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Terceiro nível: a ancoragem das diferenças individuais na representação social do conflito

Primeiro Estudo

4.1.2. Resultados e discussões

4.2.2.3. Terceiro nível: a ancoragem das diferenças individuais na representação social do conflito

As representações sociais não expressam uma forma única de pensar, pois, no seu interior, cabem modulações individuais geradas nas diversas inserções das pessoas, nas suas relações com a sociedade, e, nas suas experiências particulares de vida.

115 A ancoragem das representações sociais insere-se nas variáveis psicossociológicas que incluem os aspectos de natureza sociais, cognitivas, culturais e econômicas, dentre outros, que estão presentes no cotidiano. Para Doise et al. (1992), a ancoragem refere-se à análise do que ocorre quando os atores sociais, coletivamente, tomam um posicionamento no panorama social, posição definida em comparação com o posicionamento de outros grupos.

Nesse nível de análise, as representações sociais ancoram-se nas hierarquias de valores, nas crenças, nas concepções que os sujeitos constroem, na sua relação entre grupos, e nas suas experiências sociais partilhadas com outros indivíduos, em razão de sua pertença e posição, que influenciam os demais grupos na criação de uma representação social.

No primeiro eixo, composto pelas classes 1, 2 e 5, os atores sociais falam sobretudo da ocupação produtiva, na tentativa de convencer os grupos envolvidos de que não se trata de um cenário de disputa. O discurso parece não convencer, e os mesmos atores o alteram, e passando a defender a ocupação com base em ações mais concretas (manifestações e protestos), e com um discurso mais contundente e ameaçador: fala-se de bombas, reféns, violência, disputa.

No segundo eixo, composto pelas classes 3, 4 e 6, os atores sociais em certa medida, mantêm um discurso de ocupação produtiva, mas com uma lógica mais ampla: a sobrevivência da economia do estado de Roraima está em questão. Entretanto, há um deslocamento do centro do conflito e, por consequência, um deslocamento dos discursos e, também, dos atores sociais. Brasília passa a ser o centro das disputas, e, políticos e arrozeiros são substituídos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.

A ocupação produtiva e a sobrevivência da economia do estado de Roraima são substituídas pelas questões de segurança e soberania nacionais. O discurso não trata mais de produção, empregos, investimento. Fala-se da tríplice fronteira, da retirada dos não indígenas da reserva, e da decisão judicial a ser tomada pelo STF. De uma situação discursiva toda ela construída conforme a economia, passa-se para um discurso de ordenamento jurídico institucionalizado.

Os resultados desse estudo revelam em um primeiro momento, um discurso de ocupação produtiva (classes 1, 2 e 5), que, quando noticiados, justificam e contextualizam a ação. Há um extrapolamento dos espaços e dos sentidos (Spink, 2006),

116 à medida que as ações de protestos e manifestações se articulam com a produção, justificando e naturalizando o discurso, as atitudes e a ação, atribuindo-lhes um sentido de permissão.

Assim, a notícia que torna algo socialmente construído como natural/real, circulando sentidos, que se contrapõem aos sentidos resistentes (ocupar, mesmo que produtivamente) dá a exata noção da ideia de conflito. Os atores e os seus discursos são construídos em ma tentativa de convencimento, cujas ações são, então, justificadas pela naturalização do fato.

Em um segundo momento, surge uma dimensão jurídica que regula o conflito, envolvendo as etnias indígenas e os não indígenas, revelando a ideia de uma tutela que parece permanecer inalterada em relação aos primeiros.

Os indígenas, que historicamente não tiveram vez, também não têm voz. A tomada de posição da mídia, no caso, a Folha de S. Paulo, de incluir ou excluir este ou aquele discurso, buscando consolidar determinados conteúdos, resultantes dos produtos sociais, passa pela lógica da agenda setting, transformando esses discursos em autônomos (Spink, 2006), como se desvinculados de uma situação real, gerando consequências inevitáveis.

Nesse sentido, os meios de comunicação de massa (televisão, rádio e jornais), prestam serviço para a construção da memória (Jodlowski, 2005), e em especial da memória, brasileira, já que parece improvável lembrar daquilo que os outros esqueceram. São eles (mass media) que expandem as possibilidades humanas de imprimir, preservar e transmitir sentidos objetivados, tais como o faz a Folha de S. Paulo.

