not enough to get these people out of marginalization, but that it is an important form of visibility to realize that the identities and presences of these bodies need to be humanized and naturalized in the occupation of spaces. Representativity here is the act of these trans bodies being present.

Keywords: Media studies. Trans representativity Brazilian music. Gender and sexuality. As

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LISTA DE ABREVIAÇÕES, SIGLAS E TERMINOLOGIAS

ABIG – Associação Brasileira de Imprensa Gay

ABMI – Associação Brasileira da Música Independente ABPD – Associação Brasileira dos Produtores de Discos

Antra – Articulação Nacional de Travestis, Transexuais e Transgêneros Atras – Associação das Travestis de Salvador

Astral – Associação das Travestis e Liberados

Unidas – Associação das Travestis na Luta pela Cidadania BBB – Big Brother Brasil

Bixa – Em referência ao termo “bicha”, utilizado para referenciar pessoas LGBT, em sua

maioria, homossexuais. Escolha pelo neologismo como posicionamento político convergente ao do movimento LGBT e inspirado no segundo álbum d’As Bahias e a Cozinha Mineira, “Bixa” (2017).

CBS – Rede de televisão aberta comercial americana CD – Disco Compacto (Compact Disc)

CNJ – Conselho Nacional de Justiça

Compós – Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação

Drag queen – Expressão artística na qual a performatividade de gênero se dá por meio de

utilização de símbolos ditos como do outro gênero.

DVD – Disco Digital Versátil (Digital Versatile Disc) ECA– Escola de Comunicação e Artes

EMI – Electric and Musical Industries

Enecult – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura Galf – Grupo de Ação Lésbico-Feminista

Gays – Termo em inglês para referenciar-se a homossexuais GT – Grupo Temático

HIV – Vírus da Imunodeficiência Humana (Human Immunodeficiency Vírus) HO – História Oral

IFPI – Federação Internacional da Indústria Fonográfica

Inamps – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação LF – Lésbico Feminista

LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais

LGBTI – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis/transexuais e intersex. LGBTQ – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis/transexuais e queer. LGBTQI – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais

LGBTQI – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis/transexuais, queer e intersex

LGBTT– Lésbicas, gays, bissexuais, travestis/transexuais, queer, intersex e outras identidades LP – Long Play

MHB– Movimento Homossexual Brasileiro

MONART – Movimento Nacional de Artistas Trans MPB – Música Popular Brasileira

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ONG – Organização não Governamental

Pink Money – Dinheiro rosa: expressão utilizada para referenciar o capital movimentado pelas

pessoas LGBT, na lógica do consumo de bens materiais e culturais.

PPGCOM – Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação PPGEM – Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia

Psol – Partido Socialismo e Liberdade RCA – Radio Corporation of America RPM – Rotações por minuto

SOD – Seminário de Orientação

SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais STF – Supremo Tribunal Federal

Trans – abreviação de transexual ou transgênero UFBA– Universidade Federal da Bahia

UFPE – Universidade Federal do Pernambuco

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte USP – Universidade de São Paulo

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SUMÁRIO

1. PARA INICIAR UMA CAMINHADA DE INCERTEZAS ... 18

1.1. (Trans)justificativa e (trans)enquadramento dos capítulos ... 25

2. PERCURSOS AFETIVOS DE UMA SURUBA METODOLÓGICA MARGINAL - IMERSÃO SISTEMÁTICA AFETO-ANALÍTICA ... 28

3. ATRAVESSAMENTOS DO PENSAMENTO: UM TENTATIVA DE ENTENDIMENTO DE UM EU NO MUNDO ... 42

3.1. Dos deslizar da agulha ao mercado artístico independente: Uma breve historiografia da indústria fonográfica no Brasil ... 44

3.2. Comusicação: a música sob uma perspectiva comunicacional ... 47

3.3. Que cena é essa? Articulação bixa travesti do movimento LGBT ... 56

3.4. Identidade e representatividade trans e travesti: uma nova pauta política ... 60

3.5. Travesti não é bagunça – reflexões afetivas sobre gênero e sexualidade: entre o fascínio e a abjeção ... 68

4. “QUEM NOS MEDIA, DIA A DIA, O NOSSO SEXO” - REPRESENTATIVIDADE TRANS E TRAVESTI NA MÚSICA BRASILEIRA ... 78

4.1. As vozes dos corpos que importam ... 78

4.2. Um olhar subjetivo sobre a música e seus atravessamentos: o que me afeta... 90

5. INCONCLUSO... 96

6. REFERÊNCIAS ... 99

APÊNDICE ... 103

Carta aberta à coordenação do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia ... 103

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Faltará tinta No dia que o céu for livre Pra todos serem o que são Cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão Faltará nomes Pra descrever o mundo sem as misérias O que sentimos, o que nos tornamos O novo ser sem medo de viver Faltará a falta que nos entristece Que hoje enche o peito de vazio e fumaça Não faltará amor, não faltará sonhos O novo mundo se abrirá para o futuro Onde o presente dominará o passado E nossos corações enfim serão salvos (Virgínia Guitzel) Para ler ao som de “Apologia às virgens mães” (As Bahias e a Cozinha Mineira)

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1. PARA INICIAR UMA CAMINHADA DE INCERTEZAS

“Não vim para esclarecer nada. O que eu puder confundir, eu confundo” (Ney Matogrosso) “A reta é uma curva que não sonha” (Manoel de Barros) A entrada no mestrado foi a realização de um sonho – ou parte dele, o meio do caminho. Desde que ingressei na Universidade, deparei-me com um universo até então estranho à minha realidade periférica. A graduação em uma instituição federal proporcionou acessar uma gama de saberes e vivências que foram essenciais para borrar fronteiras e mudar visões de mundo estáticas. Nessa jornada, inevitavelmente, fui infectado pelo intelectualismo acadêmico e passei a produzir de forma sistemática uma série de artigos para serem publicados em anais e periódicos ou apresentados em congressos. A escrita já fazia parte da minha dinâmica de vida. Ela apareceu como um horizonte a ser explorado ainda criança, no processo de alfabetização. Com a curiosidade de um virginiano, observei, tateei, bebi, cheirei, ouvi, falei. Adentrar em um programa de pós-graduação após três anos da conclusão da graduação foi desafiador. Afastar-me da academia por esse tempo foi essencial para experienciar outras vivências e dinâmicas.

