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O indígena brasileiro

1.3 Indígenas e a Legislação

O antigo Código Civil brasileiro, de 1916, que vigorou até 2002, referia-se aos indígenas como silvícolas, e, no seu artigo 6º, dispunha sobre a sua incapacidade relativa, igualando-os aos menores de dezesseis anos, loucos de todo gênero, surdos-mudos e ausentes, que não podiam realizar atos da vida civil diretamente, ou seja, sem representação ou autorização de seu representante legal. Definia-se, portanto, o indígena como incapaz. No parágrafo único desse artigo, a tutela dos direitos indígenas era uma função que caberia ao Estado brasileiro, mas que cessaria à medida que eles se adaptassem à civilização do país.

O estatuto do índio – a Lei nº 6.001/73 promulgada em 1973 (Brasil, 1973), também apresentava o indígena na condição de tutelado e a noção de que eles eventualmente seriam assimilados à comunhão nacional, adaptando-se aos costumes da maioria do país. Com o advento da Constituição de 1988, avanços consideráveis para os direitos indígenas foram alcançados. Foi à primeira constituição brasileira a destinar um capítulo específico para a proteção desses direitos: o capítulo VIII do Título VIII (Brasil, 1988).

São reconhecidos aos indígenas muitos direitos permanentes, tais como os de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Direitos originários e imprescindíveis sobre a terra que ocupam são considerados inalienáveis e indisponíveis, com posse permanente sobre suas terras, usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, uso de suas línguas maternas e dos processos próprios de aprendizagem, proteção e valorização das manifestações culturais indígenas, que passam a integrar o patrimônio cultural brasileiro.

Em junho de 2002, o Congresso ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que revoga a tutela indígena e confirma a competência da Justiça Federal para julgar causas que envolvam interesses indígenas, conforme o Instituto Sócioambiental (ISA, 2002). Em 2003, passou a vigorar o Novo Código Civil

39 Brasileiro, o qual determina que a capacidade dos indígenas seja regulada por legislação especial. Esse novo ordenamento jurídico retirou a designação silvícola, mas nada dispôs sobre a tutela. Trata-se de um contrassenso em relação à ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

É interessante notar na revisão do Direito Civil Brasileiro, os direitos indígenas não foram especificados. O usufruto das riquezas do solo e de tudo nele existente foram mantidos, assegurando ao Estado o direito legal de posse, já que o termo usufruto define o direito de uso, mas não o de propriedade, ou seja, o indígena pode usufruir, mas não dispor das riquezas, pois se mantém na condição de indivíduo tutelado. É também um contrassenso em relação à Convenção 169.

Em 13 de setembro de 2007, um grande avanço foi alcançado em relação os direitos internacionais de todos os povos indígenas. A Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, que estava em discussão havia mais de 22 anos na Organização das Nações Unidas (ONU) foi aprovada com o voto de 143 nações, dentre elas, o Brasil. Países como os Estados Unidos da América, Canadá, Nova Zelândia e Austrália foram contrários. A declaração reconhece o direito coletivo à terra, uso dos recursos naturais e a autodeterminação política dos povos indígenas, entre vários outros direitos (ISA, 2002).

No entanto, um novo Estatuto do Índio, provavelmente a legislação especial a que se refere o Novo Código Civil (Brasil, 2002), ainda não foi votado no Congresso Nacional, embora, desde 1991, tramite um projeto de revisão daquela legislação. Portanto, os direitos indígenas, em que pesem os avanços ditados pela Constituição de 1988 e dos organismos internacionais, ainda não são totalmente passíveis de serem aplicados, pois falta uma legislação especifica infraconstitucional que esteja em consonância com as novas determinações e conquistas e torne-os direitos indígenas passíveis de serem exercidos.

Apesar dos avanços legais, do crescimento das populações indígenas, das novas possibilidades de demarcações dos denominados territórios indígenas, pesquisa realizada por Santilli (2000) sobre a opinião dos brasileiros sobre os indígenas, demonstra que, permanecem imutáveis algumas perspectivas dessa relação intergrupal – indígenas e não indígenas. A pesquisa aplicada entre os dias 24 e 28 de fevereiro pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública ( Ibope) em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), no ano de 2000, entrevistou duas mil pessoas de ambos os sexos em todo o território nacional.

