• Nenhum resultado encontrado

3. ATRAVESSAMENTOS DO PENSAMENTO: UM TENTATIVA DE

4.2. Um olhar subjetivo sobre a música e seus atravessamentos: o que me afeta

Retomo a palavra numa tentativa de explicar o sentir, mesmo sabendo da possível impossibilidade de o fazer. Resgatar na memória afetividades ligadas a música foi como mergulhar em dimensões do pensamento, por vezes, intraduzíveis. Compreender, na subjetividade de cada interagente da pesquisa, suas relações de ser e estar imbricadas de conhecimentos e vivências de mundo, foi uma oportunidade de reconhecer que não se constrói uma obra acadêmica sobre, mas com as figuras que também fazem parte desse processo.

Foi circulando pela cidade e entranhando pelas veias urbanas, mediadas, por vezes, pelas frequências de ondas que transportam a música, que acessei apreensões de mundo. O afeto conduziu amorosamente esses percursos. A sede de mergulhar no desconhecido foi o gatilho. A música, o disparo que percorreu corpo e mente. Assim é a vida do etnógrafo, como diz Rolnik, que todas e todos nós tomamos para si, pois é no cotidiano relacionamento com o mundo e com o outro, ou seja, com as vidas que o habitam, que podemos ser afetados pelos sentimentos que pulsam em nosso organismo – orgânico, múltiplo, singular e conectado.

A vida é finita, mas as possibilidades de vida são infinitas. A representatividade de corpos trans e travestis na música brasileira reverbera sua potência em outras esferas, sendo propulsora de movimentos em busca de identificação de outros corpos, como os aqui citados, em outros espaços como a política, os escritórios, os hospitais, as ruas, shoppings e em todas as possibilidades de relacionamentos entre pessoas e espaços.

Ao tatear a história com sentidos curiosos, percebo que a música fez e faz parte do meu (e do nosso) repertório de imaginários sobre as dimensões de vida desde o ventre de minha mãe, quando ouvia as vibrações do seu corpo que ecoavam em mim como uma canção melódica, como uma possibilidade de acessar apreensões que a vida presente, por vezes, não proporcionava. Então, ao ouvir música, passo a ser tocado de formas subjetivas pelo afeto. Explicar essas apreensões de forma sistemática e hierarquizada de traduções do pensamento, numa tentativa de me distanciar dessas dimensões, é um desafio e exige abertura e sentidos atenciosos. Todo contato com o desconhecido, ou seja, o outro, é uma possibilidade de gerar incertezas. O pensamento não se esgota na reflexão, ele está em constante movimento de mudança, assim como estão os corpos e as outras dimensões da vida. O processo que vivencio hoje é consequência dessas caminhadas, que aconteceram, estão em acontecendo e outras que ainda estão por vir.

A música penetra em nossos sistemas cognitivos e corporais de formas diversas e ocasiões múltiplas. Ao ouvi-la, estamos nos abrindo para as possibilidades do afeto, podendo ela nos transportar para memórias passadas ou imaginar o futuro. Ao conhecer o trabalho d’As Bahias e a Cozinha Mineira, percebo a ausência de conexões minhas com corpos trans e travestis durante a infância, adolescência e boa parte da juventude, mesmo tendo conhecimento da existência de vidas como as de Assucena e Raquel. Foi o percorrer das incertezas da vida e a abertura curiosa para saborear o desconhecido, como um etnógrafo de si mesmo o faz, que deu a mim a oportunidade de conectar-me com a arte e os corpos dessas artistas. Em consequência, essa conexão foi ponte de travessia para a construção de novas relações afetivas com outras pessoas trans e travestis. A música carrega em si a dimensão do afeto, ela é também responsável por nossas construções de memórias coletivas, individuais e de relacionamentos com o mundo. Assim como a existência de nossos corpos vivos e vivendo não é algo acabado, a música nos afeta de maneiras plurais, a depender, por exemplo, do momento em que ela está sendo tocada, do espaço que está sendo apresentada, dos corpos que a performam, das pessoas que interagem com essa linguagem, das dimensões subjetivamente sensíveis de cada corpo que se conecta com suas vibrações, podendo propulsionar sentimentos e afetos múltiplos, como sorriso, choro, euforia, alegria, tristeza, dor, gratidão e amor. Numa tentativa de ir além do campo da subjetividade, posso perceber que a música é também dimensão propulsora de encontros entre corpos outros, empatia pelas causas compartilhadas, como é o caso do movimento LGBT, engajamento em busca de direitos e políticas, construções de amizades, amores e afetos. Uma música pode transformar tudo.