Inicialmente, o projeto aprovado na seleção do mestrado propunha refletir sobre a arte drag queen no cenário potiguar. Era o início de uma caminhada de incertezas. Logo no primeiro semestre, o projeto foi reajustado e o tema mudado. Compreendi que o meu desejo de pesquisar sobre o movimento drag queen em Natal-RN era uma tentativa de investigar expressões artísticas que me atravessam. Percebi, então, que o maior prazer da minha vida estava sendo negligenciado por mim mesmo – a música. Logo, questionei-me: por que não pesquisar algo relacionado a este prazer? Mudei a proposta do projeto de pesquisa e, de quebra, consegui atrelar essa relação musical com o meio do qual faço parte, o movimento LGBT. Decido, a partir de então, pesquisar a representatividade LGBT na música brasileira.

Essa não foi a primeira mudança. Inicialmente, o projeto apresentou-se muito abrangente e pouco objetivo. Algo que não seria possível numa pesquisa de mestrado pelo tempo restrito de execução. No primeiro Seminário de Orientação (SOD I), a pesquisa ainda estava um tanto confusa e mal recortada, muito abrangente e, ao mesmo tempo, limitada. A ideia era, de forma geral, compreender a representatividade LGBT na música brasileira a partir das estratégias midiáticas da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. A primeira inquietação veio do professor Itamar Nobre, membro da banca do referido SOD, e que, coincidentemente,

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também me inquietava. Ele apontou uma limitação em estudar as estratégias midiáticas de uma banda, algo comum nos estudos em comunicação e com pouca originalidade. Era preciso, e possível, olhar por outros ângulos. Daí, foi sugerido que a pesquisa caminhasse para uma análise também epistemológica, encarando a perspectiva comunicacional da música, sendo ela, na maioria das vezes, objeto de estudo da sociologia e musicologia. O professor sugeriu que eu desenvolvesse o neologismo “comusicação” na dissertação, para dar conta dessa perspectiva comunicacional.

Reiniciava-se, nesse momento, mais um movimento de incertezas. Mesmo a pesquisa e escrita acadêmica sendo para mim algo já familiar, deparei-me com meus medos e muitas dificuldades para conseguir encarar o desafio. Percebi, então, que esse era o momento de realizar um trabalho com o qual me relaciono de forma verdadeira e aproximada. Decidi, a partir de então, deixar de lado a impessoalidade tão comum nas escritas acadêmicas, traduzidas em terceira pessoa, como se o pesquisador fosse uma figura oculta, sem personalidade. Logo, essa obra não poderia ser escrita de outra forma se não em primeira pessoa, não apenas por se tratar de um processo criativo pessoal (a escrita), como também por ser tradução de parte do meu pensamento e apreensão de mundo a respeito dos temas que transpassam minha existência e da relação que construí com a música. Afinal,

o observador faz parte da realidade observada. A realidade emerge do relacionamento entre o sujeito observador, a observação e o objeto ou fato observado. O Universo não é composto somente de matéria e energia, e sim, de matéria, energia e, principalmente, de relacionamentos. É um processo. (TORRES, 2005, p. 4).

Na banca de qualificação, após várias mudanças do projeto, enfrentei acessos de ansiedade extrema que me causaram medos de estar sendo insuficiente para a academia, pois não conseguia mais me encaixar nos moldes da escrita hegemônica ao mesmo tempo que tentava, de alguma forma, não sair desse padrão. A surpresa se deu nas considerações da banca ao elogiar a única parte do texto que havia escrito seguindo minha intuição – a metodologia. Percebi, nesse momento, que precisaria “ousar” e “colocar minha cara no sol”, mostrar o porquê de estar ali.

Em uma sociedade em que “a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão [...]” (LOURO, 2000, p. 9) é pertinente questionar os expedientes que um jovem marcado socialmente como periférico, pobre e homossexual pode ocupar para recriar um novo território de existência para vir a ser professor universitário, sendo esse o meu sonho.

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A partir dessas reflexões, encaro esta obra como uma tentativa de tradução da minha relação com a música e com os corpos trans e travestis marginalizados – eu, também um ser marginalizado. A pesquisa mostra para mim sua face de relação entre nossas existências. Construir um pensamento sobre vivências externas a mim afetam meus sentidos e, logo, passo a experienciar situações até então desconhecidas. No entanto, não é meu objetivo falar por outras vozes (o que seria impossível), mas sim falar com essas vozes e sobre a minha relação com essas experiências de vida. A curiosidade é força motriz dessa construção, que não é apenas minha, é de todas nós que estamos envolvidas nesse processo.

O Brasil é conhecido, nacional e internacionalmente, por sua diversidade cultural. E, dentre as múltiplas formas da cultura, a música ocupa um lugar especial. Nosso país carrega uma tradição musical marcante, com ritmos e gêneros diversos. Por isso, o lugar ocupado pela música reflete indireta e diretamente no cotidiano das culturas brasileiras (e não apenas delas), exercendo um papel significativo nos processos de formação e fortalecimento de identidades, memórias, discursos políticos e afetos. A relação que construí com a música é complexa e tentar traduzi-la envolve uma trama diversificada de aparatos teóricos e metodológicos. No entanto, apesar de toda essa complexa diversidade, percebo ainda que as reflexões acerca da música ficam, muitas vezes, restritas a musicólogos e sociólogos, sendo, de certa forma, negligenciada pelos estudos da comunicação.

Criei uma relação íntima com a música, fazendo com que estivesse presente em meu dia a dia, seja em casa, no transporte para o trabalho ou escola, na rua ou em shows. Porém, apesar de ter essa sensação de familiaridade, as discussões acerca desse produto cultural simbólico multifacetado ainda são um tanto confusas e não conseguem, muitas vezes, dar conta da interseccionalidade de assuntos que transpassam a capacidade da música de (re)criar realidades. Um dos motivos dessa confusão é que os teóricos da comunicação privilegiaram seus estudos relativos ao jornal, ao rádio e à TV, consumados e quase inquestionáveis como os principais meios de comunicação, deixando de lado a indústria fonográfica. E, para além dos estudos da comunicação, posso acrescentar o fato de que as pesquisas em música brasileira, por vezes, ainda retomam o velho esquema da história da arte – também importante para uma compreensão crítica, mas não o suficiente.

Encarando a música como uma complexa fonte de prazer e conhecimento, despertando interesse profundo da indústria e dos estudos do entretenimento, pretendo, aqui, compreender o poder da música de atravessar, comunicar, mover e conectar pessoas. Percebo que a música reflete e é reflexo de circunstâncias históricas de cada época. Por isso, vemos atualmente, no

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Brasil, a emergência de uma cena musical fortalecida e retroalimentada entre artistas LGBT1

que compartilham suas vivências e experiências, como uma reação em cadeia, em rede.