40 A pesquisa ponderou diferentes dados do perfil da amostra, tais como gênero, idade, renda, grau de instrução, região e tamanho do município de residência, de forma a construir um conjunto que refletisse o espectro da opinião pública. Outro dado importante apresentado sobre a metodologia da pesquisa é que ela não foi feita sob nenhum impacto de acontecimento político ou público que envolvesse a questão indígena. Construída com categorias bons ou violentos, atrasados ou diferentes, explorados ou privilegiados, termos aplicados aos indígenas, a pesquisa buscou respostas sobre a imagem desse contingente populacional, na opinião dos não indígenas.

Quando perguntados se os indígenas conservam a natureza, 88% dos entrevistados responderam positivamente. À questão seguinte que indagava se os indígenas são bons, mas aprendem coisas ruins com os não indígenas, 78% responderam que sim. Comparando ambas as questões, vê-se que, em um primeiro momento a ideia de bom selvagem, conforme denominado por Santilli (2000), aparece com clareza, em contrapartida com a ideia subjacente da tese de baixa autoestima, ela é apenas sugerida no percentual apresentado na segunda questão.

No tocante à questão sobre a violência dos indígenas 59% afirmaram não considerar os indígenas violentos. O autor enseja uma interpretação que parece plausível: os respondentes que disseram não reconhecer e não temer a possível violência indígena o fizeram porque não conhecem os indígenas como não mantêm contato com eles, logo definiram a questão em decorrência do próprio desconhecimento do povo indígena.

Perguntados se a quantidade de terras destinadas às áreas indígenas, ressaltando que a população indígena na época da pesquisa representava algo em torno de 0,31% da população total do Brasil e que as demarcações cerca de 11% do território brasileiro, 22% disseram que se trata de muita terra; 34% afirmaram que é a quantidade certa de terra, empatando com a opção pouca terra que também obteve 34% das respostas. As respostas indicam a exata opinião dos não indígenas sobre questões que envolvem demarcação de terras, discriminando positivamente os direitos territoriais indígenas e desconsiderando uma das suas principais características: serem indivíduos nômades.

Dentre as várias perguntas apresentadas, uma chama a atenção pela precisão e por demonstrar um contrassenso em relação às opiniões coletadas nas questões anteriores. Quando perguntados se os indígenas deveriam ser educados de acordo com a cultura da maioria do país, 52% responderam que sim. Apesar de os respondentes acreditarem que

41 todos devem ter o direito à educação, observa-se que educar o indígena à maneira dos não indígenas é, na realidade, desejar que todos – incluindo o indígena – apresentem os mesmos valores culturais, linguísticos e religiosos.

As duas últimas questões apresentadas e interpretadas demonstram com exatidão o pouco conhecimento dos não indígenas em relação aos indígenas. Em relação a questão que se refere à demarcação de terras indígenas, os dados indicam que, apesar de serem favoráveis, na verdade desconhecem as características nômades dos indígenas. A segunda questão também apresenta percentual favorável à educação de acordo com a própria cultura da maioria do país, o que na realidade indica a repetição do mesmo comportamento do colonizador, que pretendia cristianizar, catequizar e educar segundo sua própria lógica, desconsiderando a cultura do outro.

Dessa forma, caso ignore a realidade de todos aqueles que pertencem a determinada etnia, desconsiderando o que ela representa em termos históricos para o Brasil, constrói-se uma generalização errônea, cuja generalização com base em preconceito étnico.

A história do indígena brasileiro, nos vários aspectos que a compõem, foi construída a custa de um processo civilizatório baseado na definição do indígena como sendo o outro das relações (exogrupo). Primeiramente, houve a tentativa de assimilar, aculturar o indígena por meio das mais variadas formas. O colonizador o exterminou, inicialmente pela via da violência e depois através do processo do cunhadismo.

Com a alteração do regime monárquico para o republicano, o indígena passou a ser tutelado pelo Estado, em decorrência da ideia de incapacidade para a vida cidadã. O indígena passou a fazer parte da nação e, portanto, deveria ser incorporado à nova realidade expansionista empreendida pelo Estado Novo. A ideia da incapacidade dos povos indígenas em gerir suas próprias vidas, levou o Estado a assumir esse papel, definindo o lugar do indígena na nação brasileira, situação que ainda permanece.

E, por último, no tocante aos aspectos legais, a regulamentação da relação entre povos indígenas e não indígenas apresenta-se tendenciosa, ou seja, o direito à terra indígena é restrito e limitado. O Estado brasileiro é o tutor responsável por determinar e autorizar quem deve usufruir da terra e em que patamar as áreas devem ser demarcadas e homologadas. Ao indígena, cabe o direito de lá permanecer, sem que possa tomar decisões em relação à exploração do subsolo, dos rios e da biodiversidade existente.

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Capítulo II

Preconceito