[Cronologia dos confrontos em Roraima] A reserva indígena Raposa Serra do Sol foi identificada como área indígena pela FUNAI em noventa e três, no governo Itamar, com extensão de cerca de um milhão e setecentos mil hectares. À época, já havia cidades no local. Em 1998, no governo FHC, a área foi demarcada pelo governo federal como única e contínua, ou seja, incluindo dentro dela as estradas, plantações e o município de Uiramutã, situado dentro da reserva. 17 mil quilômetros quadrados é o tamanho da reserva. 104 mil quilômetros quadrados é o total de área indígena no Estado, representando 46% do estado. 224 mil quilômetros quadrados é a área do Estado de

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Roraima em comparação a Portugal que tem uma área de noventa e dois mil quilômetros quadrados.

[Protestos] em 2004, ocorrem protestos após o anúncio do governo de que a terra indígena seria homologada de forma contínua. Rodovias são interditadas e prédios públicos são invadidos.

[Homologação] em abril de 2005, o presidente Lula assina decreto que homologa a reserva e determina a retirada da população não-índia do território indígena no prazo de um ano.

[Suspensão] dDiante dos conflitos no Estado em março e abril deste ano, o governo de Roraima pediu ao STF a suspensão da retirada dos não-índios até que a demarcação fosse julgada. O STF atendeu ao pedido.

[Julgamento] apesar disso, os conflitos no Estado prosseguem. Hoje o STF inicia o julgamento da ação que questiona a demarcação e a homologação da terra indígena de forma contínua (Folha de S. Paulo, 2008).

Dessa forma, o caso da Raposa Serra do Sol se insere naquilo que Thompson (1998) denominou quase-interação mediada, ou seja, relações mediadas por veículos de mídia de massa (rádio, televisão, jornal), em que a reciprocidade é mínima e a ação do autor é monológica. Dito de outro modo: são comunicações monolocutivas (Ghiglione, 1984), e o veículo de massa estabelece os níveis das relações entre os sujeitos, supondo uma validação a priori, tratando as situações potencialmente comunicativas como se fossem, imaginariamente, contratos de comunicação.

Um terceiro aspecto, revelado pelos resultados, diz respeito à atribuição de um sentido de invisibilidade do indígena. As notícias, sucessivamente veiculadas, circundam atores e acontecimentos em um emaranhado de informações que parecem, ao mesmo tempo, omitir e definir, intencionalmente, quem são os protagonistas e os coadjuvantes do relato. Se forem congeladas, deixam de ser notícias (Spink, 2006), por isso, precisam ser reinventadas, como num processo de atualização. Não faz parte da pauta jornalística notícias sobre alguém ou sobre determinado grupo, considerado inexpressivo,

118 representado (tutelado), ou invisível. Também nesse caso a ideia da agenda setting prevalece.

Retomando a ideia da invisibilidade, outra dimensão revelada pelo estudo, refere- se à invisibilidade ser compreendida pelo silêncio discursivo a que determinados grupos são submetidos. A hipótese interpretativa, nesse sentido, é a da espiral do silêncio. A idéia central desta hipótese situa-se na possibilidade de que os agentes sociais podem ser isolados, caso expressem publicamente, opiniões diferentes daquelas que o grupo majoritário expressa, e as considera opiniões dominantes. . Existe uma tendência de acompanhar a opinião da maioria, talvez por medo do fator isolamento, e pelo fato de, em geral, a sociedade exigir certa conformidade com o tema em discussão (Neumann, 1995).

A possibilidade de um grupo isolado, que discorda de uma opinião expressada nos meios de comunicação de massa, manifestar sua visão de um fato é absolutamente reduzida (Tuzzo, 2005). Portanto, há uma tendência de o grupo minoritário silenciar-se.

Se a agenda setting define a pauta e os critérios de relevância e plausibilidade, do que deve ser ou não notícia, também a espiral do silêncio explica, por uma omissão deliberada ou interpretação específica de determinado evento, o silêncio de determinados sujeitos (ou grupos), em relação a determinado evento. Em outras palavras, a ideia de invisibilidade pode ser atribuída a uma condição mediática imposta pelos mass media.