Compartilho a ideia da historiadora Larissa Ibúmi Moreira, para quem o termo “cena” emerge “como metáfora de um espaço que comporta atores distintos, executando diversas funções e ações, mas que são unidos por um mesmo sentido, em um mesmo espaço-tempo” (MOREIRA, 2018, p. 14). Interessa-me tentar descrever e discutir o poder de afetar e ser afetado pela força da conexão da música enquanto instrumento de troca, traçando subsídios teóricos com o objetivo de estender e aprofundar questões relacionadas às aproximações e tensões entre a música e a mídia sem, de modo algum, esgotar as dimensões sobre os diversos assuntos que regem as práticas e lógicas da indústria fonográfica e as representações sociais como a causa trans e travesti na sociedade midiatizada contemporânea.

É por meio da música que muitas pessoas constroem e fortalecem suas identidades, criam memórias afetivas e estabelecem suas cidadanias cultural e comunicativa, produzindo e apropriando-se das técnicas e dos conteúdos dos meios de comunicação. Desde muito tempo, a música é uma forma de refletir, protestar e falar sobre temas que a mídia tradicional de massa e a política silenciam. Vozes, lutas e grupos marginalizados são excluídos dos espaços midiáticos e buscam outras formas de expressar suas ideias e defender seus ideais. As redes criadas por meio da produção musical brasileira são também lugares de resistência de grupos marginalizados, sendo utilizadas como instrumento político no meio social, denunciando e reivindicando direitos humanos negados pelos poderes públicos.

Partindo dessas considerações, nesta pesquisa pretendo responder ao seguinte questionamento: Como a emergência de um cenário musical dissidente centrado na

representatividade LGBT, mais especificamente a representatividade transe travesti, afeta as demandas do movimento e, consequentemente, contribui para normatização social coletiva desses corpos, o debate político e a legitimidade dos direitos da população LGBT no Brasil? A noção de emergência desse cenário reflete não apenas o surgimento de

uma cena artística trans e travesti, mas também a atuação desses corpos na luta por direitos civis da população LGBT no Brasil. Para além disso, a consolidação dessa cena diz respeito ao fortalecimento do movimento LGBT na construção de uma agenda política de debates sobre a temática – no caso, a representatividade midiática e a construção de um ativismo à margem na busca do fortalecimento de políticas públicas voltadas aos direitos das pessoas trans e travestis na sociedade brasileira.

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De início, uma das hipóteses levantadas durante a pesquisa sobre a questão-problema é de que os significados produzidos pela emergência e a atuação de corpos trans e travestis na música e no cenário artístico brasileiro, como a denúncia e a reivindicação dos direitos humanos, visando mudar as realidades política, social e cultural, oferecem um grande aparato de reflexões sobre as construções de relações sociais frente às questões de gênero e sexualidade, bem como sobre os aspectos de representatividade, do sistema político brasileiro e das formas democráticas no país, de modo que essas discussões contribuem para o fortalecimento de um debate participativo e democrático.

Logo, esta pesquisa tem como objetivo geral identificar e compreender o papel da música brasileira, sob uma perspectiva comunicacional, na representatividade e no protagonismo da identidade trans e travesti na sociedade midiatizada contemporânea. E, como

objetivos específicos, deseja-se: a) compreender e analisar de forma exploratória, a

complexidade de conceituações sobre a música sob uma perspectiva comunicacional; b) identificar e analisar historicamente a representatividade trans e travesti no cenário midiático brasileiro; c) refletir como a emergência de uma cena musical trans e travesti contribui para uma normatização social coletiva desses corpos, o debate político e a legitimidade dos direitos da população LGBT no Brasil.

Compreendendo “movimento social” como uma gama diversificada de organização e mobilização da sociedade na busca pela igualdade e pelos direitos entre pares, percebo que essas ações coletivas têm caráter sociopolítico e são responsáveis por criar fissuras no pensamento hegemônico frente aos direitos humanos e aos esquemas de políticas públicas sociais, viabilizando uma participação ativa desses corpos no processo democrático, organizando e expressando suas demandas.

Olhando e analisando a história da música brasileira, vejo no Tropicalismo um dos movimentos pioneiros e mais marcantes de contracultura e representatividade das minorias, como é o caso das LGBT. Artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé são alguns exemplos marcantes dessa época que trouxe uma nova proposta política e estética para a música brasileira, inspirando-se em influências internacionais, introduzindo a guitarra nos arranjos e propondo novas estéticas visuais para os palcos. A indústria cultural fonográfica trabalha na lógica da mass media. Segundo Gonçalves (2016), a representatividade LGBT permeia a música brasileira desde, pelo menos, a década de 1970 - mesmo sendo possível observar essa representatividade em canções de décadas anteriores, como é o caso do Noel Rosa em “Mulato bamba” (1931), um samba em homenagem a Madame Satã, famoso capoeirista e malandro homossexual da Lapa, no Rio de Janeiro. Desde então, a música tem um papel fundamental na

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formação de identidades e da cidadania cultural coletiva de grupos marginalizados pelos grandes veículos de comunicação e informação. É claro que artistas vanguardistas como Ney Matogrosso, Marina Lima, Dzi Croquettes, Chico Buarque, Caetano Veloso e tantos outros abriram espaço para a representatividade LGBT na mídia, com letras provocativas e que retratam, de formas diversas, a vida desse grande grupo em suas canções, dando voz e representando-os. A questão de gênero vêm sendo uma pauta abarcada pela indústria cultural e a cultura de massa como um todo, movimentando mercados como o da moda, onde podemos ver, no cenário nacional, a atuação figuras como Roberta Close, Léa T. e Valentina Sampaio, entre outras, na música (retroalimentando a TV, o rádio, a indústria fonográfica, imprensa etc.), como Rogéria (1943-2017), Lacraia (1977-2011), Mel (ex Banda Uó) e, mais recentemente, Liniker Barros, Linn da Quebrada e As Bahias Raquel Virgínia e Assucena Assucena. Na televisão, a atriz Claudia Celeste (1952-2018), atuando em “Espelho Mágico” (1977); Ariadna. que participou da edição de 2011 do BBB; Maria Clara Spinelli (“Salve Jorge” - 2012), são exemplos panorâmicos de uma cena artística diversificada protagonizada por pessoas trans e travestis – apesar de algumas delas não serem tratadas pela mídia pela sua identidade de identificação, como é o caso da artista Lacraia, anunciada sempre nas apresentações de TV e em matérias escritas como “dançarino”.