Na malemolência de relações entre a música e o tempo, percebamos o agora. A música está entre (e continua), em relação a. Indo ao encontro das ideias de Amara Moira, ao negar referenciar um ser que está sendo o que é, e por isso tem nome, forma e conteúdo, ele existe. Se anos atrás a artista Lacraia era lida e codificada pela mídia como “dançarino”, numa espécie de apagamento identitário, hoje já não se pode negar a existência (ancestral) desses corpos, buscando a mídia, de alguma forma, dialogar com essas identidades transformadoras. No entanto, ainda em diálogo com o pensamento de Amara Moira, não basta apenas a esses corpos a auto identificação, pois se vivemos em relação com o outro, nossas identidades estão em constante movimento de transformação investido nas construções desses corpos, que também são identidades que precisam ser legitimadas pelo outro e pelo próprio eu que se reconhece em uma determinada identidade.

No ano em que estas linhas estão sendo digitadas, ainda não há no Brasil, segundo a Antra, um levantamento oficial da população LGBT. Em março de 2018, a associação oficiou

e está movendo uma ação na Defensoria Pública da União (DPU), solicitando que esta se manifeste e acione o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para incluir no próximo censo, previsto para 2020, as questões demográficas da população LGBTI e especialmente Trans. Os levantamentos atuais são realizados por organizações da sociedade civil. Esses dados, cuja importância reflete na construção de políticas públicas dessa população, foram entregues à Organização das Nações Unidas (ONU-Brasil em Janeiro/2018) e à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Maio/2018 na República Dominicana). Além disso, hoje, apenas seis estados brasileiros (Acre, Pará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) aplicam a Lei Maria da Penha para pessoas trans e travestis. Isso é um reflexo do não reconhecimento das identidades trans e travestis pelo Estado, o que mais violenta esses corpos. Em paralelo a esses dados, a música aponta a agulha da bússola para outras direções. Fato é que ela nos apresenta uma história de representatividades de pessoas trans e travestis que têm a oportunidade de percorrer outros caminhos, que não apenas as ruas. Artistas como as citadas nessa obra, são células promotoras de mudanças de olhar e percepção do outro. Por vezes, elas adentraram os lares das famílias brasileiras, numa tentativa de normatizar suas existências e presenças. Hoje, elas continuam construindo na arte outros caminhos possíveis. Afetando-me pela reflexão da Renata Carvalho, meu olhar curioso de ser vivo em construção é atraído pela potência da arte que revela outros modos de estar e ser no mundo. Foi também por meio da música e das canções que pude construir conexões com pessoas que experienciam realidades dialéticas às minhas, possibilitando-me apreender que as diferenças existem e estão em constante processo de relação. A música é como mola propulsora do movimento. Ela aciona, por vezes, nossa curiosidade, e é capaz de mobilizar sentimentos em nós – conhecer obras de outras/os artistas semelhantes ou diferentes atiça-nos a curiosidade de conhecer sobre a história, a cultura, a política e a sociedade. Possibilita o diálogo. No momento em que ouvimos uma música e deparamo-nos, na canção ou melodia, com traduções de afetos e discursos, mesmo que não vivamos o que está sendo ali tocado ou dito, passamos a acessar, por meio dela, uma apreensão sobre algo que nos é estranho-familiar. A música carrega em si a esfera da comunicabilidade, a qual chamo de cosmusicação.

Reflitamos: uma música com canção (letra) toca. Uma gama de palavras harmonizadas em sintonia com instrumentos dá sentido a um conjunto de mensagens. Elas podem ser construídas de formas diversas, possibilitando interpretações de significados múltiplos. A música está presente em nosso cotidiano e fissura nossa existência. Seja no dedilhar do violeiro, no badalo do sino que ressoa, no som macio da voz ao ninar a cria, na sintonia do rádio na cozinha, na comunhão em torno da TV na sala, nos fones de ouvidos ao percorrer a cidade, nos

olhos atentos ao palco iluminado, na força dos discursos que ecoam nas ruas em dias de passeata, no transitar dos automóveis, no embalo dos corpos em malemolência que ocupam o fervo, na sintonia de ondas sonoras que nos acolhem ao sono. Entre isso está viver – essa não linearidade inacabada, em constante movimento de transformação.