Os aspectos apontados indicam duas novas questões de interesse: uma que se refere ao fato de determinados grupos sociais silenciarem-se, o que significa dizer que, existem discursos não revelados e, portanto, não notícias no caso da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Trata-se de notícias que a Folha de S. Paulo não publicou, ou discursos de determinados atores (ou grupos), que não foram apresentados, por não serem considerados notícias.

Uma segunda questão refere à invisibilidade. Duschatzky e Skliar (2001), ao problematizarem a relação identidade e diferença, apontam três versões discursivas sobre o outro diferente. O outro todo mal, cuja identidade é centrada, fixa, homogênea e estável. O outro como alguém a tolerar, cuja visibilidade não desperta desprezo ou interesse (Guareschi, 2006), cuja marca identitária é neutra. E por último, o outro como marca cultural, cujas diferenças identitárias são únicas (gênero, etnia, dentre outros); o outro cultural é definido na sua totalidade, ou suposta totalidade, cuja radicalização leva ao exagero de uma identidade, encerrando-a na diferença (Guareschi, 2006). “Deste

119 modo permaneceriam invisíveis nas relações de poder e conflito [...]”, afirmam Duschatzky e Skliar (2001, p. 128).

A possibilidade interpretativa da invisibilidade e do silêncio indígena sugere outros olhares sobre a questão. Seriam essa invisibilidade e este silêncio consequências do fato de os grupos indígenas serem tutelados, portanto, legalmente incapazes? Ou seria aquilo que Spivak (1994) denomina subalternidade, essa autorrepresentação não escolhida pelos sujeitos (ou grupos), mas, imposta a um conjunto de indivíduos de forma arbitrária, em que os processos políticos, associados às formas de linguagem e de construção identitária, colocam os grupos minoritários em situações de opressão, impossibilitando suas reivindicações nos espaços abertos pela democracia? Sujeitos subalternos, para Spivak (1994) são todos aqueles cujas vozes não transitam entre o locutor e o interlocutor, não se estabelecendo uma relação dialógica.

Van Dijk (2004) em sua obra Dominación étnica y racismo discursivo em España

y América Latina, argumenta que a imprensa brasileira, que também sistematicamente

ignora os negros no Brasil, (exceto no carnaval), também reduz as populações indígenas a uma situação de inexistência, cuja representação nos meios de comunicação e em especial nos jornais, segue marginal e estereotipada, ou seja, trata-se de uma simplificação (errônea), que geralmente se atribui a determinado grupo por meio de um processo de categorização (Dechamps & Moliner, 2009). Atrasados, primitivos, são alguns (quando aparecem) dos adjetivos atribuídos aos indígenas, ressaltando simplesmente seus costumes e sua cultura (vestimentas, danças) em uma perspectiva reducionista.

Essas evidências indicam um discurso de exclusão. Fala-se (quando se fala) de grupos populacionais que somente se constituem nos discursos hegemônicos como o outro, cuja diferença, apesar de muitas vezes ser explicada como cultural, na verdade, representam efeitos de uma segregação. A ideia do Outro permite uma comparação com o Nós. Essa ideia, segundo Van Dijk (2008), geralmente é comparada a de desvio. Construir o Outro como outro, significa classificá-lo como desviante, e a diferença é o desvio. Sem muito esforço, pode-se argumentar que essa perspectiva é política e socialmente excludente. Excludente, quando objetivada, na prática é, sobretudo, uma exclusão de enunciação. Quase se pode afirmar que essa exclusão ocorre mesmo em um lugar subalterno.

120 Costa (2004) em Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social, descrevendo a sua vivência diária com garis da cidade universitária da Universidade de São Paulo, aponta que, assim como os indígenas, também os garis são sujeitos invisíveis. Apesar das diferentes realidades entre garis e indígenas, em ambos os grupos os sujeitos são apagados, “mantidos à sombra” (Costa, 2004. p. 64). Para o autor essa condição danifica o caráter humano do trabalho, mas, sobretudo, danifica o trabalhador. Parecem menos humanos.

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Capítulo V