Tendo em vista essa panorâmica, percebo que os movimentos artísticos, em muitos momentos da história, foram responsáveis por transformações sociais, firmando a importância da participação social nos processos de democratização política. Mesmo fazendo parte de um grupo específico de atores sociais, esses movimentos artísticos são também responsáveis pelo desenvolvimento de um processo social e político-cultural na busca da construção de uma identidade coletiva, a partir de interesses comuns.

Durante muito tempo, a noção de cidadania enfrentou mudanças. Na década de 1960, os movimentos sociais ganharam força com sua representatividade intensa na arte, ampliando a noção de cidadania, como é o caso da intensificação das lutas feministas, dos negros, dos homossexuais, das populações marginalizadas (LIMA, 2013). Logo, ao reparar o cenário musical brasileiro nessa segunda década dos anos 2000, percebo uma emergência de novas artistas multifacetadas e empoderadas que retratam em suas letras e performances as realidades e a representatividade das pessoas LGBT. Representatividade essa, cidadã, pois essas artistas são, indireta e diretamente, a voz de uma comunidade carente de políticas públicas, sendo esquecida não só pela mídia, mas pela sociedade em geral e pelas políticas públicas. Seja nos palcos, nas plataformas digitais, nas letras das canções, a representatividade LGBT por meio da música chega à mídia de massa como uma pauta necessária a ser discutida, compreendendo que

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essa cena emerge em paralelo com a necessidade de a sociedade discutir as questões de gênero e sexualidade reivindicadas por esses corpos dissidentes e excluídos socialmente. E, para além dessa necessidade, essa pauta midiática e social é uma imbricação de uma complexa trama de interesses sociais, políticos e, principalmente, econômicos, pois a indústria fonográfica ocupa um lugar importante na movimentação da economia.

Em consonância com as ideias de Jiani Bonin, para quem “a cidadania articula-se cada vez mais com a questão da afirmação das diferenças, com as políticas de reconhecimento e de promoção da diversidade cultural” (BONIN, 2011, p. 154), com essa pesquisa a compreender o papel da música brasileira, sob uma perspectiva comunicacional, na representatividade e no protagonismo da identidade trans e travesti na sociedade midiatizada contemporânea, objetivando analisar de forma exploratória, a complexidade da música frente às questões dessa comunidade no cenário brasileiro. Entendo como identidade:

Gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Diferente da sexualidade da pessoa. Identidade de gênero e orientação sexual são dimensões diferentes e que não se confundem. Pessoas transexuais podem ser heterossexuais, lésbicas, gays ou bissexuais, tanto quanto as pessoas cisgênero. (JESUS, 2012, p. 24).

Além disso, buscarei refletir e analisar como esses corpos agenciam suas vivências a partir da representatividade e do protagonismo de artistas da música brasileira, tendo como recorte empírico a banda As Bahias e a Cozinha Mineira, tentando, pois, compreender de forma paradigmática o que seria a música (mensagem? meio? mídia? comunicação? ato político?). Logo, a pesquisa pretende buscar respostas para questionamentos como: qual o papel da música quando falamos em representatividade e protagonismo da identidade transe travesti? Quais as lógicas de produção, circulação e divulgação da música no cenário cultural contemporâneo brasileiro para essas artistas? Quais os espaços midiáticos reservados e ocupados por artistas trans e travestis no fazer cultural na sociedade midiatizada contemporânea brasileira? Quais as consequências sociais, culturais, políticas e econômicas da emergência de uma cena trans e travesti na música brasileira?

Nessa perspectiva, o presente trabalho apresenta-se como uma pesquisa qualitativa exploratória dos temas imbricados na problemática, fazendo-se necessário o uso de uma trama de métodos e técnicas como revisão teórico-bibliográfica, observação experiência sistemática, pesquisa documental, pesquisa historiográfica, história oral (HO) e, sobretudo, como minha relação afetiva com a música traduz-se também numa caminhada ativista de minha existência

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enquanto pessoa LGBT. A partir dessas análises, buscarei refletir, nas páginas seguintes, sobre as hipóteses de que a música se configura como um expoente de liberdade e conexão entre pares que se identificam com a identidade transou travesti, sendo ela também uma forma de representar e fortalecer essas identidades. Além disso, acredito que a música é também uma forma de comunicar um ato político, mesmo que de forma indireta. E, aqui em específico, é preciso reconhecer o papel dos corpos performáticos de artistas trans e travestis que, mesmo não sendo o objetivo de suas canções apresentar um discurso direto de militância, apresentam-se de forma política ao ocuparem e conquistarem espaços reapresentam-servados, em sua maioria, para corpos normatizados (no caso, a cisnormatização).

1.1. (Trans)justificativa e (trans)enquadramento dos capítulos

De acordo com Martin-Barbero (1997, p. 21), “o discurso não é um mero instrumento passivo na construção do sentido que tomam os processos sociais, as estruturas econômicas ou os conflitos políticos”, pois ele é, também, um importante instrumento na manutenção do poder, como bem podemos aferir nos pensamentos de filósofas e filósofos como Michel Foucault e Djamila Ribeiro. Foucault, em “A ordem do discurso” (1999) já dialogava sobre o desejo e o poder presentes no discurso e todas as formas institucionalizadas de aferir sentido de verdade em certos discursos em detrimento de outros. A filósofa contemporânea brasileira Djamila Ribeiro atenta para a reflexão sobre o poder do discurso em legitimar linguagens “dominantes” como mecanismo de manutenção do poder, pois para ela “a linguagem, a depender da forma como é utilizada, pode ser uma barreira ao entendimento e criar mais espaços de poder em vez de compartilhamento, além de ser um – entre tantos outros – impeditivo para uma educação transgressora” (RIBEIRO, 2017, p. 26).

Na perspectiva dos estudos das mediações de Martin-Barbero (1997), busco “descobrir” alguns conceitos que se intersectam na pesquisa, a fim de encontrar reflexões epistemológicas que possam conferir uma leitura transversal sobre música, na perspectiva comunicacional, mediação e identidade trans e travesti. Logo, no primeiro momento, considero necessário um resgate historiográfico do movimento LGBT, a fim de compreender como conjunto de ações foram essenciais para a construção de uma sociedade mais igualitária.