Por ser e estar em relação, a música não se esgota em si mesma, nem se esgota. Ela reverbera sua potência e constrói relações afetivas. Atentarmos nosso olhar para o desconhecido, o novo, possibilita-nos reconhecer a diversidade do mundo. O som que ecoa das vozes de Assucena e Raquel mostraram-me que histórias são construídas em relação. Nesse movimento, a música foi o arranjo entre o desejo de saborear o novo e a curiosidade em sentir. Ela foi ponte de travessia entre o deleite da canção d’As Bahias e a Cozinha Mineira e as palavras de Jesus, sejam elas representadas em um palco por um corpo travesti em “O Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu”, da Renata Carvalho, ou escritas em produções acadêmicas da transfeminista pós-doutora em Ciências Sociais Jaqueline Gomes de Jesus; entre a batida potente do discurso filosófico do funk de Linn da Quebrada e a representatividade política de Robeyoncé de Lima, Erika Hilton e Erica Malunguinho; entre as raízes nordestinas de Verónica Decide Morrer e as singularidades sudestinas de Maria Sil; entre a fricção artística de Rosa Luz (do Barraco) e poética de Ave Terrena e Amara Moira; entre as reflexões erráticas de Jota Mombaça e as traduções do amor na melodia de Liniker; entre a luz da arte e as sombras da vida.

Dentro do espectro variado de seletiva de linguagens, a música carrega em si o imaginário coletivo de afeto. E, se a linguagem é fíctio, significa que está em constante processo de construção, de vir a ser, assim como é o processo de tatear o desconhecido com sentidos aguçados. A música emerge e reconstrói-se nesse processo não linear, quase que de forma esquizofrênica, uma espécie de esquizofrenia organizada que ecoa vozes múltiplas. Apesar de tentarmos de diversas formas sistematizar e racionalizar os sentidos da vida, nossas vivências e reflexões acerca delas surgem espontaneamente. Percebo que ao ouvir uma música, por exemplo, ela pode tocar lugares do meu eu e causar sinapses em meu inconsciente subjetivo, promovendo sensações diversas – recordar da fotografia de um lugar, os traços de um amor passado ainda presente, o brilho no olhar ao ver o pôr do sol. São tantas as possibilidades de afeto que a música carrega em si que as traduzir seria acabar com o mistério da vida. Assim como defende o cantor e compositor Moska, somos fruto do mistério. Ele nos move em direção ao desconhecido. O desconhecido é sempre novo para nós. E, o novo causa medo, estranhamento, ativando em nós o impulso da coragem. Música é um ato de coragem. Ela é a possibilidade do novo. A ponte de travessia entre o lugar-comum e o mistério, que nunca o

deixará de ser. Porque ainda não o conhecemos. E, assim, caminhamos em busca do afeto com o divino da vida: nossa existência. A música é a tradução da vida em arte – célula latente de subjetividades. Ao configurar-se em comusicação, ela comunica corpos, conecta experiências de vidas, media relações e promove mudanças.

A música, talvez, seja mesmo um mistério. Provoca sensações inexplicáveis. Mas as sensações não são para explicar, são para sentir. A música esteve presente durante todo esse processo, como está sendo agora, melodiando as batidas no teclado que, ao unir letras em palavras, tentam explicar seus atravessamentos em frases que almejam ser conexas e coesas. Mas como explicar o inexplicável? Como negociar o inegociável? Suely Rolnik fissura meu inconsciente infectado pela cafetinagem da vida. Nesse movimento, permito-me sentir. Sentir- me conectado com algo que ao me preencher, transborda. Foi nos momentos de ansiedade extrema, em que o corpo treme em colapsos ritmados, que a música soou como acalanto. Ao me deparar com bloqueios criativos, a canção d’As Bahias compuseram as sinapses criadoras. A música me levou ao passado, ao mesmo tempo em que me fez projetar experiências ainda não vividas, fazendo-se presente, entremeando os tempos, todos eles.

Não somos um corpo acabado. Um corpo só não basta ao corpo. Somos seres em construção. É nesse corpo inacabado, infinito, que está a beleza da vida. Fissurar o sistema é perturbador. E, um movimento necessário para promover mudanças. Então, que essas vozes possam bradar seus sentimentos e afetar aos que se dispuserem beber da água da fonte primária que é a vida, que se deleitem no sabor da liberdade. Representatividade é presença. Se, por meio do afeto fui tocado pela música dessas artistas e pude acessar outras dimensões da existência, escavando a história do movimento ao qual faço parte, podendo, assim, fortalecer minhas identidades, a representatividade, seja ela na arte ou em outras dimensões da vida, ecoa como a possibilidade de acessar outros esquemas e possibilidades de existir no mundo.

Fazer pactos com o nada ou aprender a lidar com tudo? Autoconhecimento não funciona para fazer do vazio do nada a insuficiência do tudo. Tudo ou nada? Só dois caminhos não bastam. Não cabe hormônio no corpo que não se conhece mais. (IkaEloah) para ouvir ao som de “O nome da coisa” (As Bahias e a Cozinha Mineira)