Em um segundo momento, busco descrever e refletir sobre as lógicas da indústria cultural, objetivando compreender as dinâmicas que regem a indústria fonográfica hegemônica, confrontada com o movimento contra-hegemônico do mercado independente na música brasileira. Interessa-me, aqui, buscar reflexões que auxiliem no entendimento de como o cenário musical independente brasileiro contemporâneo produz, faz circular e divulga seus

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produtos culturais, tendo como recorte empírico a emergência de um cenário de representatividade LGBT, em específico de pessoas transe travestis, que vêm conquistando e ocupando espaços midiáticos na sociedade contemporânea, como é o caso da banda As Bahias e a Cozinha Mineira.

Por fim, mas não a fim de esgotar as reflexões sobre a complexidade da pesquisa, tento analisar criticamente e subjetivamente, numa perspectiva qualitativa exploratória, em diálogo com as interagentes da pesquisa, as intersecções entre música e comunicação, frente às ideias de mediação no que diz respeito à representatividade e protagonismo trans e travesti no cenário musical brasileiro atual, afim de compreender como a emergência de uma cena musical pode contribuir para uma normatização social coletiva de corpos dissidentes, provocar o debate político e a busca pela legitimidade dos direitos da população LGBT no Brasil.

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tenho arte y transtorno 1 coração até aqui d literatura roupas no varal q não secam stá frio chove mto toda vez q paro pra olhar em volta (Ave Terrena) para ler ao som de “Carne dos meus versos” (As Bahias e a Cozinha Mineira)

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2. PERCURSOS AFETIVOS DE UMA SURUBA METODOLÓGICA MARGINAL - IMERSÃO SISTEMÁTICA AFETO-ANALÍTICA

Nós somos a citação do mundo

“Escolher o que ignorar é estudar?” (Élida Lima) Peço licença.

Onde e quando se inicia o processo metodológico da pesquisa? Acredito que essa dimensão tem início muito antes da formalização sistemática do projeto. Atentando para a relação que construí com a música, percebo que o procedimento afetivo com a sonoridade das canções tem seu ponto de partida na infância. Foi através da música que comecei a me relacionar com dimensões afetivas que me atravessam até hoje. Assim, o processo da pesquisa foi um tanto catártico. Muitas lembranças da infância até os momentos da escrita foram acionadas durante os caminhos traçados. E, por falar em caminhos traçados, os mergulhos referenciais foram e ainda permanecem tomando rotas desconhecidas que precisam ser descobertas. Não como uma tentativa de fugir das trilhas já conhecidas, e sim numa tentativa de tatear e experienciar novas rotas, buscando ouvir e sentir curiosa e atentamente vozes e vivências que por muitas vezes são silenciadas e esquecidas.

A música sempre esteve presente em minha vida e fez parte de minha formação enquanto humano e cidadão do mundo. Foi ouvindo artistas diversos que, desde criança, recriei imaginários e entrei em contato com afetos e vivências diversas. O imaginário coletivo: a música carrega em si essa dimensão. Nascido e criado em um bairro periférico da cidade de Natal-RN, no Nordeste do país, percebi desde muito cedo que ser diferente e fugir da norma causava perturbações em mim e ao meu redor. Nessa caminhada, a música foi minha principal alternativa para fugir das rotas de perigo que a vida queria me impor. Lembro-me das muitas vezes em que a música me abraçou e me mostrou que era possível criar novas realidades afetivas, até então desconhecidas. Artistas e bandas como Fagner, Chico Buarque, Maria Betânia, Gal Costa, Secos & Molhados, Ney Matogrosso, Raul Seixas, Martinho da Vila, Legião Urbana, RPM, Mastruz com Leite, Limão com Mel, Magníficos, Circuito Musical, Brucelose, Amado Batista, entre outras(os) fizeram parte do repertório da infância e me auxiliaram a compreender visões de mundo fora da minha realidade marginalizada.

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Ao passar dos anos, o repertório foi crescendo e pude entrar em contato com outras construções artísticas musicais que fugiam da hegemonia heteronormativa das composições feitas por artistas cisgêneros, conceitos esses que serão discutidos no capítulo seguinte. Lembro-me que a priLembro-meira artista que conscientizei fugir dessa norma foi a compositora e cantora Ana Carolina, uma mulher que cantava sobre amor entre iguais de forma poética e metafórica em suas canções. Foi nesse momento em que percebi que era possível ser diferente. A cantora, que lançou-se no mundo fonográfico em 1999 e acumulava já em sua carreira algumas trilhas para novelas e alto número de venda de discos, assumiu-se bissexual na capa da revista Veja no ano de 2005 (edição 1936), quando então havia lançado um álbum em parceria com o cantor Seu Jorge (“Ana & Jorge” – lançado pela gravadora Ariola Records e premiado com Disco de Platina Triplo pela ABPD, devido às mais de 300 mil cópias vendidas no país). A notícia espalhou-se pelo Brasil e causou burburinho. A partir daí, passei a acompanhar a carreira da artista e perceber que referências musicais LGBT já faziam parte do meu repertório de escuta e relacionamento com a música, e isso causava desconfortos familiares e sociais por conta da sexualidade dessas personas. Começava, aqui, uma caminhada cartográfica em busca de aproximações com corpos e realidades em que me sentia, de alguma forma, representado como LGBT. As noções da sigla do movimento só foram compreendidas anos mais tarde.

Em 2016, em uma viagem para São Paulo, pude acompanhar o evento Periferia Trans2,

com o tema “Por um corpo em transgressão”, realizado no Galpão Cultural Humbalada no Grajaú, bairro periférico situado no extremo zona sul da cidade, entre os dias 2 de abril e 1 de maio. Adentrar nessa comunidade foi como revisitar a infância vivida também em uma periferia. Artistas como Liniker e Linn da Quebrada faziam parte da programação. Ainda não havia entrado em contato com o trabalho dessas artistas e também não possuía o conhecimento de serem corpos trans e travestis. Ao comparecer em um dos dias do evento, deparei-me com o trabalho da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, liderada pelas artistas Raquel Virgínia e Assucena Assucena. Antes do show, pude conhecê-las e trocar algumas palavras informais. Até então, não conhecia a banda e, muito menos, sabia que as duas artistas eram travestis. O show apresentado no dia foi do disco “Mulher”, lançado em 2015. Passei, a partir de então, a acompanhar o trabalho da banda.

Resgatar essas memórias faz parte do processo metodológico da investigação. Apesar de, em muitos desses momentos, ainda não estar inserido na pesquisa de mestrado, essa caminhada já fazia parte do que viria mais à frente. Não foi de imediato que pensei escrever

2O festival teve sua primeira edição realizada em 2014 com o tema “Meu corpo é político”, idealizado por Bruno Cesar Lopes.

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sobre as vivências de corpos trans e travestis na música brasileira, de modo que somente no curso dos anos que passaram e do contato com o trabalho d’As Bahias e da teia de saberes que essa experiência proporcionou que pude pensar na possibilidade de desenvolver essa pesquisa. Logo, o Periferia Trans torna-se o ponto de partida possível dessa investigação. Esse ponto de partida configura-se como uma espécie de caminhada cartográfica afetiva. Compreendendo a figura do cartógrafo como a de

[...] um verdadeiro antropófago; vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está sempre buscando elementos/ alimentos para compor suas cartografias. Este é o critério de suas escolhas, descobrir que matérias de expressão, misturadas a quais outras, que composições de linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no encontro com os corpos que pretende entender. (ROLNIK, 1989, p. 67).

Logo, iniciar esse mergulho afetivo no cenário musical brasileiro passa a ser uma oportunidade de tentar apreender as dimensões afetivas da música em minha relação com o mundo.

Aliás, “entender”, para o cartógrafo, não tem nada a ver com explicar e muito menos com revelar. Para ele não há nada em cima – céus da transcendência – , nem embaixo – brumas da essência. O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão. E o que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer sua travessia: pontes de linguagem (ROLNIK, 1989, p.67).

Outro ponto que afeta o processo metodológico está na escrita. Traduzir na forma de linguagem escrita a relação com a música enquanto instrumento para acessar afetos e comunicação entre pares faz parte da metodologia. Como traduzir o pensamento? Por muitas vezes, a música foi e é minha cúmplice e representa a tradução do que habita meu (in)consciente. Foi ela quem proporcionou acessar dimensões do pensamento e da afetividade que a vida não proporcionava. E aqui é o espaço do pensar. A escrita é também um processo metodológico. Qual a minha relação com a escrita? Ela se dá, de início, através da escuta e da leitura. Apreender a dimensão das palavras que formam sentidos quando unidas, ainda no processo de alfabetização, é também um dos pontos de partida dessa caminhada. Poderia traduzir de outra forma essa sintonia relacional com a música? Acredito que sim. É possível traduzir esse sentimento em relação à dimensão musical em forma de artes gráficas e plásticas, por exemplo. Mas aqui é o espaço de tradução dessa relação na forma escrita verbal. A linguagem é um mistério. Sendo mistério, ela traduz-se, por vezes, incompleta na dimensão do

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pensamento, pois é preciso ter conhecimento de códigos ainda desconhecidos – aqui, a palavra. Como, então, tornar acessível o pensamento acerca dessa relação com a música? Traduzir em palavras essas dimensões é, em si, um fator limitante. E, se levar em consideração os códigos utilizados na academia, acrescenta-se outros fatores limitantes da linguagem. Logo, metodologicamente, o trabalho apresenta-se como uma das formas possíveis de tentar transmutar o pensamento. Com quem me proponho dialogar nessa obra? Acredito que não é com um grupo seleto de pessoas alfabetizadas e com repertório linguístico “rebuscado”. Ao desejar construir um pensamento em forma escrita acerca da relação afetiva e representativa da música, percebo que todas as dimensões que atravessam essa escrita estão imbricadas em minha vivência. Eu sou a própria tradução desses sentimentos proporcionados pela música. E, eu não sou traduzível apenas em palavras. Assim,

eu me identifico com uma realidade que nunca existiu mas que é absolutamente minha e totalmente real, envolta numa aura dourada que só eu conheço. Minhas lembranças, eu as considero meus pequenos milagres de poesia. São fruto da infância que tive e de meus sonhos de garoto que voltam agora. Essas lembranças me tornam alguém bem mais feliz do que fui. Eu as ganhei de presente de mim mesmo. (TREVISAN, p. 66, 2017).

Para dar seguimento a esta obra, devo compartilhar também a importância de entrar em contato com o trabalho de Jota Mombaça, uma bixa não binária, nordestina, que ocupou o mesmo espaço acadêmico em que estou inserido, a UFRN. Porém, não foi durante os anos de graduação que pude conhecer a obra acadêmica insubordinada de Jota Mombaça. Ao partir para São Paulo, em 2018, para participar de um projeto de cooperação entre o PPGCOM da ECA-USP e o PPGEM-UFRN (programa ao qual faço parte), pude mergulhar na pesquisa proposta e conhecer os escritos inspiradores de Jota. Ao ler um dos capítulos de sua monografia, intitulado “Rastros de uma submetodologia indisciplinada”3, pude compreender a possibilidade

desse trabalho ser, assim como ela caracteriza sua pesquisa, uma “obra de ficção acadêmica”. Parecia-me ser incapaz de realizar a pesquisa seguindo estritamente os códigos academicistas para tratar de um assunto marginalizado e, de certa forma, negligenciado pelo ambiente acadêmico. Logo, passei a perceber que não poderia tratar o trabalho de artistas trans e travestis na música brasileira como um “objeto de pesquisa” estável e imutável, nos moldes paradigmáticos científicos dominantes, uma vez que proponho mergulhar em um universo que

3Ensaio apresentado como capítulo metodológico da monografia “Teoria cu: Políticas do saber e da subjetividade a partir do

trabalho de Pêdra Solange”, realizado sob orientação de Berenice Bento e orientação afetiva de Pêdra, defendida em dezembro de 2014 como Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Ciências Sociais da UFRN.

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implica tensões. Assim como Mombaça, compreendo o processo da pesquisa como um “compartilhamento tanto de referências teóricas, éticas e estéticas, quanto de afetos, memórias e informações pessoais cujos efeitos sobre esta escrita são irredutíveis” (MOMBAÇA, p. 342, 2016). Tomando consciência dessas dimensões, percebo que o relato dissertativo dessa reflexão a qual me propus não é o bastante, ao mesmo tempo que tenta se tornar suficiente.

Nessa caminhada sensível e afetiva, percebi que, mesmo fazendo parte da sigla LGBT, não conhecia a fundo a história desse movimento. Foi a partir dessa reflexão que parti para uma pesquisa historiográfica do movimento LGBT - compreendendo a historiografia como um acúmulo de registros já produzidos por historiadoras(es) e pesquisadoras(es) que se utilizam desta disciplina da ciência associada a reflexões mais sistemáticas acerca dos trabalhos. Isso, no entanto, também implica atentar que obras e trabalhos historiográficos são produzidos a partir de métodos e teorias distintas. Para Curado (2001), o método historiográfico consolidou-se a partir de duas correntes quaconsolidou-se antagônicas: a História Tradicional (ou Velha História) e a História Total (ou Nova História). A primeira, predominante até o século XIX, baseava-se na construção de narrativas lineares, analisando curtos períodos temporais com foco no âmbito político e no objetivo racional de legitimar as ações ocidentais como uma “história oficial”. Já a segunda, fortalecida ao longo do século XX, propõe a construção de narrativas não lineares com maior flexibilidade para investigar e interpretar os campos social e econômico, permitindo-se adentrar nas subjetividades dos acontecimentos para refletir criticamente sobre a história oficial (TOEWS, 1989). Assim, passei a rastrear caminhos desconhecidos em busca de documentos que pudessem mostrar a história do movimento e causar reflexões acerca das caminhadas percorridas. Passo, a partir daqui, a acessar cursos presenciais, livros, jornais, revistas, produções audiovisuais (documentários, entrevistas, programas etc.), artigos e pesquisas como aportes metodológicos dessa construção historiográfica do movimento LGBT, a fim de compreender não apenas o movimento como um todo, mas mais especificamente as histórias de pessoas trans e travestis desde o Brasil colônia à atualidade (como poderemos ver no capítulo seguinte).

No meio do caminho havia uma pedra. E a pedra estava dentro de mim. Tendo consciência da dimensão subjetiva ao acessar essa historiografia, deparo-me com o diagnóstico de HIV positivo no início de 2018, segundo ano do mestrado. Pareceu obra essencial do destino mostrar-me a história do movimento e tatuar em mim uma marca tão significante que foi para as pessoas LGBT a partir da década de 1980. Ou seja, eu faço parte dessa história. Sou a própria história. Teoria, método e práxis estão imbricados no processo pessoal e de pesquisa. Relatar detalhes dessa caminhada é essencial para compreender os percursos tomados para a pesquisa

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que passou a ser não apenas acadêmica, mas também pessoal. Compreender a história é uma oportunidade de reescrevê-la em uma relação de poder simbólico e estrutural. Assim, passei a procurar construir estratégias metodológicas processuais, que possibilitassem trabalhar com variáveis abertas de interpretações. A partir daqui, passo a encarar a pesquisa como processo (ou, em processo), estando sujeita às subjetivas criações de pensamento e reflexão, como numa escrita dramatúrgica. Afinal, a escrita acadêmica assemelha-se à escrita ficcional, como propõe Lucía Egaña Rojas:

Una metodología es siempre una ficción. Como una biografía, un cuerpo, una identidad. Cuando pienso la figura de la metodología, específicamente la académica, la imagino como un algoritmo, un conjunto de instrucciones o reglas sucesivas que tienen por objetivo eliminar la duda en torno a los procedimientos. El carácter clausurado de las metodologías académicas me lleva a imaginarlas como procesos fijos, estandarizados y estables que no permiten, ni con mucho esfuerzo, pervertir esas lógicas anquilosadas que performan la validez, científica o institucional, a partir de la repetición. (ROJAS, p. 1, 2012).

Entendo que, a partir da definição de Laville (1999), a metodologia não é apenas uma descrição formal dos métodos e técnicas que permeiam a pesquisa, mas é também a indicação da leitura operacional feita pelo pesquisador sobre o quadro teórico, proponho aqui um estudo de caráter descritivo exploratório acerca do tema.

Para isso, busquei inspiração em métodos e técnicas que foram, não de forma sólida e sim de forma solúvel, apresentando-se como dispositivos auxiliares nos processos da pesquisa, uma vez que “o endeusamento das técnicas produz ou um formalismo árido, ou respostas estereotipadas. Seu desprezo, ao contrário, leva ao empirismo sempre ilusório em suas conclusões, ou a especulações abstratas e estéreis” (MINAYO, 1994, p. 16).

A metodologia de pesquisa, assim como o corpus e o problema, envolve uma complexidade de procedimentos ao qual chamo de Imersão sistemática afeto-analítica, na qual eu, enquanto comunicólogo, pesquisador, observador e, acima de tudo, afetado pelo tema de investigação, insiro-me em sua subjetividade para compreender o máximo da complexidade de assuntos que permeiam a pesquisa. Nessa imersão, a figura do pesquisador transmuta-se permanentemente, assim como as outras figuras que fazem parte desse processo, sendo afetado e afetando mutuamente umas às outras - aqui, sou pesquisador, sou corpo, sou performance, sou eu e sou vários. Como tudo se dá em relação ao eu, tudo que foge disso configura-se como outro. O outro é estranho ao eu. E, apesar disso e por isso, ele (o outro) nos atrai, perturba, exige acolhimento e sentidos atenciosos. A norma (o eu) trata de tentar compreender o outro e

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adequá-lo ao eu. Está entranhado na produção do saber e conhecimento a ideia da objetividade. E o que é ser objetivo? É fugir e negar a subjetividade. O que seria a subjetividade? Seria a minha relação com o mundo, ou seja, tudo o que sou. Logo, ser objetivo é negar o que sou e o que sou junto aos meus pares. Todo contato com o outro é uma possibilidade de gerar incertezas. As conexões das figuras, dos papéis e dos corpos envolvidos nesse processo geram várias perturbações e, consequentemente, reflexões acerca do corpus da pesquisa. Nesse espaço imbricado de questionamentos, no qual a minha figura enquanto pesquisador pode ser dada como indevida, podendo causar confusões quanto à análise dos temas pesquisados, é notório que estou, a partir da metodologia adotada, não apenas (e o bastante) tomando para mim também um lugar de fala, enquanto corpo marginalizado pelas identidades de gênero e sexualidade impostas pela sociedade hegemônica, enquanto corpo ocupando os espaços, enquanto corpo performático, enquanto as n possibilidades, mas sim (e principalmente) criando um lugar de escuta, por meio do qual entro em contato com outras realidades que não são compreensíveis a partir da minha vivência e experiência dissidente. Nesse lugar (ou nesses lugares) ao qual também pertenço, em que as subjetividades são construídas coletivamente e vividas individualmente, não apenas ocupo ou me aproprio e, por isso mesmo, afeto e sou afetado por todas as consequentes reflexões acerca das interagentes postas como mera figuras de uma investigação, pois sendo elas além, sendo elas parte de um eu também dissidente e, assim também sendo nós, perturbamo-nos de formas mutuamente distintas e conectadas. Nesse processo de Imersão sistemática afeto-analítica, os processos metodológicos mostram-se também múltiplos, através da análise de materiais audiovisuais, como entrevistas dadas pelas artistas a diversos veículos de comunicação, sejam eles nos meios tradicionais como TV e rádio, como também, e em especial, no meio digital online. Construo, assim, segundo Mombaça, uma tentativa de vasculhar,

indisciplinarmente as sombras e os subterrâneos da produção teórica, hackeando os tímpanos da escuta científica para fazer passar, por eles, ruídos até então ignorados; e privilegie autorias não autorizadas, visibilizando contextos de disputas em torno das questões sobre quem e como falar. (MOMBAÇA, 345, 2016).

Estamos constantemente referenciando as mesmas vozes, os mesmos discursos já legitimados por instâncias ditas superiores. Logo, o outro, que não é a “voz legítima”, aparece como expoente de liberdade do pensamento, da expressão e da produção de conhecimento e de

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saberes. Despindo-me do meu eu, tento me encarar como o outro, pois somos sempre o outro para o outro que é outro para o meu eu. Ou seja, somos nós. Nós somos a citação do mundo.

Além disso, por se tratar de uma expressão artística, acompanhar shows e espetáculos de artistas trans e travestis tornou-se um procedimento também metodológico, assim como a convivência com as artistas e as redes de outras figuras conectadas nesses ciclos, pertencendo enquanto corpo. Tenho em mente que essa “escolha” possa acarretar questionamentos quanto ao caráter científico das reflexões propostas na pesquisa, porém é preciso reconhecer que o hibridismo em minha figura nesse processo é também o espaço conquistado não apenas como um lugar de fala (meu e delas), mas também, e principalmente, um lugar de escuta, como dito anteriormente. Pois, de acordo com as ideias de Carlos Rodrigues Brandão,

desconfio de uma objetividade em si mesma “neutra” e impessoal. [...] Os números e teorias dão um chão seguro à compreensão do que é visto ou experimentado através de instrumentos, mas é uma mente humana que dá sentido ao que o olho descobre ou a imaginação inventa quando constrói uma interpretação objetivamente pessoal do que a pessoa pensa. É uma mente humana que pensa, mas é um coração que a dirige (BRANDÃO, 2003, p. 36-37).

A pesquisa, assim, mostra-se não como um produto discursivo institucionalizado e elitizado, mas parte das vozes de pares que interagem nesse processo. Logo, não são os métodos e técnicas que ditam como a pesquisa deve ser feita, mas a pesquisa em si que se apropria desses instrumentos durante o seu processo. Para dar conta desse processo, a fim de responder os questionamentos propostos nos objetivos, fiz uso de métodos e técnicas como a pesquisa historiográfica, pesquisa documental, observação sistemática, observação experiência e a história oral, através de entrevistas e conversas informais a partir da convivência afetiva com esses corpos que fazem parte da mesma comunidade a que pertenço.

Para além disso, de início, deparei-me com a seguinte questão: como eu, uma pessoa cisgênera, posso contribuir de alguma forma para as pesquisas em relação a corpos trans e travestis? Pode um corpo cis falar por corpos trans e travestis? Mesmo sendo parte da comunidade LGBT, por ser homossexual, ao trazer esse debate para a pesquisa, não estou em meu lugar de fala – algo que me preocupou muito ao iniciar e desenvolver o processo de escrita. Quando não estamos falando de vivências que o grupo ao qual pertenço não experiência, corro o risco de tomar as problemáticas de toda uma categoria como sendo única, numa tentativa de transformar as diversas subjetividades e camadas da classe T (trans) em apenas um objeto de pesquisa a ser mostrado como bem quiser, sem que de fato tente compreender e mergulhar nesse

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“universo paralelo”. Logo, ao me deparar com esse questionamento, compreendi a necessidade de me colocar aqui como um ouvido curioso e atento, construindo conexões e relações com corpos e realidades diferentes das minhas para poder me engajar e, também, pautar discussões referentes às realidades de pessoas trans e travestis, trazendo suas vozes para o texto da dissertação. Além disso, percebi a necessidade de deixar escorrer por entre os dedos as dimensões afetivas que construo constantemente com a música.

Conforme observado no processo de pesquisa da pesquisa sobre representatividade trans e travesti na música brasileira, há uma carência na produção acadêmico-científica quando se trata especificamente desse assunto. Muitos trabalhos e pesquisas desenvolvidas no cenário nacional, que aproximam os campos da comunicação aos estudos de gênero e sexualidade, tomam para si o caminho dos estudos de representação e construção midiática de identidades, tendo, muitas vezes, o foco nas relações heteronormativas e, quando pretendem lançar-se em outras perspectivas, como a homossexualidade, dão demasiada atenção para os corpos masculinos. Além disso, percebo, nesse processo de pesquisa da pesquisa, que a maioria das produções acadêmico-científicas são realizadas por corpos cisgêneros, havendo uma carência de referências de corpos trans e travestis, não apenas pelo número ainda limitado dessas pessoas no ambiente acadêmico, mas também por elas não serem citadas em pesquisas que pretendem levantar discussões sobre suas causas.

Apesar de perceber uma emergência de uma certa cena musical contemporânea pautada na representatividade de corpos dissidentes, como é o caso de artistas trans e travestis, é notória a falta de estudos da comunicação que abarquem essas questões em suas análises. A partir do estado da arte da pesquisa, pude perceber um número pequeno de trabalhos que tratam questões de representatividade trans e travesti na música brasileira. Dentre os bancos de dados e plataformas pesquisadas, foi feito um levantamento de trabalhos que tratam questões sobre música numa perspectiva comunicacional a partir de palavras-chave como “música”, “lgbt”, “gênero”, “representatividade” e “identidade”, nos últimos sete anos (2013 a 2019).

No banco de dados da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação), entre os anos de 2013 e 2019, nos grupos temáticos (GTs) de “Comunicação e Cultura”, “Comunicação e Sociabilidade”, “Comunicação e Cidadania”, “Recepção: processos de interpretação, uso e consumo midiáticos” e “Estudos de som e música”, foram encontrados 16 artigos que tratam questões sobre música e comunicação, sendo apenas um deles ligado à análise e compreensão das questões LGBT e performatividade de gênero.

Entre os anais da Intercom, compreendendo o período de 2013 a 2019, tanto de divisões e grupos temáticos dos eventos nacionais, sendo pesquisados artigos da Intercom Junior e de

Referências

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